O QUE RESTOU DA TERRA
Albani Borges dos Reis
Dedico este texto aos amantes da leitura
Capítulo 1
Pode ser ficção, mas essa é uma das histórias contadas por um homem cuja imaginação sempre foi prodigiosa no sentido de inventar e de contar sobre coisas fantásticas. Ao seu lado sempre se reuniam pessoas para ouvi-lo e ele sempre tinha uma novidade. Não importava se eram duas crianças, dez adultos ou uma plateia de dez mil pessoas. Sempre fazia o que gostava e o fazia com entusiasmo e capricho. Quando não estava contando uma, estava inventando outra. Estava sempre preparado e sempre preparando outro repertório. Mesmo quando dormia seus sonhos eram transformados em um capítulo ou uma nova história.
Instruído e bom leitor, só poderia ser um bom contador. Como um grande leitor e observador, com certeza, só poderia ser um bom narrador.
Como era um entusiasmado narrador as pessoas que o ouviam uma vez, estavam sempre prontas para ouvi-lo novamente. Os que ainda não o conheciam o procuravam por causa de sua fama. Assim se tornou famoso na cidade onde morava e nas vizinhanças. Se as pessoas não podiam ir ao seu encontro, ele mesmo ia ao contro delas. Para ele o importante era fazer o que sabia, e o fazia muito bem.
Um dia, ganhou um bloco de papel e escreveu uma de suas histórias. Era uma bela e interessante história. A sua repercussão a transformou em livro. A divulgação desse livro levou sua fama a muitos lugares e milhares de pessoas. Aonde ia, era reconhecido como o contador de histórias.
Não se orgulhava disso, mas sentia-se realizado. Resumindo em uma só palavra, feliz.
De cima de um banco de praça, como às vezes fazia, diante de uma plateia de pessoas ávidas, ele narrou mais uma de suas belas e diferentes histórias.
Muitos profetas e cientistas, religiosos e incrédulos já, pelo menos uma vez na vida, vislumbraram um futuro para a humanidade. Muitos preferem enganar ou tentar enganar o homem com narrativas fantasiosas e cheias de impossibilidades e sonhos. Apenas sonhos. Coisas que dizem apenas para levantar um estado de espírito positivista em relação ao futuro do mundo. São os otimistas e idealistas. Outros, extremistas e pessimistas e, sem esperança, fazem intrincadas sentenças de catástrofes e grandes hecatombes sem precedentes. Transformam o ser humano em zumbis desalmados. Mortos vivos comedores de carne humana viva. Bebedores de sangue para terem vida eterna. Transmissores de vírus que devoram a alma e deixam o corpo andando sem destino. Ainda, espíritos errantes incorpóreos sofrendo e cometendo maldades para pagar seus pecados de outrora. Outros transformam alguns homens em ciborgues e aperfeiçoam-nos ao ponto de crerem que são indestrutíveis como deuses e, que por fim, se voltam contra seus criadores e os destroem por completo. Assim, cada um conta sua história.
Certo é que o mundo terá um final. Disse o contador de histórias. Não é necessário ser profeta nem cientista para prever esse fato. Basta olhar para o passado, depois para o presente e traçar uma linha para o amanhã. Assim perceberá que haverá um fim. Um dia ele haverá de chegar. Mais dia menos dia ele chegará. Se houve um começo, com certeza, tem que haver um fim. O contador não gostava de falar em fim, mas em possibilidade de transformação. Algo muito grande e de forma que o homem ainda não conseguiu sequer vislumbrar. Céu e terra. Homem e vida. Saúde e paz. Os problemas que o homem enfrenta hoje são reflexos dos seus atos no passado. O que virá pode ser reflexo de sua história. As atitudes do homem fizerem a sua história de acordo com a semente que plantou ao longo dos seus milênios. Um dia ele há de colher os seus frutos. Mas a transformação que aguarda a humanidade vai muito além dos seus atos e atitudes. Ela é mais grandiosa do que qualquer ser humano já imaginou. Não se iludam os que imaginam uma catástrofe de dimensões alcançáveis pela mente e pela razão humana. Não hei de tentar incutir pavor nem esperança. Agonia ou entusiasmo. Não hei de tentar proferir juízo nem narrar o que virá depois dele. Só direi que virá. Que um dia chegará. Como será?
Que a terra está superpovoada é um fato. Que a terra não suportará por muito mais tempo a sua alcateia insaciável é percebível. Basta ver as estatísticas e saber que os recursos disponíveis de combustíveis, minerais e vegetais, bem como água potável e oxigênio não durarão eternamente. O próprio sol, nossa fonte suprema de energia, não durará para sempre. Ao final, haverá formas para superar essas faltas? Terá o homem conhecimento e tecnologia para buscar alternativas para sempre? Buscará em planetas vizinhos ou avançará vorazmente sobre outras fontes até consumi-las e assim passará para outras? São perguntas e mais perguntas que a razão nos leva para a mesma resposta. Um dia tudo acabará. Somente isso.
Eu, porém digo: um dia tudo será transformado. A ciência avança dia a dia ramificada pelo mundo e pelas mentes mais criativas e capazes do planeta. Em todos os tempos, todos os espaços. O que começou com a água, o fogo, e com a roda, está hoje nos impulsos elétricos ultrarrápidos e controlados. Está na nanotecnologia. Está no controle do plasma. O homem que transformou a matéria bruta em produtos para o seu consumo e conforto, está se transformando por meio desses conhecimentos e de suas tecnologias. O homem que transformou a matéria em máquina, um dia deixará de ser homem para ser máquina? Tudo pela sobrevivência. Tudo pela longevidade. Tudo pela grande transformação.
Com a vocação dominadora e insaciável do homem, não haverá espaço para todos na nave que o levará ao futuro que desenha. Nos seus projetos a ideia sempre foi usar todos para beneficiar uma minoria. Usar tudo para contemplar uns poucos. A matemática humana nunca foi universal. Sempre, quem somou, somou para si e quem dividiu, sempre usou o dividendo igual ao divisor. Sempre multiplicou para os seus interesses e dividiu de acordo com seu egoísmo.
Não quero viver para contar essa história até o fim. Não quero estar presente na hora que essa equação for aplicada. Quero apenas contar parte dela como tantos outros já tentaram fazer. Também não quero influenciar nenhum ser vivente no sentido de dizer; acredite nessa ou naquela teoria. Nessa ou naquela história. Quero contar o meu conto de tal forma que você possa pensar e talvez repensar o caminho escolhido até este presente momento. Isso é possível.
Capítulo 2
Foi como se eu não quisesse despertar de meu sono nas manhãs de domingo. Mas realmente estava acontecendo. Tinha que despertar, pois algo me impulsionava mesmo contra minha vontade. Meus olhos não queriam abrir de maneira alguma. A luz que incomodava minhas retinas impedia de manter meus olhos abertos. Sentia-me tão sonolento e desanimado e só queria manter minha dormência por dezenas, talvez centenas de anos.
Um zumbido agudo e intolerante penetrava nos meus ouvidos parecendo querer dizer: acorda, acorda, acorda. Levanta e volta à sua vida. Outra voz, a minha voz interior dizia: dorme, dorme, dorme. Novamente: acorda, retoma sua vida. Você não pode ficar assim por mais tempo.
Não sei bem quanto tempo durou essa luta, mas parecia uma eternidade. Parecia não ter fim. Eu estava entre o acorda e o dorme. Tanto eu não sabia o que estava acontecendo como não queria despertar para saber. Parecia que o zumbido não conseguia me manter acordado nem dormindo. Estava no limbo. Por mais que eu tentasse abrir os olhos não encontrava forças para mantê-los abertos. Não conseguia alcançar meu estado consciente mesmo que acordado ou, meio acordado. Essa luta durou horas, sei lá, talvez dias, pois o processo de tão lento não permitia que eu tivesse consciência de tempo ou de espaço. Mas estava acontecendo.
Lentamente fui recuperando o meu estado de consciência. Não sabia o que estava acontecendo nem onde eu estava. Seria eu um vegetal saindo da impressora? Um androide saindo da linha de produção, ou sendo cobaia de alguma espécie de experiência científica onde minhas memórias teriam sido apagadas? Sem consciência, somente ouvia o zumbido que muitas vezes mudava de intensidade e de frequência. Às vezes parava e de repente recomeçava. Estaria eu sonhando, ou melhor, tendo um pesadelo?
Por fim, com muita dificuldade, consegui abrir um pouco os olhos. O fiz de maneira tão lenta e sem consciência que não reconheci o local onde me encontrava e muito menos a situação que me envolvia. Com muita dificuldade consegui mantê-los abertos por alguns segundos. Talvez.
Agora eu podia ouvir uma voz distante e incompreensível. Não sabia ainda se ela falava comigo ou com outra pessoa. Não sabia se era por causa do volume da voz ou a falta de capacidade do meu organismo em perceber e compreender o que ela dizia.
Aos poucos fui tomando consciência de que ela falava comigo através de um equipamento de som. Desperta e retoma sua vida, já se passaram muitos anos. Levanta para continuar seus projetos como antes. Você não pode ficar mais tempo nesse estado de dormência. É preciso que você desperte. Busque no fundo de seu subconsciente o seu verdadeiro eu, e suas energias para que possa se levantar. Um mundo cheio de pessoas e coisas interessantes te aguarda.
Quando percebi que aquela voz falava comigo, procurei com os olhos ver de onde vinha e quem falava. Mas não conseguia de forma eficiente mantê-los abertos e nem movimentar a cabeça e menos ainda o corpo. Não tinha forças para nenhuma das opções. Parece que alguma força estranha me segurava na cama e mantinha meus olhos fechados.
Iniciei um exercício frenético para me despertar totalmente esforçando para abrir os olhos, mesmo sem entender direito o que se passava. Creio que essa luta durou ainda várias horas, sei lá quantas, mas, com certeza, não foram poucas. Nesse intervalo de tempo, minha existência não passou de luta, de tentativa para me despertar. Minha mente queria, mas meu corpo não conseguia. Minha mente me impulsionava, mas meu organismo não tinha forças. Meu subconsciente dizia levanta, e meu consciente não obedecia. Não conseguia de forma eficiente me conectar com o mundo. As coisas pareciam flutuar diante de mim, mas, não conseguia ver direito. Sentia, mas não via nada claramente. Somente vultos. Somente sons, somente zumbidos.
Uma luz começou a brilhar por cima de mim, e foi se intensificando lentamente. O que iniciou como uma penumbra que mal podia ser percebida, depois de algumas horas ela própria já incomodava muito os meus olhos cerrados. Tentava abri-los, mas não podia, pois, a claridade que ajudava a me despertar incomodava meus olhos, como se eles estivessem acomodados durante décadas sem a presença de luz alguma. Mas ela era necessária para me energizar e me ajudar no processo.
Tentei me firmar na cama com os cotovelos para levantar a cabeça, mas desisti, pois realmente não tinha força nos braços, pernas, muito menos no corpo. Também pudera. Quem não conseguia abrir os olhos, como movimentaria os membros do corpo? Entretanto, a voz me incitava. Levanta, levanta, levanta.
Iniciei um movimento apenas com o pensamento. Vai e vem. Vai e vem. Com a mente, eu ia e vinha. Andava para lá e andava para cá. Com a mente eu movimentava os dedos, depois as mãos, os pés, e assim por diante. Virava os olhos para a direita e para a esquerda, ainda com as pálpebras cerradas. Dessa forma fui me exercitando, não sei bem se por vontade própria, ou pela ordem da voz que me incentivava. Talvez ela me dissesse: movimente os olhos várias vezes. Movimente os músculos da testa, movimente os músculos da face. Agora movimente os dedos, as mãos e a cabeça. Movimente novamente. Novamente e novamente. Talvez. O certo é que eu fazia isso na certeza de que ajudaria a me colocar de pé. Mas pra que mesmo ficar de pé? Em momentos, sentia, mas não sabia sequer o que era isto. Ficar de pé. Esforçava-me, pois a situação me incomodava bastante. A voz, insistentemente continuava me mandando movimentar.
Meu coração que até então batia tão lentamente que mal o sentia, agora estava mais acelerado como se estivesse cansado somente de exercitar com a mente. Às vezes batia tão descompassado que me preocupava. Já tinha consciência de algumas coisas. Até esse momento não conseguia entender, nem mesmo tinha interesse nisso. Estava alheio à maioria das situações.
Quando consegui finalmente abrir os olhos, ainda que não totalmente, percebi que a luz estava refletida sobre uma abóbada transparente, de tonalidade pálida, quase fosca. Não conseguia discernir a cor. A luz que parecia tão intensa, na verdade não passava de uma penumbra discreta. Mas estava lá, e continuava lentamente a se intensificar.
Inconscientemente tentei me colocar sentado, novamente, iniciando um movimento com os braços para erguer a cabeça, mas foi em vão. Pareciam estar duros ou sem força alguma. Tentei novamente e novamente fracassei. Finalmente consegui movimentar os olhos dentro da cavidade orbicular, após abrir as pálpebras. Já sentia meu corpo, mas não conseguia movimentá-lo de maneira alguma.
Insisti lentamente com os movimentos a partir dos dedos de uma das mãos. Em seguida dos pés, pernas e com a cabeça. Quase não conseguia a princípio, mas continuei tentado. Eram movimentos tão pequenos e lentos que mal eu os sentia. Nesse instante senti que alguma coisa por baixo do meu corpo, movimentava lentamente minha cabeça e meu tórax para cima. O movimento se repetiu várias vezes até que senti um princípio de enjoou e um acesso de vômito. Nada saía da minha boca. Também, nada tinha no meu estômago. Numa espécie de convulsão meu tórax se movimentou para cima e para baixo sendo acompanhado pela minha cabeça. Meu coração disparou palpitando freneticamente. Quase perdi os sentidos. O movimento mecânico cessou na cabeça e tórax, quando já estava em posição quase sentado, e iniciou nas pernas. A princípio não sabia o que estava acontecendo, pois tinha a impressão de que o teto balançava. Às vezes rodava. Aos poucos percebi que alguma coisa elevava uma de minhas pernas até certa altura e quando esta era abaixada a outra era elevada. Num movimento intercalado meus membros eram movimentados. Algo forçava meus joelhos para cima e os pés se encolhiam alternadamente. Como andar de bicicleta. Aos poucos percebi que por baixo da cama havia um mecanismo que movimentava meus membros. Parte superior do corpo, depois as pernas e os braços. Assim por cerca de uma hora, o mecanismo movimentava minha cabeça, meus pés e pernas, braços e mãos. Uma hora depois tudo iniciava novamente. Dentro de poucas horas comecei a ajudar no movimento, pois a esse ponto eu já queria me levantar. Não conseguia, pois ainda não tinha forças suficientes.
Tubos estavam introduzidos na minha boca, nariz e nos meus braços, além de outros lugares, íntimos. Percebi uma porção de uma sopa rala e ligeiramente amarga ser inserida por um dos tubos que estavam na minha boca. Estava sendo mantido dentro de uma cápsula e sendo alimentado por um sistema automático. Tive dificuldade de engolir e quando o fiz, outra porção já estava chegando. Em pequeno espaço de tempo a seguir o mecanismo trazia outra porção, só que desta vez ligeiramente adocicada. Neste ponto eu já sabia de que se tratava, pois, minha mente havia progredido bastante no processo de me lembrar de algumas coisas. Movimentos, sabores, sons e luzes. Já conseguia fazer algumas perguntas a mim mesmo e algumas delas encontrava respostas naturalmente. Para a maioria não. Foi então que surgiu uma pergunta importante.
_ O que está acontecendo?
Outra surgiu imediatamente.
_ O que aconteceu para que eu despertasse nessa situação. Será que fiquei enfermo com algum tipo de vírus ou bactéria contagiosa?
Não conseguia respostas a esta e outras perguntas. Mas elas insistiam mesmo com o passar do tempo. Sabia por exemplo que me encontrava em uma fase de despertamento. Com certeza estivera adormecido por longo tempo. Não sabia por quanto tempo e nem o porquê disso tudo. Achava bastante estranho porque não percebia a presença de pessoas, de vozes, a não ser do equipamento, movimentos e qualquer tipo de vida. Porque estava dentro de uma abóbada, que iniciou automaticamente uma sequência fisioterápica. Muitas coisas aconteciam comigo e com a bolha, mas não aparecia ninguém. Ouvi alguns apitos e logo tive consciência de que era um monitor cardíaco e outro de ondas cerebrais. Um Dialisador?
Balbuciei a primeira frase que me veio à mente.
_Tem alguém por perto? Nenhuma resposta.
_ Tem alguém por aí? Tentei falar novamente com voz mais forte, mas saiu apenas sons estranhos.
Não tinha forças para gritar e mesmo se o tivesse não adiantaria, pois estava com tubos por todo lado e ainda, confinado em uma cápsula hermética e não sabia o que de fato ocorria no mundo exterior.
_ Mas o que está acontecendo? Tentei novamente chamar por alguém, mas quem respondeu foi a própria máquina.
_ Bip, bip, bip.
_ Devo ter mesmo adquirido uma doença contagiosa. O que são esses equipamentos? Mas por que não me lembro de nada?
Dois ou três dias depois, após manipular retirando e colocando o tubo de minha boca, chamava por pessoas e fazia exercícios, massagens e alongamentos. Eu já estava mais atento ao que se passava. Comecei a interagir com um painel e com seus botões que estavam ao alcance de minha mão. Havia também um monitor e um teclado de computador. Identifiquei também um microfone e uma câmera de vídeo.
_ Afinal, para que diabos são esses recursos todos? Certamente alguém está acompanhando de um local distante. Porque será?
Meus pensamentos quase não concluíam as frases por causa da sonolência e ausência de forças que ainda persistiam. Ao reconhecer um computador na lateral da cápsula, tentei alguns comandos no teclado e num dos movimentos desconexos de minha mão toquei na tela e ela se alterou mostrando alguns quadros com frases, desenhos e gráficos. O teclado era apenas uma possibilidade a mais para quem estava se reabilitando de uma profunda sonolência. Na sequência percebi que não precisava nem mesmo tocar a tela.
_ Quase não me lembro, mas esses recursos são meus conhecidos ainda que parcialmente.
Agora bastava um leve aceno e ela obedecia aos meus comandos. Teria que reaprender o significado de cada um deles. Só o faria aos poucos com o retorno pleno da atividade mental e alguma atividade física.
Eu já apresentava algum progresso na reabilitação mental e física. Conseguia manter os olhos abertos tocar nos controles, apalpar alguns tubos e partes do meu corpo. Somente não sei quantas horas ou dias se passaram até esse ponto. Conseguia movimentar de certa forma pernas e braços, mas não tinha forças ainda para me erguer e ficar de pé. Com ajuda dos instrumentos ficava a maior parte do tempo sentado, ainda que recostado na cabeceira da cama a qual se projetava para frente para melhor conforto. Tudo agora, ao meu controle. Via no monitor um ícone e clicava para ver ou sentir o comando do computador. Nessa posição conseguia ler um manual que aparecia no monitor bem como uma espécie de testamento descrevendo parte do processo e de uma experiência científica. Aos poucos, lendo e analisando textos e gráficos fui me lembrando do motivo de estar ali. Aliás, lembrando parcialmente.
Soro e alimentos especiais ainda eram ministrados via oral e venosa pelos instrumentos automáticos os quais à medida que eu me reabilitava iam desativando suas funções automáticas para permitir que minhas vontades e necessidades fossem retomando suas proporções normais. As sondas e os sensores ainda estavam nos seus lugares. Lendo o testamento através do monitor fui tomando conhecimento dos fatos que me levaram a essa situação, porém muita coisa ainda não estava clara para mim. Por exemplo, porque não havia ninguém por perto? Se eu teria acordado no tempo certo. Onde estava minha família que deveria estar perto de mim nessa hora. Afinal, deveriam estar ansiosos e com saudades minhas.
Os instrumentos indicavam que uma equipe grande de pessoas participava de um projeto e me intrigava o fato de não estarem ali naquele momento.
_ Certamente acordei antes do tempo previsto por isso não apareceram ainda. Pensava com incômodo.
Mas com tantos instrumentos de comando e de controle era previsível que ao menor sinal de anormalidade a equipe de monitoração estivesse atenta. Virava-me de um lado para o outro como podia, mesmo em face da automação. O tempo parecia não passar, pois não sabia se era noite ou dia. Não sabia o dia da semana, o mês e o ano.
Comecei a entender que quanto mais eu me esforçava pela minha reabilitação menos ajuda eu tinha dos equipamentos. Encontrei, por fim, o ano do início dessa animação suspensa e os motivos foram ficando cada vez mais claros. Tudo fazia parte de uma experiência científica na qual eu mesmo trabalhava como um dos autores do projeto e de seu desenvolvimento. Fiquei impressionado quando lembrei que estava confinado numa cápsula automatizada por cerca de cinco anos. Pelo menos era o que eu pensava. Os computadores estavam indicando datas que não faziam sentido algum.
_Talvez esse computador esteja mostrando uma data errada, por problemas de configuração ou coisa parecida.
Na cápsula eu teria sido mantido em estado de hibernação ou animação suspensa, toda controlada por um sistema complexo, comandado por computadores e programas modernos, desenvolvidos especialmente para esse fim. É claro que havia previsão para aplicação dessa tecnologia tanto na medicina como na sociologia. Dentre elas, manter um paciente vivo, em coma, até que condições favoráveis tornassem possível trazê-lo de volta a vida. Motivos? Muitos. Talvez somente o orgulho humano tivesse essa resposta. Grande quantidade de dinheiro foi empregada até este ponto. Dinheiro vindo do governo e das mãos de pessoas ricas e poderosas, que depositaram confiança no projeto e nos pesquisadores. O objetivo da pesquisa era manter vivos, cérebros privilegiados com alto grau de inteligência e de conhecimento. Assim, um dia, essas informações poderiam ser novamente reimplantadas de uma forma ou de outra.
Para esse projeto, várias cápsulas foram desenvolvidas e vários voluntários se dispuseram aos testes. Pelo menos parte do projeto se passava às margens das leis e dos códigos de ética.
_ Também se fôssemos esperar que os políticos e burocratas aprovassem leis, garantindo a legalidade do projeto ainda estaríamos nas pranchetas. Consegui concluir.
Eram alguns dos próprios cientistas mais despojados as primeiras cobaias desse projeto. A princípio, para testar a tecnologia da cápsula, alguns se arriscaram a ficar por alguns meses, depois por um ano e assim sucessivamente. Um dos patrocinadores, depois de ver um bom resultado durante um ano, quis experimentar por dois anos. Viu que dava certo e continuou com os investimentos. Talvez quisesse ter sua própria cápsula para o caso de alguma catástrofe, ou eventualidade, recorrer a ela. Alguns indivíduos se prontificaram aos testes em troca de remuneração, a qual era depositada regularmente em nome de seus familiares, até que o mesmo despertasse.
Lendo os tutoriais soube que outras cápsulas foram ativadas mais ou menos quando eu fui confinado dentro de uma delas. Pessoas que eram contratadas para isso. Talvez alguém entrasse na bolha para provar um pouco de solidão ou para fugir de seus traumas. Um indivíduo se ofereceu sem custo algum para o projeto, somente com o propósito de avançar no tempo e ter um bom tema para escrever seu próximo livro de aventura. Todos os protocolos devidamente esclarecidos e assinados mediante testemunhas essas pessoas assim como eu foram introduzidas em suas cápsulas.
_ Quem sabe alguém que fazia parte da experiência e que eu conheça esteja entre eles, assim poderei encontrá-la e talvez ajudá-la.
Essas cápsulas deveriam estar em ambientes próximos, pelo que me lembrava, pois trabalhara no projeto desde o início. Assim era um dos desenhos ilustrando a instalação delas.
Por enquanto minha batalha era para me fortalecer com os constantes exercícios recomendados pelo monitor. Com essa esperança e muita vontade, minha recuperação avançava de forma exponencial.
Não podia retirar os tubos antes de sair da cápsula por causa dos alimentos e água que ingeria por meio deles. Não usava máscara de oxigênio enquanto estava no interior de uma delas, então temia abri-la e me deparar com um ambiente incompatível.
Foi durante um dos movimentos que consegui fazer que num dado momento, ouvi um clique e a tampa da cápsula se levantou me deixando assustado a princípio, depois aliviado. Respirei normalmente sentindo apenas um odor diferente do que sentia na bolha fechada.
_ Parece cheiro de mofo. Que lugar é esse afinal? Não o reconheço.
Dentro de mais dois ou três dias, creio eu, consegui ficar de pé, ao lado do equipamento me apoiando nele. Para mim foi uma euforia que não tinha com quem compartilhar. Por mais que gritasse, chamasse pelo microfone ninguém aparecia. Mesmo assim, às vezes eu sorria, gritava e até chorava de tristeza à medida que o tempo passava lentamente. Acordava e dormia novamente, sem saber se era dia ou noite. Confesso que passava por mim uma onda de medo por causa da solidão, do escuro e do silêncio. Era tudo muito sinistro. A luz que no início era forte aos meus olhos, agora era apenas uma penumbra. A música, a leitura e os exercícios me acalmavam.
_ Deus. E agora?
Onde está Deus nessa história? Eu me perguntava.
_ Não sei nem mesmo dos meus companheiros.
_Como vou saber de Deus?
Apesar de compartilhar algumas ideias com a equipe no início da pesquisa, tinha minhas convicções religiosas e filosóficas. Era praticamente um cristão. Nada muito definido, mas me considerava assim. Muito embora não tão fervoroso quanto minha esposa e outros familiares, mas era convicto. Não era ateu. Cria.
_ Certamente que o projeto deu resultados positivos ao ponto de os operadores introduzirem melhorias no sistema, mesmo depois de minha hibernação. Talvez tenham mudado para outra edificação mais ampla e mais moderna.
Pensava sempre nessa hipótese como um apoio para me sustentar com paciência. Tendo em vista que muita coisa era nova para mim, pois não conseguia reconhecer certos detalhes do sistema.
Alguns dos voluntários despertaram antes do meu ingresso, denunciando falhas no sistema. Essas foram corrigidas ainda com a minha participação. Certamente, agora, tudo funciona maravilhosamente bem. Tanto é que estou aqui, e vivo.
_ Será que algum tipo de conspiração me deixou nessa situação, sozinho? Ou parte do projeto foi modificado para atender outros propósitos, sem minha presença e anuência?
Várias teorias passavam por minha mente todos os dias em função da falta de respostas para as perguntas já formuladas e também de pessoas para respondê-las.
_ Talvez tenham apenas perdido o interesse nesse projeto. Ou quem sabe, tenham sido descobertas e corrigidas possíveis falhas depois do despertamento de alguns dos voluntários que hibernaram ao mesmo tempo em que eu. Se assim for, essas adaptações foram feitas para minha segurança, ou maior permanência do que o previsto.
Como não tinha respostas, continuava minha sede de reabilitação. Comecei a trabalhar duro nesse sentido, passando a ficar mais tempo acordado.
_ Seja qual for a resposta, estou vivo e agradeço por isso. Espero que tudo sirva para o benefício de muitas pessoas da sociedade.
_ Seja por força de alguma intenção boa ou má, a verdade é que estou vivo. Isto é o bastante. Espero sair daqui o quanto antes e buscar as respostas que procuro. Encontrar minha família, outros membros da equipe e continuar com as pesquisas. É o que eu mais desejo agora que sei que tudo está indo bem.
A primeira vez que fiquei de pé, ao lado da cápsula, senti um mal estar tão grande que quase caí do lado de fora. Não fossem alguns suportes nas laterais onde segurei firme, e teria caído realmente. Fiquei tonto e quase perdi os sentidos, mas consegui me sentar. Aos poucos fui me sentido capaz de levantar e dar os primeiros passos mesmo segurando, depois me apoiando em alguma coisa.
Eu passava a maior parte do tempo exercitando e me alimentando da sopa gelatinosa que saía do tubo. Sem nenhum comando externo a cada duas horas uma porção do alimento chegava pelos tubos. Quando sentia fome, eu mesmo a solicitava através de comando digital.
Um dia pela manhã, ouvi um som diferente vindo do equipamento. Procurei descobrir do que se tratava e percebi que a principal fonte de alimentação estava no fim. Daria para poucos dias mais. Como minha atividade física aumentou bastante nos últimos dias, meu organismo passou a exigir mais alimento. No monitor eu pude descobrir a composição que era basicamente de proteínas, sais minerais além de vitaminas e fibras para repor as energias e a massa muscular. _Terei que levantar e procurar alguma fonte de alimentação alternativa para suprir a que está acabando.
Assim, me livrei de todos os tubos e comecei a andar e exercitar fora da cápsula com mais liberdade e energia. Como minha vontade de restabelecer era grande, exercitava mais do que o recomendado pelos equipamentos. Minha razão estava praticamente ativa, de sorte que muitas vezes não me deixava dominar pelo programa alimentar e jornada de exercícios estabelecida pelo sistema. Até poucos dias atrás eu era dominado quase que totalmente pelo sono e pelo sistema. Agora o superava. Era um bom sinal. Para quem estava preso a uma máquina por vários anos, agora podia andar, cantar alimentar, e quem sabe até reprogramar a máquina que me fez sobreviver por tanto tempo.
A princípio eu me assustava quando passava em frente a um espelho, pois a presença de minha imagem a essa altura parecia denunciar a presença de outra pessoa. Barbas e cabelos longos demais não me permitiam lembrar alguma coisa de minha própria fisionomia. Mas logo eu me dava conta de que era apenas minha imagem. Não havia mais ninguém ali além de mim. Somente a minha imagem que por vezes me confortava e por uma fração de segundo me tirava da solidão em que me encontrava.
_ Me acostumo com esse enclausuramento e solidão ou deverei sair à procura das pessoas que certamente estão por perto.
_ Mas será que me tornei um monstro e por isso não encontro ninguém para compartilhar nada?
_ Pode ser, também, que lá fora todos sejam monstros.
Os dias foram passando e ideias como essa com frequência me vinham à mente e se iam sem respostas convincentes. No banco de dados do computador, as imagens que encontrava eram semelhantes a mim. Com exceção, é claro, da longa cabeleira e a encrespada barda comprida.
_ Cinco anos, não são suficientes para modificar o código genético de uma pessoa. Pensei.
_ Alguma coisa deve ter acontecido. Eu me tornei um monstro e fui trancado aqui dentro, ou o mundo inteiro se transformou em tais. Doença contagiosa, isso sim. É o que aconteceu. Essa ideia de monstro é pura fixação.
À medida que me movimentava fora da cápsula, ia encontrando coisas que sem dúvida, eram úteis para minha sobrevivência. Quando consegui sair da sala, tive acesso a outras, com freezers grandes, ainda em funcionamento. Mantinham alimentos, água, medicamentos e produtos. Até equipamentos conservados a temperaturas baixas com o propósito de prolongar a vida útil dos mesmos. Chegava a cada dia à conclusão de que tudo foi programado com antecedência. Com exceção de algumas coisas que não encontrava nexo. E perguntava.
_ Por que estive sozinho dentro dessa cápsula e dentro desse enorme salão? Por que não existem pessoas ou mesmo outras cápsulas por perto? Essas janelas estão cobertas por filtros para não deixar a luz passar. Isso deve ter uma razão.
Andei por vários locais, explorando e tentando descobrir pessoas. Percorri vários pavimentos tanto à cima como abaixo de onde me encontrava. Algumas portas trancadas eu não conseguia abrir. Outras, abertas como se tivessem sido deixadas assim. Muitas coisas fora do lugar de origem, outras se encontravam partidas e danificadas. A maior parte, em suas posições normais. Com certeza alguma coisa desagradável ocorreu enquanto eu estava dormindo. Por mais que eu procurasse não encontrava as pessoas e não encontrava as respostas que procurava, nem no computador, nem nos vestígios analisados. Aquela situação me mostrava uma parte da história, que não batia com a outra. As coisas e os acontecimentos não tinham nexo algum. Ou então eu não queria aceitá-los.
_ Hoje, depois de vinte e um dias acordado, ou pelo menos que consegui abrir os olhos, eu consigo andar e às vezes correr em círculos por entre os equipamentos e móveis do lugar.
Cheguei a medir uma trilha traçada por entre os móveis e utilitários, de uma sala para outra, que chegava a 120 metros. Nessa trilha apesar das curvas, alguns obstáculos e alguns cabos no piso, eu dava várias voltas seguidas. Era ideal para começar minhas caminhadas e corridas e algumas flexões. Era essa a atividade física única todos os dias.
No freezer encontrava água e comida tanto já preparada como para ser preparada em fogo ou água quente. Algumas mais sólidas e outras mais líquidas e leves. Baterias de reserva para os equipamentos, muito embora todo o local fosse abastecido por um pequeno e moderno reator nuclear, painéis solares e dois geradores eólicos. Sobre estes, tomei conhecimento no banco de dados do computador do sistema. Razão de minha existência até o momento. Sem fontes poderosas de energia, a cápsula, o freezer e, com certeza, outros equipamentos não funcionariam por muito tempo. Dessa tecnologia não tinha conhecimento a não ser o superficial. Nada de profundo. Admirava apenas, em especial por durarem tanto tempo fazendo o equipamento funcionar.
_Creio que um dia esse sistema vai entrar em pane e deixar de funcionar. Os alimentos vão acabar. Só assim as pessoas do projeto vão aparecer. Creio.
_ Então vamos torcer para que todos esses equipamentos não estraguem antes deles estarem todos de volta.
Por enquanto tinha o essencial funcionando até que o problema se resolvesse. Tinha alimento e tinha água para muitos dias. Estava tranquilo de certa forma.
_ Quando sair daqui, com certeza, meus colegas do projeto e seus técnicos saberão o que fazer. Não tenho com o que me preocupar.
_Somente sei de uma coisa. Tenho que dar um jeito de sair e procurar as pessoas. O quanto antes.
A essa altura não tinha certeza de muita coisa em função da situação presente. Só tinha esperança.
_ O projeto não pode ter sido abandonado nesse meio tempo. Por isso tenho que encontrar as pessoas e as respostas.
Capítulo 3
Depois de esperar e relutar por vários dias sai da sala onde estava a minha cápsula e, caminhei por corredores praticamente escuros, até uma sala enorme. Daí em diante meus instintos, creio, me conduziram para cima através de escadas que pareciam não ter fim. Havia entradas de luz apenas pelas pequenas janelas laterais cujas vidraças possuíam filtros permitindo quase nada de claridade. Além da presença de muita sujeira na maioria delas. Por isso os corredores e os poços da escada pareciam acabar no meio da escuridão.
Uma porta semiaberta chamou minha atenção e quando decidi passar por ela, me vi dentro de uma sala pequena com móveis sugerindo uma recepção. Esta dava continuidade a um longo corredor, e neste, outras portas. Avancei com cuidado e adentrei a primeira que encontrei aberta. Era um salão espaçoso, com cadeiras, balcão, terminais de computador e outros utensílios. Um moderno painel de controle, um bebedor com depósito na parte superior avariado e desprovido de água. Estranhei, pois tudo parecia abandonado há muitos anos. Poeira, teia de aranha, móveis encardidos e parcialmente corroídos por insetos. Piso e paredes muito sujos. Tive a impressão de que uma névoa seca pairava acima dos objetos. Alguns minutos depois entendi que o local estava na escuridão quase total. Meus olhos estavam habituados com ela e mesmo assim podia ver muita coisa. Tudo parecia sem cor.
Comecei a andar pelo local, quase tateando no escuro, até outro corredor e nele uma seção de escada ao lado de portas de elevadores que não funcionavam. Como as escadas permitiam subir e descer, não sei por que optei novamente por subir.
Cansado de tanto andar por salas e corredores e subir escadas, acabei sentando nos degraus para descansar um pouco. Estava decidido a ver o final de tudo, depois de um breve repouso. Eram os últimos degraus e como estava no escuro não tinha noção desse fato.
_ Até que enfim. São apenas mais alguns degraus. Parece que estou no final.
_Um mezanino… Pelo menos é o que parece.
_ Espero que esta seja a última etapa.
Cheguei a uma pequena salinha onde a escadaria terminava. Não prestei atenção no que havia nela, pois tinha pressa em sair do prédio e ver novamente o sol, a natureza, as pessoas. Era impressão ou uma grande vontade que tinha de sair do prédio e ver o que havia do lado de fora. Talvez por medo do que poderia estar, preferia ver primeiro do alto do prédio.
Quando a porta se abriu pela primeira vez no topo do prédio, na verdade não sabia ao certo que era o final da escalada. Eu simplesmente não conseguia abrir os meus olhos. Tive que recuar e voltar para o interior da sala com as mãos cobrindo olhos e procurar um local onde a luz fosse menos intensa. Procurei limpar as lágrimas que escorriam pela minha face, usando a própria camisa que usava.
_ O que terá acontecido. Por que será que a luz está tão intensa lá fora?
_ Terá ocorrido algum fenômeno estranho com o sol?
_ A luz está muito forte, mas o sol não parece tão quente.
Já ia elaborar alguma hipótese quando me lembrei de que estivera muito tempo dormindo e, depois já há quase um mês vivendo com pouquíssima luz no interior do prédio. Era natural que minhas pupilas estivessem muito dilatadas. Simplesmente não podia ver nada. Primeiro teria que me adaptar a essa claridade exterior. Com certeza dentro de casa a claridade não passava de uma penumbra comparada à luz do sol. Além do mais, a economia de energia dentro da construção teria que ser realmente grande para que todo o sistema funcionasse com a capacidade produtiva dos geradores. Por mais que me esforçasse, lá fora eu ainda não conseguia ver nada.
Dentro da sala procurei um local onde a luz me ofuscasse menos e esperei algum tempo até que meus olhos se adaptassem.
Finalmente depois de algumas horas entre a penumbra e a claridade consegui sair e ver o que me aguardava, apesar de meus olhos ainda lacrimejarem bastante. Ou melhor, ver o que eu não esperava. O que jamais pensava ver. Fiquei estarrecido e meu coração disparou, depois bateu descompassado por um bom tempo. Voltei para dentro pensando que meus olhos ainda estavam vendo coisas irreais. Aguardei mais algum tempo e retornei ao terraço para olhar novamente. O prédio onde eu estava parecia estar no alto de uma montanha. Pelo menos era o que eu conseguia perceber. Desse ponto eu conseguia ver um cenário jamais imaginado por mim. Permitia-me ver a paisagem e o horizonte a uma distância muito grande. A tonalidade do verde parecia misturar com a do azul do céu. Via por cima da vegetação, dos prédios e de algumas montanhas. Mas a realidade que vi me assustou muito e me fez pensar que estava em outro mundo. Em outra realidade, vista apenas em filmes. Fiz um quebra sol com as mãos tentando melhorar as condições da visibilidade, e tentei de novo, pois não acreditava no que estava vendo.
_ Será que estou numa sala de projeções? Será que tudo isso faz parte do projeto adaptado depois que dormi?
Cheguei a pensar que havia sido traído por algum companheiro que alterou a programação da cápsula para me enlouquecer e me tirar do projeto.
_ Mas quem faria uma coisa dessas. Era só fazer uma nova eleição da diretoria. Tudo ficaria resolvido.
Voltei a olhar com atenção redobrada. A imagem que tinha diante dos meus olhos me transportou a princípio ao conto de Alan Weisman, em “O mundo sem nós”. Vira este cenário em um documentário e na ocasião fiquei muito assustado e impressionado com as possibilidades sugeridas. Cheguei a perder noites de sono. Na época me impressionava com facilidade com temas como esse. Agora o filme se repetia na minha frente. Após observar por alguns minutos e percorrer o horizonte com os olhos, de um lado ao outro, de onde eu tinha ângulo, a única conclusão a que chegava era uma. Apenas uma. Não era um filme. Tudo era real.
_ Ainda devo estar dormindo, e sonhando.
Mas se é sonho, que sonho horrível. Pesadelo.
_ Posso estar em uma sala de projeções. Só pode ser. Estranha maneira de acordar.
Minha mente estava muito confusa e não conseguia absorver a realidade diante dos meus olhos.
Aos poucos fui percebendo que no local onde eu estava a situação era parecida, com total abandono. Estava no topo de um edifício que além de construído em um local mais alto em relação aos demais, possuía vários pavimentos. Estava em um mezanino amplo e sem cobertura. De lá podia vislumbrar o horizonte mal delineado por construções avariadas, montanhas e árvores. Aliás, mais árvores do que qualquer outra coisa.
_ Os edifícios estão todos em ruínas… O que é isso? Não posso crer no que vejo!
Limpei os olhos várias vezes e procurei assimilar a paisagem olhando fixamente em várias direções analisando os detalhes. Realmente o cenário que estava diante de mim era pura desolação. Ruínas de construções no meio da vegetação. Alguns prédios parcialmente, outros totalmente destruídos. Partes inclinadas e prestes a cair. Ferragens retorcidas e telhados pendurados. Construções parcialmente tomadas pela vegetação tanto no solo como nas paredes e nos tetos. Árvores enormes dentro de casas parcialmente destruídas. Até onde eu podia ver, pontes caídas e enormes lages parcialmente tombados no solo. A vegetação de pequeno porte havia nascido e crescido por toda parte. A cidade outrora habitada era puro escombro, poças d’água e vegetação. Ruas cheias de veículos retorcidos, sem cor e enferrujados. Ao longe, em uma península, restos de embarcações, umas parcialmente afundadas e corroídas pela ferrugem, outras em solo, tombadas para o lado e com vegetação dentro delas. Algumas no meio da mata verde. O que podia ser visto da ponta do aeroporto, da mesma forma. As construções ainda de pé estavam parcialmente cobertas por vegetação, a qual cobria também restos de aeronaves de todos os tamanhos. Asas de aviões retorcidas e outras caídas. Uns com o bico apoiados no piso outras partidas ao meio. Todas já sem a cor que, via de regra, identificava cada empresa proprietária. As pistas de pouso eram os únicos locais onde a vegetação não conseguiu brotar com vigor. Nas proximidades, vagões de trens e metrôs descarrilados e amontoados em alguns pontos. Sabia que era o metrô por causa da sequência de vagões, pois não via os trilhos nem as trilhas por onde passavam.
Uma praça próxima do local onde eu estava ainda podia ser percebida pela conformação das construções ao redor e os sinais do que outrora eram ruas. Nestas, tanto a presença de restos de veículos como poças de água e presença de vegetação rasteira e arbustiva. Não pude deixar de notar que alguns edifícios bem altos estavam pendidos para um lado prestes a cair totalmente. Outros apesar de ainda aprumados tinham árvores no teto e em outras partes planas. Apesar do reflexo do sol nas vidraças, percebia que muitas delas estavam estilhaçadas, evidenciando o estado deplorável em que se encontravam. Nenhum edifício ou construção menor se encontrava em situação diferente.
Depois de alguns momentos de observação cheguei à conclusão de que estava próximo de onde estivera há muitos anos. Muitos edifícios eram reconhecidos apesar do estado em que se encontravam.
_ Estou na cidade onde vivia, mas o cenário não condiz plenamente com a realidade dos tempos passados. Devo ter sido submetido a alguma experiência não prevista, a qual alterou minha mente. Só pode ser isso.
_ Talvez a permanência por tempo prolongado na cápsula tenha alterado minha consciência. Por isso vejo essas coisas. Sem dúvida alguma aconteceu algo errado comigo. Ou então isso não passa de uma brincadeira de mau gosto.
_ Isso explica porque ainda não encontrei ninguém. Elas estão aqui e não as vejo. Devo estar louco.
Andei pelo local de um lado para o outro, meditando e procurando uma resposta plausível. Se não é uma brincadeira deve ter ocorrido alguma falha no procedimento ou no sistema cibernético.
_ Mas que tipo de falha aconteceu? Não me lembro de haver autorizado nada mais além da permanência por cinco anos.
Por mais que pensava, minhas conclusões eram apenas conjecturas. Poucas conjecturas se tornavam fatos plausíveis para mim. Uma delas era que…
_ Em cinco anos o mundo não sofre tamanha transformação. Preciso saber o que está acontecendo o quanto antes.
Uma onda de pavor e dúvida tomou conta de mim, e por pouco não perdi o controle da pouca racionalidade que ainda existia em mim.
Uma coisa chamou minha atenção. Várias torres muito altas onde não existiam. Construções, das quais não tinha lembranças. Será mesmo que eles foram construídos em tão pouco tempo? Não conseguia me lembrar de alguns edifícios. Monumentos conhecidos também não se encontram onde deveriam estar. Outros estavam onde nada existia. Meus pensamentos só conseguiam aventar uma conclusão.
_ Tudo isso não passa de sonho. Com certeza ainda estou em animação suspensa.
Mas que filme, que sonho, estava acordado e lúcido. Tudo era muito real. Podia perceber e ouvir o zunido de insetos ao redor, podia sentir o calor do sol, podia ouvir o mínimo ruído, pois o silêncio que jamais sentira estava acontecendo. O som que ouvia era de pequenos insetos, do vento embalando as folhas das árvores, do meu pisar no terraço. Em dados momentos tinha a impressão de que ouvia o som dos raios de sol batendo contra os objetos. Contra minha pele branca e despigmentada.
Por um instante senti um forte mal-estar e parecia que o mundo rodava. Eu era o centro e tudo girava ao meu redor. Quase caí. Perdi o equilíbrio e não tinha ninguém para me ajudar. Segurei em uma haste que havia no parapeito do mezanino e permaneci firme até que o mal-estar passou. Quando voltei à minha consciência procurei um lugar à sombra para sentar e esperar por uma recuperação mais completa. Estava molhado de suor frio. Tomei um pouco de água, pois a língua estava seca. Depois de alguns minutos, sei lá quantos, resolvi me levantar e caminhar pelo terraço, chegando à conclusão de que meu momento de instabilidade era consequência do que estava acontecendo. Do que estava vendo. Acordara de um coma prolongado, mantido por aparelhos. Estava ainda em convalescênça tentando há vários dias me manter de pé e, quando consegui vencer as barreiras do local, descobri um mundo em ruínas. Descobri enfim, o que era o silêncio. Descobri o que era destruição. Descobriria logo mais o que era solidão. Tudo isso era demais para o meu corpo, meu ego e meu intelecto.
Perguntas e mais perguntas surgiram em minha mente. Dúvidas e dúvidas, uma vez que nada do que acontecia e via fazia algum sentido. Pensava, pensava e não encontrava respostas satisfatórias.
Voltei ao ponto de onde tivera a trágica visão e encontrei tudo como vira antes. Da mesma forma. Devastação ao norte, ruínas ao sul, transformação ao leste. Não via uma movimentação se quer, a não ser de algumas aves.
O sol denunciava mais ou menos 10 horas. Tinha nesse momento à minha frente o nascente, e uma visão que poderia ser privilegiada e muito bela, não fosse a presença da destruição. Olhei para cima e perguntei.
_ Será que o mundo está parado nesse ponto há quantos anos?
Mais uma pergunta, mais uma dúvida. Caminhei pelo terraço do prédio desviando da vegetação e de coisas caídas. Passei por um e mais outros obstáculos procurando um novo ponto de vista, mas o que via era sempre a mesma coisa. Desolação, silêncio e transformação. Tanto pelo nascente, como pelo poente e pelo sul tinha uma visão muito ampla do mundo devastado.
_ Meu Deus o que está acontecendo? Preciso de uma resposta satisfatória.
Coloquei as mãos nos olhos e caí de joelhos no piso como que buscando uma resposta do alto ao lembrar que tinha formação cristã. A resposta não vinha. Por mais que eu insistisse. Fiquei ali, ajoelhado com a cabeça entre as pernas, as mãos no piso enquanto as lágrimas escorriam de maneira abundante. Não sei por quanto tempo fiquei ali naquela posição até que tomei uma decisão.
_ Vou procurar nos computadores. Eles devem ter alguma pista do que aconteceu. Pensei balbuciando. Estava descobrindo que não tinha com quem conversar. Então, conversava comigo mesmo.
_ Tudo isso é loucura. Não pode estar acontecendo.
Antes de iniciar a descida pelas escadas, lembrei-me de olhar novamente a cena na esperança de que ela mudasse mesmo que fosse por encanto. Decepção novamente. Não poderia mudar aquilo que já havia sido transformado. Aquilo que um dia era pura agitação de pessoas, veículos, aviões e trens, agora era só ferrugem e amontoado de restos de construções e de máquinas.
_ Mas como isso foi acontecer? Terá ocorrido uma grande explosão, uma epidemia?
_ Só pode ser obra de grupos políticos radicais. Mas qual grupo possuía arma tão poderosa? Somente alguns países tinham armas de destruição em massa e em número suficiente para acabar com a população do mundo. Mas qual deles iniciou ou fez tudo isso?
Ao caminhar pelo terraço tropecei em algo e ouvi um estalo de coisa quebrando. Olhei para baixo e percebi que tinha pisado em um osso. Muitos outros estavam num canto do terraço onde eu ainda não tinha visto. Vários ossos. Olhei direito e me dei conta de que havia vegetação e ossos por todos os lados em vários pontos do terraço do prédio. A vegetação, embora de pequeno porte, ao certo não era recente ali.
_ Mas esses ossos são humanos! Isso aqui é um crânio.
Sim. Eram mesmo ossos humanos. Não poucos. E estavam envelhecidos e espalhados por todos os lados. Minhas dúvidas cresceram, pois não eram apenas ossos humanos. De aves também. A vegetação nasceu e cresceu depois que foram abandonados ali. Era uma das minhas únicas conclusões.
_ Um arbusto nasceu e cresceu dentro desse crânio. Loucura. E olha que ela está adulta apesar de ser de pequeno porte.
_ O que teria acontecido?
Era a pergunta que no momento sufocava as demais. Pensei em sair pelas ruas e investigar mais de perto aquela situação. -Ruas? Que ruas? -Não vi exatamente as ruas. Apenas sinais onde elas possivelmente existiram. Agora só existe caos e destruição. _ Ao pensar em descer do mezanino e procurar a terra firme, uma onda de medo me passou pela cabeça e parei para pensar. Em um canto da mureta do terraço fiz menção de sentar-me, mesmo percebendo que estava imunda. Vento, chuva certamente incidiram nesse local além de muitas aves pousarem por ali todos os dias depositando dejetos e sementes de várias espécies. Essas foram se transformando em arbustos de frutíferas diversas, aonde as mesmas aves e seus filhotes vinham alimentar-se e reproduzir. Com isso minha mente foi invadida por uma esperança. Se há aves, deve haver animais, e pessoas. Em algum lugar, com certeza, existem pessoas assim como eu. Novamente o temor invadiu minha mente e procurei conter meus pensamentos que a esse ponto relampejavam ideias e mais ideias. Fazia histórias e inventava soluções. Criava hipóteses e procurava respostas. Mas as dúvidas não paravam. Só aumentavam. A cada pergunta nenhuma resposta, somente mais dúvidas.
O prédio onde eu estava abrigado até então, estava praticamente preservado: portas, janelas, paredes e tudo que já havia visto estava mais ou menos funcional, com exceção da sujeira acumulada e do que havia encontrado no terraço. Algumas janelas na parte externa estavam cheias de trepadeiras e teias de aranha. Até mesmo a porta que dava acesso ao mezanino e outras por onde havia passado, as quais estiveram fechadas por tanto tempo, agora abriram sem grandes esforços. No seu interior, os móveis e utilitários pareciam em ordem, e apesar da sujeira acumulada a maioria parecia apta a funcionar. Pelo menos os equipamentos emergenciais de algumas das salas que eu havia testado.
Eu era um observador impaciente, mas bastante detalhista a ponto de voltar para verificar situações até então despercebidas. Voltava quantas vezes fosse necessário até me conscientizar da situação. Mesmo sem as respostas básicas. Como tantas perguntas vitais, continuavam sem respostas, cria que elas estavam ali mesmo. Aliás, estavam em todos os lugares. Deveria, então, procurar e reunir elementos para, pelo menos, aventar sobre as hipóteses. Eu não era o tipo que gostava de hipóteses. Mas de respostas. O que eu faria de agora em diante era buscar explicação para essas e outras dúvidas que porventura aparecessem.
Então me voltei para porta e notei que do lado de dentro ela estava mais limpa do que do lado de fora. No interior do prédio tudo estava em melhores condições. Do lado de fora ao contrário. Nessa luta de observações, pensamentos e dúvidas, o dia terminou, o sol se pôs no horizonte e as estrelas começaram a brilhar.
_ Bom pelo menos o céu parece o mesmo. Com certeza não estou em outro planeta.
A partir do momento em que vira o cenário de devastação não tive mais fome, até que de tanto pensar nas possibilidades e impossibilidades, adormeci de tão cansado. Isso, após descer as escadas quase no escuro total, agora que meus olhos voltaram a reagir com a presença de luz solar.
Na manhã seguinte passei o dia quase todo observando o caminhar do sol pela abóboda celeste através da sombra projetada de alguns elementos referenciais. Assim, resolvi me exercitar no terraço para onde trouxe algum alimento e água. Quando anoiteceu já havia traçado o caminho do sol e percebido que do nascente até o ocaso ele caminhou mais pelo equinócio do verão, ou seja, mais pelo hemisfério sul.
_ Vou ficar aqui até o anoitecer para verificar melhor se a posição da Terra é a mesma em relação às constelações visíveis.
Pensei assim, pois me passou pela mente a possibilidade de uma catástrofe mundial como desalinhamento dos planetas, ou coisa parecida. A própria Terra poderia ter sofrido um grande impacto ao ponto de mudar sua posição em relação aos seus polos.
_ Amanhã vou procurar por instrumentos mais precisos no interior desse prédio. Tem tanta coisa por aí e posso encontrar no meio de tudo, o que preciso para isso. Nos laboratórios de pesquisa, obrigatoriamente terão equipamentos diversos. Também outras pessoas podem ter sobrevivido em outras cápsulas como a minha. Procurarei por elas, com certeza devem estar em locais diferentes como previa o projeto. Afinal, quando alguém acordava, cumpria uma quarentena longe de pessoas não autorizadas. Se eu sobrevivi, outras pessoas devem ter sobrevivido. As cápsulas que encontrei até agora estavam desativadas, mas devem existir outras. Se houverem vou encontrá-las. Elas trarão respostas e, com certeza, chegarei a alguma explicação.
Resolvi passar a noite do lado de fora, pensando e observando o céu e o horizonte.
_ Na verdade o céu está lindo, e limpo como numa noite de outono. Cheguei a esta conclusão esquecendo por um momento a sombra dos acontecimentos.
No horizonte, por mais que eu procurasse por um foco de luz artificial eu não encontrava nenhum. Algum ponto de luz que pudesse indicar a presença de pessoas. Mas nada vi a não ser vaga-lumes errantes à procura de um local para pousar. A noite toda foi do mesmo modo. O horizonte parecia misturar o céu em perfeita ordem com a terra em pura desolação. Como era noite não conseguia distinguir onde a ordem se encontrava com a desordem. Assim como não conseguia distinguir onde os pensamentos se encontravam com a realidade. Não queria de forma alguma aceitar aquela situação. Dizia em monólogo.
_ Amanhã tudo será como antes.
_ Estou certo disso. Tenho que acordar desse pesadelo.
_ É que já estou ficando cansado de tanta dúvida.
Estava certo, que na manhã seguinte o dia estaria como no seu tempo de consciência. Será?
Mais uma vez a solidão caiu como a noite, com tanta intensidade que senti arrepios e um peso enorme sobre meu corpo. Parecia que a terra toda estava sobre mim.
Olhando para o céu pude perceber uma estrela brilhante a leste e fiquei olhando-a na esperança de ver nela um pouco de alívio para a minha solidão. Não precisa ser nenhum astrônomo para reconhecer a nossa irmã e vizinha, Vênus. A estrela mais brilhante que aparece sempre ao anoitecer e permanece visível a noite toda nos dias de céu desprovido de nuvens. Posso acreditar que a Terra não mudou a posição pelo menos em relação ao Sol e aos demais planetas do seu sistema.
Horas depois a Lua surgiu no céu, fazendo e sugerindo o mesmo caminho da estrela. Senti no coração um forte aperto, não sei se pelo romantismo de não ter visto essa imagem há vários anos ou se pela solidão imposta pela situação. Ela foi subindo lentamente pelo céu passando às vezes por trás de rajas de nuvens, conferindo ao momento um espetáculo tão intenso que sempre me fazia esquecer todas as minhas dores. Conferi outras estrelas e constelações inclusive o Cruzeiro do Sul, o qual pela posição confirmou minha teoria de que o planeta continuava no mesmo lugar e na mesma posição. Pude ver e ainda me lembrei das três estrelas, Mintaka, Alnilam e Alnitak. Na Constelação de Órion; as Três Marias.
_ Que saudade dos meus tempo de jovem apaixonado quando fazia serenata para minha noiva. Gostava de observar as estrelas e as constelações. Quando criança pensei que seria astrónomo.
Pelo menos um alívio pude sentir naquele momento. Tinha a certeza de que estava na terra e que esta não sofrera nenhum dano maior. Estava na posição correta em relação ao sol e demais astros celestes.
Lágrimas desceram pela minha face talvez mais por incerteza do que por certeza. Mais por medo do que por qualquer outra sensação. Certamente estava perdido em meus pensamentos e em meu mundo. Essa certeza era por enquanto a única que dominava minha mente inquieta.
Providenciei alguns materiais do interior do prédio para fazer uma pequena limpeza e forrar o piso para pelo menos me recostar quando cansasse. Como o frio foi aumentando passei para o interior da sala protegido pela vidraça da porta e acabei por dormir pelo menos por momentos, envolto mais em meus pensamentos e devaneios do que em lençóis e cobertores velhos.
O que estava acontecendo era algo nunca imaginado por mim ao longo de minha vida. Creio que por nenhum dos componentes do projeto. Apenas na literatura existiam pessoas de imaginação fértil capaz de enredar histórias tão incríveis. Mas vivê-las... creio que somente eu.
_ Sou um felizardo ou um azarado? Questionei diante de tais pensamentos.
O cansaço e o sono não permitia que eu continuasse pensando e enredando estórias. Quando acordava depois de um cochilo outro pensamento vinha. Monstros e zumbis caminhavam em minha direção e eu acordava novamente. De repente eu corria de mãos dadas com minha filha de 7 anos, no parque em frente à nossa casa. Eu fazia uma refeição à base de verduras, legumes e frutas, em companhia da esposa que mostrava um largo sorriso todas às vezes que nos encontrávamos. Nosso cão peludo chacoalhava jogando água fria para todos os lados quando eu o banhava no quintal. Fazia a festa latindo e correndo em voltas enquanto minha esposa sorria com gargalhadas livres, como era de sua personalidade, e procurava me ajudar. Eu podia ver o seu sorriso de afastar de mim lentamente até sumir, e então acordava novamente.
Outro pensamento vinha. Não sei ao certo se era pensamento ou sonho mal sonhado, pesadelo. Várias pessoas de jaleco branco me rodeavam com instrumentos estranhos nas mãos. Sabia que eram pessoas conhecidos, mas me encontrava agonizante e apavorado, em uma espécie de maca hospitalar, imobilizado e ausente do meu corpo. Nada podia fazer por baixo de uma luz fortíssima e sem cor. Esses fleches de luz ou de pensamentos iam e vinham de vez em quando. Por isso não conseguia me manter acordado nem dormindo.
Quando acordei de fato o sol já havia distanciado do horizonte cerca de seu tamanho. Seus raios invadiam o local e começavam a aquecer minha face exposta. Ao mesmo tempo um vento começava a soprar da banda do norte. Uma pesada camada de nuvens se formava com uma tonalidade clara por cima e azul profundo por baixo. Tinha uma das extremidades tocando o horizonte e a outra levemente elevada. O que sobrava por baixo era esbranquiçado.
_ Será chuva? Perguntei para mim mesmo e respondi de imediato.
_ Certamente. Uma frente fria, pois creio que estamos no outono.
_ Se soubesse que era época de chuva teria ficado dentro de casa.
Anotei em minha memória investigativa. Mais uma evidência de que muita coisa não mudou. Resta ver se a chuva vem mesmo e como será. Água pura ou ácida? Radioativa?
Quando essa palavra veio à minha mente, senti um arrepio que percorreu em um segundo, dos pés a cabeça. Minha mente virou, rodopiou e quase caí por terra.
_ Como não pensei nisso antes? Deus do céu. Aqui fora pode não ser um local seguro. Pouca coisa sobrou com vida. De repente corrigi os pensamentos com uma conclusão.
_ Se fosse chuva ácida certamente outras já tinham acontecido e matado essas plantas, que por sinal estão muito lindas, com folhas e flores perfeitas.
Um novo pensamento chegou rapidamente afastando os primeiros e ele procurou confirmação no meio do caos que via a cada nova observação. Vamos ver se os restos das construções revelam sinais de explosão ou desabamento. Se alguma força catastrófica irrompeu de cima para baixo ou caminhou na horizontal.
_ Essa é uma resposta que preciso ter antes de entrar e fechar novamente a porta.
A maioria das árvores estão vivas, posso ver lá em baixo. Não existe uma quantidade razoável de árvores mortas no meio das demais. Alguns animais e aves ainda vivem. Como a vegetação invade os destroços das construções não dá para ver daqui e sem equipamento, se houve explosão.
_ A princípio, creio que, se houve uma catástrofe radioativa ela já baixou a ponto de permitir o surgimento da vida e dessas árvores que já estão adultas. Elas tem pelo menos quarenta ou cinquenta anos de idade.
Essa frase quase não saiu mesmo que fosse só em pensamento.
_ Quarenta, cinquenta anos?
_ Não. Não pode ser. Não fiquei tanto tempo confinado. É loucura.
Mais de quarenta, pois o que destruiu a cidade já aconteceu, e outras árvores já cresceram no local.
Voltei o olhar, procurando avaliar a distância e com uma pequena haste encontrada medi a altura de algumas que se encontravam mais distintas. Vinte metros de altura, mais ou menos. Não reconheço as espécies, mas árvores não chegam a essa altura em menos de quarenta ou cinquenta anos. Algumas espécies podem não gastar tanto tempo, mas a maioria sim. E quase todas estão praticamente do mesmo porte.
A confusão mental me invadia e crescia a cada nova descoberta. A cada detalhes que via e analisava. Ficaria louco se não parasse de pensar ou não encontrasse uma resposta plausível.
_ Não pode ser verdade. Devo estar delirando. Vou enlouquecer, se é que já não estou. Se não encontrar respostas satisfatórias não sei o que será de mim.
_ Na verdade, respostas não resolverão meus problemas. Pensei introspectivamente.
O vento aumentava e a camada de nuvem começava a cobrir o sol e impedir que seus raios brilhassem. _Como no tempo em que eu era lúcido. Pensei. Reprovei em seguida tais pensamentos quando observei que alguns paturis e outras aves voavam nas proximidades, talvez acompanhando as correntes eólicas favoráveis.
Uma ave pousou na mureta do terraço, talvez para descansar, ou quem sabe atraída pela minha presença. A ave voava; a ave pousou, a ave está perfeita. Concluí com esse raciocínio objetivo. Inferi de imediato uma verdade sobre as assertivas. Logo, não há radioatividade. As árvores nasceram de sementes, elas cresceram e estão vivendo; logo não há radioatividade. Voltei atrás e disse novamente.
_ Se há, ... é baixa o suficiente para que eu explore o local. A princípio, pelo menos as cercanias do prédio. Mas primeiramente vou procurar algumas respostas daqui de cima mesmo, de onde já inferi algumas, ainda que parciais.
Adentrei ao edifício e iniciei a descida das escadas, tropeçando na escuridão. Já havia confirmado que os elevadores não funcionavam. Mas antes fechei manualmente a porta e coloquei um sistema de trava improvisada para que não abrisse por fora. Por medo, também por causa da tempestade que chegou com muita força.
Ao descer os primeiros degraus da escada comecei a sentir que a iluminação não era suficiente como antes. Era realmente uma penumbra que para minha acomodação visual de anos no escuro era suficiente. Agora com as pupilas contraídas pela claridade do sol, a penumbra se fez verdadeiro escuro.
- Vou procurar em outras salas, outros laboratórios, até encontrar outras cápsulas. Certamente vou encontrar pessoas dentro delas. Podem estar precisando de ajuda.
_ Juntos nós iremos encontrar outras cápsulas, e também descobrir o que aconteceu.
Capítulo 4
Mesmo com pouca luz no interior do prédio estava decidido a explorar todos os seus compartimentos em busca de outras cápsulas. Mesmo que tivesse de procurar por todos os recantos. Tinha certeza de que as encontraria e com elas, outras pessoas.
Usando lanternas percorri as escadas degrau por degrau, passando por vários pavimentos, a partir de onde eu estivera adormecido. Poucas vezes usei as espaçosas rampas sugestivas de ambiente hospitalar para subir ou descer. Apesar de amplas me metiam mais medo do que as escadas. Estas eram sempre mais iluminadas naturalmente do que as rampas, apesar dos filtros colocados nas vidraças.
Do terceiro pavimento para cima comecei a encontrar ambientes que me levaram a crer que estava no caminho certo, deduzindo que neles encontraria o que procurava. Várias portas semiabertas permitiam ver parcialmente o que tinha depois delas. Tinham nas laterais pequenos painéis com botoeiras para a liberação o que não precisavam ser usados na maioria delas. Salões enormes com cadeiras enfileiradas, várias mesas, balcões com sequência de vários guichês numerados, separados por uma parede de vidro grosso com aberturas na parte inferior. Painéis de aviso apagados e utensílios diversos. Todos iluminados com tão pouca luz que mal eu conseguia ver a parede branca, ou quase branca no final, e os utilitários nelas contidos. Foi com muita dificuldade que percebi a presença de uma mesinha com um bebedouro de água, uma garrafa térmica com xícaras, um porta-copos descartáveis, fixo na parede e um coletor de usados logo abaixo. Encontravam-se praticamente escondidos em um canto mais escuro ainda do que o restante do ambiente.
Salas menores anexas lembravam consultórios médicos, com camas ou macas, guarnições, poucos móveis e nenhuma decoração que pudesse ser considerada expressiva. Pequenos aparelhos de som, às vezes, frigobar e monitor com teclado. Cheguei a tocar em uma cortina e senti a textura do pó acumulado na superfície. Creio que se puxasse um pouco romperia com facilidade. Outras salas, ainda, com mesas, cadeiras e terminais de computador, livros de psicologia, de anatomia, armários, divãs e outros utilitários. Consultórios odontológicos e salas preparatórias para exames e coletas de materiais.
Em uma das salas, precedida de duas outras, com portas vai e vem, encontravam-se equipamentos que até então eu não conhecia. Parecia uma mesa cirúrgica, com design futurista, porém com inúmeras possibilidades de manipulação, com holofotes por cima. Ao lado, mesinhas com várias bandejas de aço inoxidável forradas com tecido azul, contendo uma grande quantidade de ferramentas que eu reconheci como de uso cirúrgico. Tinha tantos equipamentos desconhecidos, mas por causa de alguns, associei a uma sala cirúrgica.
Em um pavimento logo abaixo do terceiro, uma sala enorme, com grande quantidade de caixas aguçou minha curiosidade. Pelos rótulos percebi que se tratava de novas cápsulas que ainda não tinham sido montadas. Outras tantas continham computadores, sensores e outros materiais usados na pesquisa. Reconheci a maioria deles.
Em alguns desses locais tudo estava em ordem, impecavelmente arranjados e organizados, porém cheios de pó nas partes planas horizontais. Em outras, parte dos pertences estava desalinhado, com objetos caídos no piso, e algumas portas abertas, tanto as de acesso como as dos armários.
Passei por instalações sanitárias e banheiros, cozinhas e lavanderias. Oficinas que mais pareciam instalações industriais, outras que eu não sabia se eram laboratórios de fica, de biologia ou parte de uma fábrica. Pouco a pouco fui descobrindo o que não queria, e ainda mais, me assustava e aumentava minha apreensão. Carcaças humanas espalhadas em vários locais. Partes delas estavam envolvidas nas indumentárias que mais pareciam uniformes, pois eram todas iguais. Apesar de muita impregnação de poeira, sugeriam que eram originalmente claras. Pelo estado de decomposição ainda dava para perceber emblemas e inscrições. Uma mancha no piso formada por sujidades diversas, formava uma região em volta de algumas das ossadas.
_ Mas esses jalecos e esses emblemas parecem os que usávamos no nosso dia a dia.
_ O que terá acontecido por aqui? Tudo me parece fora de contexto. Só que é real. Real demais para mim.
As posições das ossadas sugeriam que quando as pessoas caíram estavam em ambiente e horário de trabalho, pois umas estavam ao lado de cadeiras, outros próximos às bandejas que possivelmente carregavam além de outras próximas aos locais e objetos de trabalho. Cada ossada formava um esqueleto completo com as partes bem próximas umas das outras.
Em cada pavimento eu passava por pequenas salas e corredores para ter acesso a outras. Não sei por quanto tempo durou essa caminhada, mas me lembro de que parte dela já havia sido feita antes, quando tentava chegar ao mezanino. Desta vez a minha meta era outra e estava mesmo decidido e continuei até encontrar uma porta muito robusta a qual consegui abrir manualmente com muita dificuldade. Não estava travada, mas pelo seu aspecto dava para entender que se tratava de uma porta que limitava o acesso e oferecia grande possibilidade de segurança. Ficava no quinto pavimento limitando o hall de entrada e outra pequena sala provida apenas de poucos utilitários, semelhante a um consultório e sala para pequenas cirurgias.
_ Parece que esta porta possui um sistema de trava automático. Se ela ficou aberta, foi por que não deu tempo para ser fechada ou ainda não era usada para limitar o acesso. Vou entrar e ver o que tem dentro.
Cheguei à outra sala maior que sugeria um ambiente de recepção. Dessa originavam dois corredores que levavam a outras salas menores. Os corredores amplos e infindáveis não permitiam ver o seu final por falta de luz. Mesmo minha lanterna que tinha boa potência era incapaz de iluminar a parede final. Parecia um corredor da morte. Sem fim. Percorri mesmo com dificuldade para ver as coisas, e ler as placas indicativas. Quando não usava lanterna, pouco podia ver, pois o que havia de luz não passava de uma tênue penumbra. Sentia muito medo a cada nova sala e novo corredor em penumbra, ou totalmente no escuro. Não ouvia nenhum som a não ser dos meus passos e do ranger das portas quando eram abertas e fechadas. Algumas delas aumentavam meu temor, pois voltavam e batiam nos portais depois que eu passava.
_ Droga. Merda de porta. Quase me mata de susto.
_ Esse local parece não ter janelas.
_ Muito estranho mesmo.
Andava com cuidado e por vezes sentia um frio arrebatador nas costas. Quando virava para trás, via apenas a escuridão a partir do final do pequeno foco da lanterna e a imagem de algum crânio.
_ Onde encontro coragem para percorrer esse local tenebroso?
_ Na necessidade. Eu mesmo respondia.
Na soleira de cada porta ao longo do corredor tinha uma plaquinha parecida com a que se encontrava na porta da minha sala de hibernação. Apenas com numeração sequencial.
_ Com certeza dentro destas salas há outras cápsulas com outras pessoas para serem reanimadas. Recuei antes de abrir, pois logo abaixo da plaqueta tinha uma recomendação. “Somente pessoas autorizadas”. Logo abaixo, “Não abra antes do prazo determinado”. Um círculo vermelho no piso e na parede indicava a presença de um extintor de incêndio. Mais ao lado, outra marcação e duas lixeiras.
Depois de horas procurando, consegui acesso ao interior da primeira sala. Estava credenciado, logo poderia entrar para averiguação.
_ Droga, essas cápsulas são diferentes das que instalamos quando eu estava no projeto. Com certeza a equipe conseguiu melhorias substanciais para elas. Inclusive para a minha.
Adentrei com cuidado procurando cumprir alguns dos protocolos recomendados. Afinal, não trazia vestes e calçados adequados. Não havia passado por uma assepsia rigorosa, apenas, lavado bem as mãos, o mínimo recomendado. Não tinha luvas, apenas máscara, que por certo estavam fora do prazo de validade. No centro da sala com paredes, teto e piso com revestimentos acrílicos e ao que parece branco, uma estrutura quadrangular com cerca de oitenta centímetros de altura, medindo pouco mais de dois metros de comprimento. Tinha por cima uma cobertura abobadada de material muito resistente e quase transparente. No centro longitudinal, por dentro, pendia um monitor. Tudo parecia em ordem, apenas com a cobertura embaçada, não me permitindo ver o que estava dentro dela. Retirei parte da sujeira do lado de fora, mas ainda não consegui ver nada.
_ Essa não! Está desenergizada.
Não havia corrente elétrica alimentando seus circuitos. Portanto, se havia alguém dentro certamente não sobreviveu. Liguei a chave de força, depois alguns botões e um exaustor instalado na parte posterior do conjunto começou funcionar sugando o ar do seu interior. Em alguns minutos pude ver o que tinha dentro. Apenas drenos, tubos cirúrgicos e tubos para nutrição parenteral fixados em seus suportes nas laterais. Máscaras de gás, conectores e espécies de dosadores automatizados dotados de sensores elétricos para leituras diversas, inclusive o monitor. Exaustores e compressores de oxigênio, termômetros e medidores de pressão arterial, todos inativos. Vários tipos de sensores que eu não reconheci. Tentei consultar o terminal de computador que ficava do lado de fora da cápsula, mas o mesmo não funcionou. Os terminais internos também não responderam aos meus comandos. Retirei os cabos e os instalei novamente, tentando também o quadro de distribuição de energia. Havia alimentação, mas a tela continuava negra e coberta de poeira e teia de aranha. Passei o dedo sobre ela e ficou apenas o sinal da remoção da poeira, onde escrevi a frase, não funciona.
_ Nenhuma resposta nesta sala. Devo tentar outras.
Na segunda sala que visitei a cápsula se encontrava totalmente aberta com a parte superior removida sem sinais de violência. O terminal também não tinha sinal de funcionamento. Na terceira, não tive o trabalho para entrar, pois sua porta estava totalmente aberta e também sem sinais de arrombamento. O foco de luz da lanterna me permitiu ver a cápsula aberta, seus componentes e nenhum corpo ou ossada dentro.
Em todas as salas procurei por informações a respeito dos resultados da experiência, do tempo de funcionamento e em especial o tempo transcorrido desde que aconteceu o desaparecimento das pessoas. Ainda tinha esperança de encontrar alguém em outras partes do prédio.
_ Esta cidade foi amaldiçoada. Quem sabe por um vírus letal e ninguém mais conseguiu sobreviver nela. Possivelmente eu também estou com os dias contados.
Sentei por um curto espaço de tempo em uma poltrona empoeirada numa sala de espera. Estava praticamente escura permitindo ver o mínimo de algumas coisas com muita dificuldade. A melhor fonte de luz que tinha era uma lanterna.
Antes de qualquer coisa ao entrar em uma sala ou tomar um corredor eu vasculhava tudo com o foco de luz da lanterna, para ter certeza de que não havia nenhuma ameaça. Mas, que tipo de ameaça pode ser vista com a luz de uma lanterna?
_ Certamente para economizar energia as lâmpadas estão quase todas desligadas e as demais com carga mínima.
Em uma das salas, de repente a luz aumentou um pouco me assustando a princípio, mas logo me lembrei da possibilidade de haverem sensores de presença e que deveriam estar ativos. Essa luz me permitiu ver o que estava no seu interior e até relaxar um pouco. Pude ler alguma coisa nos painéis, nos cartazes na parede e nos papéis das gavetas. Eram indicativas de ambientes e direcionamentos para outros locais. Agendamentos mencionados com datas próximas e alguns anos depois do que me levou a hibernação. Apenas papéis burocráticos sem datação que me permitisse deduzir alguma resposta. Todas terminavam onze anos e alguns meses após o início de minha hibernação.
_ Mas isso se deu cerca de seis anos depois do tempo previsto para meu despertamento.
_ Tem muita coisa errada nessa história.
_ Não dá para saber por que permaneci na cápsula depois dos cinco anos previstos.
Uma seta recortada em acrílico apontava para uma mesinha logo abaixo, num canto da sala e nela a palavra “Informações”, ainda com possibilidade de leitura. Sobre a mesa, uma agenda com capa retorcida ainda permitia ler a data de onze anos depois de meu ingresso na cápsula. Dentro, agendamentos diversos. A partir dessa mesa, linhas pintadas no piso, embora muito descoradas, permitiam ver que uma era amarela e levava a várias salas numeradas sequencialmente. Outras linhas de outras cores, creio, levavam a outros corredores e outras salas.
_ Certamente outras cápsulas estão dentro destas salas.
_ Animação? Devem ser salas de desanimação, de exames médicos, exames clínicos, fisioterápicos e outros procedimentos pós-retorno da hibernação.
Esqueci-me de que eu era um dos responsáveis pelas mesmas. Estava apenas sendo irônico em momento inoportuno.
_ Como é que eu fui me meter numa encrenca dessas? Bem que minha família não queria.
_ Mas o projeto ia muito bem e praticamente não ofereciam riscos. Tantos testes foram feitos com sucesso. Nunca registramos nenhum incidente fatal ou de proporções não contornáveis.
_ Mas, com certeza surgiram problemas depois que eu fui sedado.
Minhas maiores dúvidas agora eram em relação fato de ser deixado depois do prazo previsto, ao cenário visto fora e dentro do prédio e a falta de pessoas aqui dentro.
_ O projeto não tinha nada que pudesse levar a dimensões catastróficas. O que ocorreu lá fora não tem nada a ver com a nossa pesquisa. Com certeza. Não tem mesmo.
_ Tenho que visitar as outras salas. Tenho certeza de que existem vidas dentro delas. Se eu sobrevivi, outras pessoas também sobreviveram. Não vou desistir gaste o tempo que gastar, vou até o fim disso.
Quase tudo que via estava diferente me fazendo sentir um tanto alheio ao processo. Reconhecia alguns dos equipamentos e sistemas que mesmo possuindo aparência um tanto diferentes apresentavam a mesma estrutura. Serviam para o mesmo propósito. Deveria estar mais inteirado de tudo, pois o projeto tinha minha assinatura. Muito embora conjuntamente com outros pesquisadores, mas eu fui um dos idealizadores. Dessa forma, analisando cada sala e cada detalhe, cada vez mais eu chegava à conclusão de que muitos anos se passaram ao ponto de introduzirem tantas mudanças. Novas tecnologias, novos instrumentos, cápsulas novas e automatizadas, até um novo prédio. Se essa fortaleza toda abrigar apenas o nosso projeto ele cresceu muito. No passado ele era modesto se comparado a essa estrutura.
Apesar de as configurações de muitos ambientes parecerem mais com um grande centro de saúde havia o lado voltado para o projeto. Certamente as duas coisas caminharam juntas, por algum tempo, sabe-se lá por qual motivo.
_ Terá se transformado em uma empresa e está mantendo centenas ou talvez milhares de pessoas em estado de animação suspensa aguardando o final de algum processo?
_ Ou será apenas uma iniciativa nesse sentido?
_ Pode ser. Pode ainda ter caído nas mãos de pessoas inescrupulosas, ou do próprio governo, e isto é mais um motivo para que o investigue com cuidado.
Com a falta de energia na maioria dos locais e a pouca informação, eu muitas vezes me encontrava perdido entre salas, ambientes e ideias, muito embora soubesse que tinha de continuar investigando. Certamente com a previsibilidade de uma catástrofe, o que realmente ocorreu, centenas ou até milhares de pessoas deveriam ter sido colocadas em cápsulas dentro dessa fortaleza para acordarem quando tudo terminasse. Dessa forma, penso eu, o sistema foi programado para que eu acordasse primeiro justamente para ajudar os outros. Eu que ajudei na elaboração do projeto e das primeiras cápsulas teria condições de ajudar as pessoas à medida que fossem despertando.
Os devaneios tomaram conta de minha cabeça e comecei a ver minha esposa, minha filha e pessoas amigas em cápsulas, suplicando por minha ajuda. Isso me deu mais coragem ainda para continuar a procurar por elas. Se o mundo tivesse acabado, essas pessoas, muito embora poucas, seriam suficientes para dar início ao ressurgimento da humanidade.
_ Tudo isso é conjectura. Apenas conjectura. De qualquer forma vou abrir as demais que encontrar e descobrir o que de fato aconteceu.
Outras portas e as respectivas cápsulas foram sendo abertas uma a uma, constatando o que havia dentro delas. Realmente inspecionei um grande o número delas. Em pavimentos diferentes, em salas diferentes e até capsulas diferentes. Realmente em muitas delas havia carcaças humanas, com sinais de que os aparelhos estavam ligados quando estas morreram. Outras já foram encontradas abertas, com sinais de que foram usadas e abandonadas, mas não encontrei ninguém vivo dentro delas ou do prédio. Perdi a conta de quantas salas e quantas cápsulas eu inspecionei, nos vários dias que se seguiram. Talvez centenas delas. De qualquer forma somente desisti depois de muitos dias de busca se tornando tudo em vão.
_ Agora, pelo menos tenho a certeza de que ninguém mais sobreviveu nas minhas condições.
Não sei quantos dias durou essa busca. Não foram poucos. Todos os dias, um após o outro eu reiniciava minha procura. Somente cápsulas vazias, ou carcaças humanas. Nada mais. Até o fim.
_ Tenho que fazer outras coisas menos estressantes ou posso morrer de angústia. O estresse está sugando todas as minhas energias. Esse ambiente fechado está começando a me intimidar. Essa procura infrutífera está me esgotando.
_ Já sei. Vou procurar uma saída desse prédio. Preciso saber onde estou, ou onde estão as pessoas deste lugar.
Antes teria que subir novamente ao topo do prédio, de onde poderia examinar melhor o que estava ocorrendo do lado de fora. Se não existem pessoas aqui dentro, lá fora, com certeza, existe um milhão delas. Farei algum sinal para que me vejam e venham abrir a porta para minha liberdade.
_ Tenho que verificar todas as possibilidades antes de forçar a abertura da porta e enfrentar esse mundo desconhecido. Não sei ainda o que tem lá fora.
Por fim estava tão cansado que resolvi sentar para descansar, pensar e planejar algo para os dias seguintes. Foi o que fiz. Tomei alguns energéticos recomendados e aguardei mais um dia para reiniciar minhas observações do mundo fora da fortaleza.
Voltei aos meus aposentos, muito abatido pelo cansaço e desiludido pelo fracasso joguei-me na cama que removi para o local que elegi para dormitório; ao lado de um banheiro e um laboratório transformado em cozinha. Creio que não tive forças para mais nada nesse restante de dia. A noite caiu sem que eu percebesse, mesmo porque ela sempre vinha de maneira sutil por causa da penumbra reinante dentro do prédio. A névoa da escuridão bateu à porta da minha alma e adormeci gemendo de agonia.
Capítulo 5
Desde o início de minha movimentação pelo interior do prédio eu procurava também por instrumentos capazes de me auxiliar na sobrevivência e na busca por respostas. Afinal, já tinha se passado cerca de cinquenta dias desde que acordei.
Nesta busca cheguei à conclusão de que o edifício era na verdade uma enorme fortaleza com paredes de concreto, provido de poucas janelas e pontos de acesso limitados. As janelas colocadas em pontos estratégicos, talvez onde oferecessem menores riscos, serviam mais como estética e talvez alguma forma de disfarce. As duas portas, tanto no solo como no mezanino, eram muito reforçadas e a maioria das janelas ofuscava a entrada e saída de luz. Um sub-solo com alguns pavimentos dentro do chão e uma torre de vinte e um andares acima do nível do solo. O ar que entrava no seu interior para manutenção, parte era duplamente filtrado e parte era gerado a partir de equipamentos. Cada sala e cada laboratório possuía ar e iluminação independentes. Toda a energia era produzida por grupos de geradores movidos por um pequeno reator nuclear, juntamente com geradores eólicos e placas solares. Esse conjunto favoreceu e proporcionou a continuidade do sistema por todos os anos que estive dormindo. A água era sugada automaticamente por bombas a partir de um poço perfurado no sub-solo e depositada em tonéis herméticos. Aos poucos fui descobrindo todos esses detalhes.
Máquina fotográfica, binóculos, contador Geiger e outros instrumentos como trena a lazer, foram localizados em um almoxarifado de equipamentos e ferramentas. Muitos deles não funcionavam a contento. Ali encontrei uma série de utilitários para diversas atividades. Todos ainda embalados de maneira especial para durar por tempo prolongado. Eram equipamentos que muito ajudaram nas minhas buscas. Os equipamentos que não estavam embalados adequadamente não apresentavam funcionamento regular. Tinham crostas de ferrugem e outras evidências de falta de uso e tempo prolongado.
Encontrei também um depósito de combustível, que apesar de não estar puro possuía quantidade suficiente para me deslocar fora do domicílio por muitos anos. Veículos, muito embora sem condições de funcionamento estavam próximos ao depósito. Agora tinha que montar um plano para sair e buscar as respostas que tanto queria.
_ Tenho tudo que preciso. Ou melhor, acho que tenho. Só me resta sair, seja a pé ou em um desses veículos. Se conseguir fazer algum deles funcionar. E ao que parece, também se encontrar vias para trafegar.
Antes teria ainda muitas coisas para descobrir e incorporar aos planos de busca. Os computadores poderiam me ajudar muito. Porém, até o momento os arquivos úteis ainda não tinham sido localizados.
_ Certamente tenho que abrir estes arquivos para ver os seus conteúdos. Se é que podem me ajudar com informações úteis para encontrar outras formas de arquivo e também meios para minha sobrevivência. Assim encontro também respostas para todas as minhas dúvidas.
_ Opa, o que é isso?
_ Parece algo importante.
_ São partes do projeto e possuem dados importantes. O ano de seu início, as pessoas envolvidas, endereços, objetivos, protocolos e outras informações. Esquemas dos equipamentos. As inovações. Tudo digitalizado nos arquivos do banco de dados.
Pelo que consta muitas partes foram acrescentadas alguns anos depois do início de minha hibernação. Foram melhorias significativas.
_ Veja bem. Um novo software para controlar todas as funções das cápsulas. Até agora nada comprometedor, apenas atualizações e adaptações para o novo prédio. Nada que se refere à minha transferência para esse local.
_ Esse aqui contém as plantas do edifício. Vou estudá-las para conhecer o ambiente que manteve a minha vida por tantos anos mesmo sem ajuda direta do homem.
Depois de muitas tentativas consegui abrir algumas janelas do prédio para melhor iluminar e ventilar o local economizando energia elétrica. Assim que uma delas era aberta em um ambiente as luzes internas apagavam durante o dia. Alguns exaustores continuavam funcionando para renovar o ar no seu interior.
Sempre, depois de um dia de trabalho caía na cama exausto, quando não encontrava mais forças para continuar pesquisando. Procurei a minha cápsula depois de ela se distender o suficiente para o meu conforto. Às vezes ainda a usava para dormir, pois me sentia mais confortável e seguro nela, mesmo sem fechar totalmente a abóbada. Nesta noite, antes de dormir, tracei mentalmente um plano para o dia seguinte. Teria que ter muito cuidado pois realmente não sabia o que me aguardava do lado de fora do prédio. Ia sair pela primeira vez para pisar em um mundo totalmente novo e desconhecido para mim.
Pela manhã, primeiramente, tentei fazer funcionar um dos veículos que se encontravam na garagem, na esperança de usá-lo para sair com mais segurança. Mas nada. Um veículo que ficou parado tanto tempo, ao que parece, não funciona assim tão facilmente.
Como a garagem se encontrava ao nível do solo isso facilitaria a saída e o acesso. Os projetos da construção que encontrei informavam a respeito desse ponto, mas não ensinava como fazer funcionar um veículo parado depois de tantos anos. Com certeza não encontraria nada que me ensinasse a viver sozinho no mundo. Também não havia encontrado ainda o sistema de liberação da porta.
_Quantos anos fazem mesmo desde que adormeci? Não encontro resposta em nenhum lugar. E ao que parece, não foram apenas cinco anos.
_ Bem. Tudo indica que prolongaram pelo menos mais seis anos depois ao previsto inicialmente. Porque prolongaram esse prazo sem o meu consentimento, não sei.
Buscava essa resposta, talvez mais do que qualquer outra. Afinal, as coisas mudaram extremamente desde então. Sabia o ano do início mas não sabia o atual. Os computadores disponíveis tiveram de ser ressuscitados com novas baterias internas e com isso os programas que executavam os cronogramas zeraram o calendário. O que controlava a minha cápsula, não sei porque, apresentava uma data muito estranha. Não acreditava nela.
Por medida de segurança, talvez medo, voltei ao topo da fortaleza para a partir de lá fazer algumas observações mais detalhadas. Identificar os animais que frequentavam as imediações, se eram bandos grandes ou apenas exemplares solitários. Os horários preferidos por cada espécie. Os predadores ou os agressivos eram os que mais me assustavam, pois não tinha conhecimento nenhum a respeito de como me defender deles em situações de confronto. Quando lá do alto, vi alguns dos mais ferozes predadores da América do Sul, quase desisti de abrir a porta da garagem e muito menos de sair de forma desprevenida.
_ Realmente não estou pronto para enfrentar essas feras. Sei lá se existem outras que não conheço. Preciso investigar melhor para conhecer esses bichos.
Foi o que passei a fazer por alguns dias depois de levar os equipamentos para o terraço. De lá eu observava tudo que se passava no meio da floresta, nas ruas apinhadas de arbustos e veículos enferrujados. Por entre as construções em ruínas. Na pequena parte do mar e do rio que conseguia ver.
Fiz algumas fotografias e filmagens em várias direções com grandes aproximações. Testei o cartão de memória da máquina no computador de mão para verificar a qualidades das tomadas.
Consegui observar alguns ataques de onças a um bando de porcos selvagens, e até de uma enorme sucuri se enrolando em um veado e engolindo-o inteiro. A presa indefesa nada pode fazer. Observei por vários minutos a passagem de duas suçuaranas por entre as árvores e arbustos em direção ao curso d’água nas proximidades. Cachorros que antes eram domesticados agora andavam em bandos e nenhum outro animal ousava se aproximar deles.
_ Minhas tomadas fotográficas ficaram ótimas. Vou registrar tudo, pois não sei no que vai dar minha vida. Com certeza elas servirão para mim mesmo ou talvez para outras pessoas. Não sei como, nem quando.
Cheguei à conclusão de que valia a pena, tão logo a primeira imagem se abriu. _Também pudera, essas máquinas fazem tudo praticamente sozinhas. _Instalei uma boa luneta em seu suporte sem retirar a máquina fotográfica do tripé. Além de observar cuidadosamente as feras, buscava também por sinais de vida humana, de possíveis explosões ou guerra química. Meu maior temor além das feras, eram os efeitos do desastre que via lá em baixo.
A forma como a vegetação cresceu em meio ao amontoado de casas, edifícios, veículos deformados, pontes e demais locais que podiam ser vistos me deixou extasiado. A maioria das construções parcialmente destruídas de forma igual, sugeriam desgaste natural pelo passar do tempo e as suas intempéries, sem a presença do homem para fazer a devida manutenção ou restauração. Árvores sobre terraços de edifícios, os que ainda se mantinham de pé, é claro. Vegetação rasteira, de várias espécies por todos os lados, inclusive nas trincas das paredes e pequenas projeções das construções.
_ Com essa luneta posso visualizar e analisar melhor a grandes distâncias.
Como eu não era especialista em botânica não sabia dizer o nome da grande maioria das árvores. Procurei calcular a altura de algumas delas descobrindo que passavam dos vinte metros. Algumas com tronco que poderia chegar aos dois metros de diâmetro. Havia flores em muitas delas e isto me reportou ao meu romantismo do passado, quase me levando às lágrimas, lembrando de episódios com minha família, na escola e mesmo no trabalho. Relembrei que no pátio do prédio onde iniciara as pesquisas havia um belo projeto de paisagismo com várias espécies de árvores nativas, algumas frutíferas, floreiras de várias espécies. Nesta inspeção procurei até mesmo localizar algumas das que mais gostava, mas meu objetivo era estabelecer uma relação entre elas e o que ocorreu no passado. Quanto tempo passou desde o ocorrido. Apesar de haverem muitas árvores já mortas no meio das demais, havia também troncos caídos. Muitos deles necrosados naturalmente.
Uma chuva começou a cair bem na hora em que ia distender a luneta para fazer uma busca mais longe. Tive que desmontar rapidamente o equipamento e carregá-lo para dentro. Aproveitei para comer alguma coisa. Estava a todo tempo beliscando algum tipo de conserva e não sabia exatamente o porque. Somente meses depois percebi que meu organismo ficou muito debilitado pelo longo tempo dentro da bolha, agora exigia que eu ganhasse peso e massa muscular.
Do lugar onde fiquei aguardando que a chuva parasse, pude fotografar as rajadas parabólicas que desciam encantando o cenário. Sempre fui um apaixonado pelas chuvas. Quando um trovão ecoava distante, meu coração disparava me levando para um passado remoto e uma situação ainda mais longe. A cada relâmpago, a cada brisa que desviava as gotículas de chuva, meu pensamento me transportava para um reino que não mais existia. A luneta nesse momento pouco ajudou, pois a chuva era bastante espessa e impedia que eu visse o que estava mais distante.
A chuva do dia anterior trouxe alguns pássaros, ao que parece, frequentadores desse lugar. Eram patos e paturis que depois pude observar, gostavam de se banhar nas poças que se formavam no alto do prédio longe dos predadores das lagoas.
_ Interessante, será que lá em baixo não há lugar para vocês se banharem? Falei com eles, pois eram os únicos viventes além de mim.
Ninguém respondeu.
_ Não estão interessados em mim. Interessante, nunca vi nada igual. Disse para mim mesmo.
Entendi apenas que era por causa do acumulo de água no local e a presença de pouca vegetação. Por isso podiam descansar e tomar banho sossegados ou simplesmente gostavam do lugar. Não dei muita importância.
Quando a chuva passou o sol já se encontrava no meio do céu e meu estômago roía de fome.
_ De novo? Indaguei.
_ Meu organismo pede, eu o alimento.
Preparei alguma coisa com a conserva e os frios que havia encontrado no depósito. Enquanto esperava a água da chuva escoar pelas tubulações e enxugar o piso do terraço para voltar à minha busca, aproveitei para descansar um pouco e limpar das lentes o excesso de umidade. Isso demorou um pouco, a ponto de me deixar impaciente. Joguei as imagens que tinha feito no computador e fui observando uma por uma, aumentando e diminuindo o zoom para melhor explorar cada uma, separando e classificando por ordem de interesse. Algumas foram deletadas.
Esperei novamente a noite chegar para fotografar a lua em relação a alguns objetos na Terra, as estrelas no céu, e qualquer outro fenômeno noturno que porventura se revelasse. Em dias subsequentes poderia fotografar do mesmo ponto de vista para comparar a movimentação deles pelos céu.
Nos dias seguintes o clima ajudou muito pois a chuva deu trégua. O brilho do sol sobre os elementos favoreceu a observação, tomadas fotográficas e filmagens. Até onde o poder das lentes permitia eu examinava atentamente.
_ A vegetação rompeu pelas trincas da camada asfáltica e aumentou pouco a pouco. Pela situação dessa praça não passa veículo algum a pelo menos algumas décadas.
Eu falava comigo mesmo ou, quem sabe com os equipamentos que tinha.
_ São arbustos de várias espécies, alguns deles carregados de frutos. Pelo menos terei alimento fresco no meio dessa devastação. Espero que não tenham se tornado venenosos.
_ Puxa, uma parede inteira coberta por plantas, sei lá de que espécie. Até que ficou interessante. Para chegar a esse ponto são necessários muitos anos de abandono.
_ Que situação é essa! Os edifícios, pelo menos a maioria, se deteriora de cima para baixo.
Procurei pelos detalhes, identificar algum deles e quando o fiz, o que deveria ser um alívio se tornou um pesadelo a mais pois, percebi que estavam na mesma situação dos demais. Eram muitos os edifícios diferentes dos que conseguia me lembrar.
_ Se estou na mesma cidade ela mudou muito nesse anos de reclusão. Será que estou mesmo na cidade onde trabalhava e morava? Às vezes tenho dúvidas.
_Como é possível?
Na direção que o mezanino proporcionava melhor campo de visão tinha encontrado pouca coisa familiar. Alguns detalhes de ruas, alguma construção ou praça. Precisava descer do mezanino e investigar a partir de outro ponto de vista.
_Do lugar onde estou não consigo ver muita coisa.
Minha conclusão era de que a cidade havia mudado muito, entre o período de minha reclusão e o evento que culminou no extermínio do seu povo. Depois deste evento, a recomposição da vegetação e a deterioração das construções. Só não entendia mesmo era como eu havia sobrevivido por tanto tempo dentro daquela bolha.
_ Lá está uma movimentação de animais. Interessante, parece uma manada de bovinos pastando despreocupadamente.
Ficaram assim tranquilos por horas, enquanto eu os observava, até que de repente se espantaram. Uma onça pintada estava espreitando um dos pequenos filhotes.
_ Vai pegar, vai pegar. Corre bichinho.
_ Lá está outra pintada, com certeza formam um casal e procuram a caça juntas.
Me assustei com um bando de pássaros, talvez patos, pousando no terraço perto de mim. Ao que parece não tinham medo, ou não conheciam essa nova espécie. Eu. Quando me movimentei, o bando dispersou grasnando eufóricos restando um deles, ocupado em procurar alimento no meio da vegetação. Já ia atirar nele, quando percebi que olhava para mim, grasnando, como que dizendo alguma coisa.
_ Bem que você daria um belo ensopado, mas com esse olhar de misericórdia como posso te abater e levar para a panela?
Esse seria o primeiro animal abatido por mim para complementar minha dieta. Até então, esta era constituída de conservas guardadas a sei lá quanto tempo, em um processo que até então era parcialmente desconhecido para mim. Abaixei a arma e olhei bem nos olhos do pato. Ele também olhou para mim, levantou a cabeça, bateu as asas e grasnou de novo.
_ Quack. Como se dissesse. “Daqui eu não saio. Sei que podemos dividir esse terraço”. Imaginei sua fala.
Voou rapidamente quando caminhei em sua direção tentando ser amigável. Não consegui sequer tirar uma foto dele. Pensei. Ou falei?
Ele voou por sobre as árvores, desapareceu por trás da mureta do terraço e depois reapareceu do outro lado pousando novamente a certa distância. Joguei um pouco da minha comida para ele e o chamei. Sei lá como, pois não sabia mesmo como falar com um pato. Mas ele entendeu minha linguagem melhor do eu a dele. Aproximou-se da comida olhando desconfiado para mim e para ela e, começou a beliscar e levantar balançando a cabeça para engolir. Pegou mais uma porção e mais uma, até limpar o local. Levantou novamente a cabeça, grasnou de novo, bateu as asas e ficou aguardando desconfiado. Pensei: deve estar com fome. Joguei outra porção e o bicho se assustou e voou. Nesse dia não o vi mais. Teria feito o primeiro amigo depois do meu coma? Um bando de maritacas passou voando e cantarolando uma linguagem que eu não entendia. Lá em baixo, as folhas das árvores e palmeiras balançavam inquietas embaladas pelo vento que soprava de nordeste para sudoeste. Nuvens se acumulavam entre o leste e o nordeste, prometendo novo temporal.
Cheguei no limite do terraço e olhei para baixo deslizando a vista pela parede da edificação até chegar no topo das árvores e depois naquilo o que podia ser visto eram arbustos e grama verde. Nada de terra, de asfalto ou cimento. As imediações estavam praticamente todas tomadas pela vegetação. As paredes estavam cobertas por uma espécie de planta trepadeira que se desenvolvia em outros muros e paredes de construções.
_ Talvez seja por isso que as janelas não funcionam. De qualquer forma parece bom, para refletir melhor a luz solar. Nas proximidades não tinham construções, pelo menos de edifícios altos como o meu. Se tinham elas eram baixas e a vegetação as tinham coberto.
Alonguei ao máximo a luneta para fazer uma varredura nos detalhes mais distantes, pois à vista nua e pela teleobjetiva da máquina fotográfica não estava conseguindo. Não via nenhuma divisão no porte da vegetação que indicasse presença de áreas de pastagens, de lavouras ou sedes de fazendas. Toda a vegetação estava praticamente do mesmo tamanho. Uma formação florestal contínua até onde a vista e o poder das lentes alcançava. Não se percebia mais o que era área de preservação permanente, nem reserva nem parque ecológico.
_ Não pode ser! Uma cidade no meio da selva bruta. Exclamei. Ou o que sobrou dela. Refiz meu raciocínio.
_ Quantos anos fiquei adormecido? Quarenta, cinquenta, ou ainda, estou sonhando. Mas onde estão as pessoas? Estarei realmente sozinho neste mundo? Como sobrevivi. E se sobrevivi, estou mesmo sozinho?
Fiquei horas degustando a amargor destas perguntas, que na verdade não tinham respostas, ou elas estavam latentes e eu não as queria ver.
Novamente foquei a lente num ponto mais próximo e consegui identificar restos de alguma coisa que parecia ser um veículo. Melhorei o foco da luneta e percebi a presença dos restos de um caminhão com carroceria tipo baú de alumínio. Seu brilho era discreto mais quando exposto ao sol consegui identificá-lo melhor. A partir desse, pude localizar outros. Parecia que foram deixados normalmente no local para apodrecer. Uns mal estacionados outros abandonados. Uns mais deteriorados outros menos. Uns sob árvores outros com árvores saindo de dentro deles.
_ Será que estas árvores nasceram e cresceram depois que eles foram estacionados ou abandonados nesse lugar? Só pode ser. Será mesmo que aquela nasceu depois de já encontrar o veículo bastante danificado? Só pode ser.
_ Chega! Chega de conjecturas idiotas, rapaz. Você não pode ficar aí inventando histórias irreais. Repreendi-me.
Mas que nada, tudo era muito real. Real até demais. Provaria isso em poucos dias.
_ Como não posso inventar, se só aparecem perguntas? Elas estão por toda parte. Respostas que eu preciso não aparecem. Por enquanto as histórias compensam a falta das respostas.
– Chega. Disse para mim mesmo e calei.
Posso dizer que fiz calar o meu cérebro cheio de perguntas e frenético por respostas. Pelo menos por enquanto.
Sentei-me numa cadeira preguiçosa que havia levado para cima, cruzei os braços, abaixei a cabeça e fiquei pensativo, aguardando uma resposta. Pelo menos uma.
Capítulo 6
Finalmente consegui sair do prédio pela porta da garagem. Com ajuda dos projetos do edifício, uma delas finalmente foi aberta. Estavam de certa forma emperradas devido a presença de vegetação pelo lado de fora e ressecamento da graxa que lubrificava suas canaletas e roldanas. Também tive que liberar o motor que arrastava a sua cremalheira.
No momento em que ela abriu descobri que realmente eu estava no limiar de uma floresta.
_ Olhando lá de cima o mato daqui não parecia tão grande e denso.
As estruturas do prédio totalmente cobertas pela vegetação arbustiva e gramíneas de várias espécies. As paredes e a calçadas bem como as portas eram o limiar do matagal. Havia poças de água invadindo as margens das calçadas de forma que eu não conseguia ver o que estava a poucos metros à minha frente, muito menos sair e percorrer livremente o local. Comecei a remover a parte baixa com ajuda de uma foice e com muito cuidado dei os primeiros passos fora da fortaleza andando sobre a calçada coberta pelo prolongamento do capim e dos galhos dos arbustos. Andando com dificuldade pelas laterais do prédio, avancei poucos metros por onde o mato era retirado com a ajuda das ferramentas. A vegetação aproveitava as falhas no asfalto e nas calçadas para lançar raízes e crescer livremente. O mato estava da altura da minha cabeça para cima. Apesar do medo avancei um pouco roçando e tombando-a para os lados. Já estava molhado de suor e ainda estava próximo ao limiar da porta.
_ Com essa foice creio que terei mais sucesso nessa limpeza.
_ Bem que gostaria de ter aqui um trator ou uma roçadeira mecanizada. Faria todo serviço rapidamente.
Avancei lentamente no meio de tanto verde, levando além das ferramentas, máscara, armas de fogo, e um facão pendurado na cintura. Afinal, não sabia o que ia encontrar no meio dessa mata densa, onde se consegue ver a poucos metros de distância. As piores cobras gostavam de ficar na sombra dos arbustos. Vim saber disso tempos depois com minha própria experiência.
Havia uma sequência de portas em um dos lados não vistos a partir do mezanino. Até então, ideia da situação real na entrada do prédio. Logo percebi que precisava de muito trabalho para conseguir sair e andar livremente por alguns metros. O ar era puro e o cheiro de mofo que me perseguiu tanto, dentro do prédio agora havia acabado. O que sentia era um cheiro de erva verde, muito agradável a quem estava enclausurado. Alguns minutos depois de cortadas algumas plantas exalavam um cheiro mais agradável ainda.
Posteriormente, encontrei um equipamento muito sensível que captava e amplificava sons muito fracos e à grandes distâncias. Me ajudaram em muitas situações além de aumentar minha autoconfiança.
Não conseguia ver o prédio todo pois as árvores que cresceram nas proximidades estavam muito altas e eram tantas que ofuscavam a visão tanto para as laterais como para cima. As galhas e folhagens de algumas alcançavam as paredes e outras delas cresceram até a altura do sexto andar.
Observando os detalhes nos remanescentes de asfalto e das galerias artísticas além de falhas na vegetação sugerindo vias expressas, percebi que estava no perímetro de uma praça. Havia um monumento com parte de concreto e parte de bronze nas proximidades do prédio e alguns restos de construção no interior da área.
Por medo de ser atacado por alguma fera não arrisquei ir muito longe.
Na segunda vez que saí, levei algumas câmeras e as instalei em árvores e restos de construções num raio de uns duzentos metros cobrindo apenas o lado norte, onde se encontrava a porta da garagem. Com elas eu poderia monitorar melhor as cercanias, e planejava instalar outras até onde eu pudesse ir. Precisava monitorar todo o entorno da fortaleza, até ver o que aconteceria nos próximos dias.
_ Com a minha movimentação desde o dia em que apareci no terraço, se ouvirem pessoas elas já devem ter percebido minha presença. Não posso facilitar. Com as consequências de um cataclismo como esse, nunca se sabe o que pode ter acontecido depois.
Apesar de não estar ainda disposto a percorrer distâncias maiores, descobri um resto de asfalto formando uma rua, que mais parecia uma floresta de arbustos e capins. As câmeras instaladas no alto do prédio mostravam que uma das ruas que passava pela praça, levava a um rio onde uma ponte de concreto podia ser vista parcialmente. Infelizmente uma grande e frondosa árvore impedia a visão do restante dela e não dava para saber se ainda estava completa ou não. Essa rua passou a ser um referencial e um caminho para muitas excursões a partir do meu esconderijo. Por enquanto meu estado de espírito não me permitia adentrar muito nessa floresta sem meios mais eficientes de me proteger. Não tinha coragem e ânimo para isso, pois temia pela minha vida.
Com o passar dos dias, sempre que saía da fortaleza levava no mínimo, duas armas de fogo cuja eficiência eu já havia comprovado, além do facão e o microfone para longas distâncias. Dessa forma, sempre que algo me incomodava com algum ruído desconhecido, eu retornava e fechava rapidamente a porta. Numa dessas aventuras um grupo de veados passou a poucos metros de distância de onde estava. Logo um deles levantou a cabeça, agitou bastante as orelhas, berrou e o bando saiu em disparada pelo meio da floresta. Em seguida duas grandes onças pintadas, passaram seguindo o bando. Eu as vi sem ajuda de lentes. No momento eu me arrepiei dos pés à cabeça e meu coração disparou de medo; a taquicardia não permitiu que eu saísse correndo. Creio que elas não sentiram minha presença pois o vento era contrário, ou não me deram importância pois tinham uma refeição garantida e mais saborosa do que eu. Foi uma emoção enorme. Fiquei firme onde estava, protegido pelo tronco de uma árvore. Emocionei mais de medo do que de alegria de poder ver animais que só vira em documentários e filmes. Eu sabia o risco que corria. Mas o certo é que a adrenalina me ajudou a controlar o medo, pelo menos até certo ponto. Tratei de voltar para o interior do prédio e fechar a porta.
Uma coisa me chamou a atenção na garagem, pois percebi que todos os objetos se encontravam muito bem embalados. Para alguns objetos foram usados um sanduíche de dois plásticos permeados com uma espuma umedecida, com uma espécie de gel transparente. No interior delas o que encontrava estava sempre protegido por vácuo. Outros objetos eram totalmente embebidos no gel e recoberto pela película de plástico.
_ O que está embalado aqui foi muito bem preparado para ser conservado por muitos anos. Mas quantos?
Descobri o que tinha dentro depois que rompi algumas das embalagens. Praticamente tudo que estava guardado no almoxarifado fora embalado dessa forma.
Conviver com animais ferozes, a enorme dúvida e uma solidão extrema eram situações que não tinha aprendido na escola. Medo era algo que de fato eu tinha desde criança, e agora tinha que aprender a controlá-lo sozinho, pois estava ciente de que pelo menos por perto não havia nenhum ser humano para compartilhar comigo.
Depois de tantos dias e da situação que presenciara até o momento, estava ciente de que se houvessem outras pessoas elas estavam muito longe. Entre nós, a espessa floresta recheada de feras perigosas. Encontrá-los? Sei lá como. Tenho que tomar algumas providências nesse sentido.
Ao que parece, o prédio onde me abrigava na verdade fazia parte de um grande complexo do qual parte já havia se decomposto praticamente por completo pela ação do tempo. Onde eu me encontrava continham muitas salas, salões enormes, sala de controle dos equipamentos e do próprio prédio. Um complexo sistema de computação além de almoxarifados, laboratórios e oficinas. Salas com equipamentos cirúrgicos, depósitos diversos, salas frigoríficas além da garagem no pavimento térreo. Sabia que haviam andares subterrâneos mas ainda não conseguira explorá-los todos porque era limitado por portas de aço fortíssimas. O sistema de manipulação dessas ou se encontrava avariado ou ainda não era o momento de abri-las.
_ Os objetos e equipamentos que encontrei até agora estão conservados de forma eficiente, sugerindo que as pessoas aguardavam uma catástrofe. Também o prédio deve ter sido construído com o propósito de durar mais do que os outros e proteger o que nele estava contido. Inclusive minha vida, creio eu.
Isso me dava conforto pelo menos por um espaço de tempo até me reabilitar totalmente ou encontrar outros modos de sobrevivência. Esta perspectiva era o que me preocupava, pois não tinha ideia do que viria pela frente.
_ Essas ferramentas podem me ajudar a sobreviver, mas as que dependem de energia elétrica não vão durar por muito tempo. Realmente.
_ Preciso descobrir como contornar o problema enquanto é tempo.
Por esse tempo, as placas solares que forneciam parte da energia elétrica e térmica se encontravam parcialmente ofuscados pelos detritos de aves, poeira carreada pelo vento e até mesmo vegetação havia crescido sobre parte deles. Percebi isso logo que encontrei os painéis de controle. A perda de eficiência no seu fornecimento era evidente, mesmo porque depois que acordei a demanda cresceu bastante. O acesso a eles era muito difícil mas logo percebi que precisava de um plano para fazer uma boa limpeza afim de aumentar a eficiência e a segurança.
_ Com certeza as portas que estão emperradas não se abrem por falta de potência nos motores.
Curiosamente removi um forro de plástico preto, que cobria um objeto grande na área que eu passei a chamar de garagem. Era bastante resistente, ao que parece, mas a essa altura foi possível cortá-lo com uma boa faca e dentro do invólucro encontrei um veículo novo. Estava impecável, mas impregnado de gel que passou a escorrer lentamente pelo piso tão logo a parte externa foi rompida. Depois de alguns dias o gel escorreu totalmente e tentei faccioná-lo, sem sucesso.
_ Droga, deve ter avariado algum sistema. Não reconheço esse modelo, somente a marca.
_ Parece que incluíram nele vários itens modernos que não conheço.
_ Realmente se passaram muitos anos. Há muita tecnologia aqui que nunca havia sequer ouvido falar nelas.
Teria de descobrir como consertar para continuar minha exploração de modo eficiente e seguro. Enquanto isso não fosse possível, o faria mesmo à pé, ainda que apenas nas proximidades. Já havia descoberto quais as principais espécies de animais ferozes que viviam ou visitavam o lugar. Pensei até mesmo em domar um dos cavalos que frequentavam a praça em busca de capim verdinho na área menos arborizada. Mas sem prática com esses animais isso me parecia tão impossível quanto consertar o veículo.
_ Creio que as duas conduções serão importantes em um momento ou outro. Não sei se terei estradas em condições suficientes para trafegar de carro. Se houver, com certeza podem estar interrompidas em algum lugar, por algum motivo.
_ Eu vou pegar uma boa corda, e laçar um cavalo desses. Vou domá-lo mesmo que leve meses.
Comecei me mostrando a eles de forma natural, depois tentando dar algum alimento. Mas que tipo de alimento eles gostam? Eu não sabia. Aproximei de um deles e o chamei. Ele levantou a cabeça e fugiu em disparada.
_ Olha aqui cavalo idiota. Disse para mim. Você não vai fugir da próxima vez. Disse a ele.
Ele parou a certa distância, levantou a cabeça com suas longas crinas, e nariz fumegando, olhou para trás e ficou imóvel. Depois saiu correndo e bufando elegantemente com a vassoura do rabo levantada. Esse exercício durou vários dias. Colocava alimento e sal mineral de maneira a desenvolver sua confiança em mim.
_ Venha aqui e abaixe a cabeça para que eu possa amarrá-lo. Dizia para ele todas as vezes que o via.
_ Agora fique quieto para que possa montar no seu lombo. Comecei a imaginar as cenas.
_ Não, não. Fique quieto cavalinho. Sabe que você é um cavalo muito legal? Um... mas suas crinas estão muito longas, preciso apará-las. Você com certeza vai ficar mais elegante.
_ Que idiotice estou falando com quem? E ele nem mesmo está me ouvindo, pois já está longe. Acho que estou ficando louco nessa solidão. Onde está o meu pato, afinal? Há dois dias ele não aparece.
Somente alguns dias depois descobri que na verdade não era um pato e, sim uma pata e ela fizera seu ninho não muito distante da porta da garagem. Descobri pelo grasnado dela quando fazia uma inspeção de rotina nas proximidades. Não a via, pois fizera o seu ninho bem escondido sob a sombra de um arbusto bem fechado, de folhagens baixas. Mas esse episódio veio na hora certa. Encontrei o ninho da pata, a qual me recebeu com certa alegria.
_ Bem que eu percebia que ela se ausentava de vez em quando e demorava para retornar ao pátio. Antes do seu sumiço ela chegava a adentrar o prédio até certo ponto, me acompanhando. Se tornara uma amiga confidencial nas horas difíceis.
Como na praça em frente a porta era um local baixo, o lençol freático era bastante superficial e com as boas condições ecológicas atuais, um pequeno lago se formou. Era de pouca profundidade mas o suficiente para os patos frequentarem.
_ Mais parece um microecossistema. Tem árvores, arbustos, gramíneas e uma pequena lagoa. Nele a minha amiga, como outros da mesma espécie se reuniam para festejar nos fins de tarde juntamente com outros animais e aves. Até mesmo as onças, porcos do mato e lobos foram vistos dessedentando nesta água fresquinha. Eu me deleitava com essa festa, e sempre ficava admirando ainda que distante. Muitas vezes a cena me trazia tristeza, mas amenizava minha solidão, pois esquecia um pouco da minha condição. Conversava com as aves e até mesmo com os cavalos que já permitiam que chegasse bem perto deles.
Certo dia quase toquei em um dos cavalos, mas o danado saiu em disparada bufando e relinchando. Corria com a cabeça e a cauda erguidas, olhando meio que de lado, abanando a cabeça e as orelhas. Ele queria me dizer alguma coisa. Talvez seu código genético ainda dissesse que seus ancestrais eram animais domésticos e amigos dos homens.
_ Será que os animais que um dia foram domesticados sentem falta das pessoas?
_ Sei lá. Como vou saber.
Eu mesmo aprendi a responder às minhas perguntas, mesmo que de forma vaga.
_ Pode ser que eles até se sintam bem, pois muitos eram maltratados pelo homem que os fazia puxar carroças, saltar obstáculos em competições e outros devaneios humanos.
Enquanto isso eu já havia tirado a proteção de vários veículos na tentativa de fazer um deles funcionar. Alguns não eram próprios para o local, outros não queriam de maneira alguma colaborar. Por outro lado eu não entendia de mecânica e por mais que eu lesse seus manuais e a literatura relacionada com mecânica de automóveis, não alcançava êxito.
_ Nunca vou desistir. Dizia em monólogo.
_ Nunca. Nunca.
O ninho da pata me deu a ideia de procurar por outros ninhos em que os ovos não estivessem em fase embrionária. Eles me permitiriam fazer um excelente omelete para substituir os alimentos conservados e instantâneos dos depósitos. Uma excelente fonte de proteínas e mais fáceis de preparar. Passei a comê-los cozidos em água, ou fritos na gordura de alguns que eu já abatera.
_ Se esses motores fossem a carburador, seria mais fácil consertá-los. Esses bicos precisam de equipamentos especiais para serem limpos.
Depois de tantos anos parados eles podem estar entupidos e o combustível não alimenta as câmaras de combustão.
_ Ou será a bomba de combustível? Ouvi algumas vezes o mecânico dizer que era preciso trocar a bomba de combustível, pois ela poderia estar colada.
Com uma pancada de martelo naquilo que imaginava ser uma bomba, voltava a dar partida girando a chave. Sentia, às vezes, o cheiro do combustível mas o motor não funcionava. Retirava o filtro e assoprava na mangueira e depois na parte que o joga nos bicos.
_ Esguichou gasolina. Parece que estavam entupidos. Conectei novamente as mangueiras e voltei a ignição.
_ Quase. Quase.
Eu sorria satisfeito, pois estava no caminho certo. Já havia conferido o tanque de combustível e estava cheio. A bateria estava carregada apesar da insistente tentativa de fazer o motor girar. Parei um pouco para descansar. Quando acordei assustado, a porta da garagem estava aberta, mas a movimentação que havia era apenas de aves e pequenos animais festejando nas poças de água da praça. Uma chuva havia caído e abastecido as pequenas depressões que se formaram ao longo dos anos sem manutenção.
_ Ei, você ai, seu preguiçoso, vê se encontra alguém para te ajudar a limpar os painéis solares. Eles estão dando sinais de falência por causa da sujeira que está acumulada nas suas superfícies. Disse para minha sombra projetada na calçada.
_ Ainda não consegui consertar nenhum dos carros, por isso não tenho como sair. Também o brancão, forma como me referia ao cavalo, não me aceitou eu seu lombo. O que você quer que eu faça.
_ Não sei ainda mas vou lhe dar uma resposta.
_ Que resposta você me dará? Só quero ver se é melhor do que eu nesses meses todos de tentativa. Não ouvi nenhuma sugestão satisfatória. Devo estar ficando demente.
Me assustei e saí da frente do espelho de cabeça baixa. Estou enlouquecendo. Se não tomar certas precauções vou mesmo pirar.
É certo que eu já tinha plena consciência de minha situação. Não sabia ainda ao certo, por quantos anos estive na cápsula do coma e nem por quanto anos estive sozinho. Sabia apenas que já havia completado sessenta e oito dias desde que pisei fora daquela bolha.
Ler bons livros, manuais de sobrevivência, e outras literaturas me ajudavam, mas não resolviam meus problemas. Bons filmes serviam para preencher o meu tempo que aliás, era muito, para quem estava na minha situação. Andava pela praça, pelos pontos onde estavam as câmeras e os sensores, mesmo dentro da fortaleza. À procura de alimentos e outras coisas, era como eu cuidava mais da minha sobrevivência. Mesmo assim ainda sobrava tempo para que minha mente fervilhasse de ideias e devaneios.
Me recolhi, sem ter como discutir meus problemas com minha amiga a pata que estava muito ocupada com sua ninhada de ovos. Amanhã verei se os patinhos estão quase nascendo. Um filme do arquivo começou e os personagens pareciam estar diante de minha cara conversando comigo. Eu interagia com eles em longas conversas e até em lutas. Um dia arrebentei o monitor com um tiro, depois de ficar inconformado com a atitude de um bandido dissimulado e mau caráter. Me assustei com o tiro e o estrago. Não sabia se sorria ou se chorava pois as emoções se misturaram. Por sorte tinha outros monitores para ver, inclusive o fim do filme. Ao ver o resultado desse episódio, não contive as gargalhadas, até que elas me levaram às lágrimas. Estava às portas da depressão.
Depois disso o sono sumiu. Levantei pensativo dentro da penumbra e procurei algo para fazer. Fui aos botões do computador procurar pela internete, mas não havia conexão. Por mais que tentasse, nenhum servidor dava sinais de rede.
_ Também pudera. Nada funciona do lado de como era antes. A TV que eu deixara ligada a alguns dias apresentava a mesma tela. Pequenas bolas loucas borbulhando e movimentando-se pela tela; às vezes percebia cores, às vezes não. Um chiado contínuo saía dos alto-falantes laterais do aparelho.
_ Apenas estática! Gritei a todos os pulmões. _ Estática! Estática! Nada mais.
Lembrei-me de que um rádio estava sobre um móvel e fui até ele.
_ Como não pensei nisso antes? Um rádio. Por pequeno que seja, um rádio é um rádio. Se houver sinal ele capta. Conectei-o mesmo em uma tomada sem conferir a voltagem da entrada. Com um estalo o aparelho liberou um odor de fios queimados e não deu sinal de vida. Aborrecido o atirei no piso e ele se espatifou em centenas de pedaços. Eu que não gostava, gritei um palavrão e levei a mão à boca em seguida. Juntei as duas mãos, as esfreguei lentamente pra lá e pra cá. Depois de alguns instantes, parei com as pontas dos dedos tocando os correspondentes da outra mão. Cruzei os oito e com os polegares tocando repetidamente um no outro eu fiquei por mais alguns instantes até me acalmar.
_ Calma moço, calma. Assim você não vai resolver nada.
Passei as mãos pela testa deslizando até os cabelos. Pisquei várias vezes. Meu eu levou a mensagem para o inconsciente e, num instante, eu estava novamente calmo e de posse dos meus atos.
_ Até quando? Não posso repetir essa crise. Não posso repetir... preciso encontrar outras coisas para fazer, outros companheiros para conversar. Caso contrário no dia que encontrar uma pessoa de verdade neste vazio, não saberei o que fazer, o que dizer, nem mesmo o que sentir. Sentei novamente na cama, depois resolvi ajoelhar e conversar um pouco com Deus.
Deus, por favor, o que nós humanos fizemos? Ou o que terá feito o Senhor? Seja o que for eu clamo pela tua misericórdia. Não me deixe enlouquecer nesta solidão.
Capítulo 7
Já fazem vinte e cinco dias desde que descobri a ninhada da pata deitada sobre 11 ovos. Vou ver o que está acontecendo com ela. Mas o que mesmo que eu tenho que fazer? Recorri como sempre à minha fonte de consulta, porém por mais que eu insistisse não encontrei nenhum arquivo referente a cuidar de patinhos. Em especial ajudar no parto. Parto? Mesmo assim teria que fazer alguma coisa. Levar alguma comida, e ver se algum filhote já tinham saído do ovo, se precisava ajudar de alguma forma. Essas coisas.
_ Penso que é assim.
Minha preocupação com eles fazia sentido pois eram minha família neste mundo esquecido.
Mal cheguei perto do ninho e a pata deu sinal de vida grasnando como sempre. Em especial quando me via. Sua verbalização era sempre a mesma.
_ Posso ver se os filhotes já nasceram?
_ Quack.
_ Quantos já saíram dos ovos?
_ Quack, quack. _Não eram dois apenas.
_ Fique calma e coma alguma coisa que eu trouxe para você.
_ Quaaaaaaack. Espichou bem o pescoço e o recolheu de novo.
_ Olha como são lindos seus bichinhos! Posso olhar?
_ Quack. Grasnou e espichou novamente o pescoço.
Depois numa manobra que os patos sabem fazer, passou o bico por baixo do seu corpo e trouxe para fora um dos seus bichinhos.
Passei quase o resto do dia admirando os patinhos amarelinhos que iam nascendo e pouco a pouco, meio desajeitados, iam saindo do ninho mesmo com os protestos da mãe pata.
_ Quaaaack. Com o bico trazia de volta o menino fujão para debaixo das suas asas.
Comecei a filosofar pensando. Até os animais protegem seus filhotes e os aquece para que vivam. Teria eu, alguém pra me proteger neste mundo solitário? Teria mais alguém no mundo para eu ajudar? Perguntei. Que farei para ter alguém, quando não para proteção, mas pelo menos para compartilhar comigo, ideias e coisas? Compartilhar esse momento lindo, admirando essa mãe amorosa com seus patinhos.
_ Quem dera aparecesse alguém aqui e agora. Mas pelo visto não há mais ninguém mesmo.
No fim do dia ela se levantou do ninho deixando para trás apenas as sobras das cascas dos ovos. O ninho com penas e plumagem de seu corpo, retirada por ela durante a incubação dos ovos. Lá se foram, ela e seus onze filhotes para o primeiro banho nas poças de água da praça. Mamãe na frente e uma fila de filhotes espertos e tagarelas piando atrás. Um espetáculo que eu nunca havia visto pelo menos assim tão de perto. Enchi-me de satisfação ao ver a cena e, principalmente, ao ver que de vez em quando a mamãe pata olhava para os filhotes e ao que parece para mim, como se me mostrasse seus amarelinhos. Talvez querendo dizer: _Vocês se destruíram. Faça, agora, como nós. Preserve-se. A pata grasnando repetidamente, balançava o corpo da cabeça ao rabo. Um passo com a direita e retorce o corpo ao contrário. Um passo com a esquerda e balança o corpo no outro sentido. Os patos tem um andar característico em função de sua anatomia. Devagar, balançando o rabo e o corpo lateralmente para um lado e a cabeça para o outro, depois fazem movimentos vigorosos para frente e para trás com a cabeça. Enquanto isso grasnam dependendo da situação, pausadamente, e emitem um som como um chiado. Abanam o rabo lateralmente e batem as asas.
Dessa vez a mamãe nadava faceiramente balançando seu corpo e chamando os filhos. Mergulhava a cabeça na água e balançava as pequenas asas, ainda despenadas, espalhando água para todos os lados. Às vezes, mergulhava totalmente em busca de alimento no fundo do pequeno lago. Pouco depois seus bichinhos faziam o mesmo. Creio que se um animal feroz se aproximasse eu não o veria, tal era a minha concentração naquela cena tão envolvente. Isso me levou a uma calma tão intensa que eu ainda não tinha experimentado desde que acordei.
A partir desse dia os patinhos entraram na água sem nenhum constrangimento, como se já soubessem nadar há anos. Somente eu fiquei preocupado com a façanha deles, pois a mamãe pata parecia sorrir com a festa que faziam e apreciava os filhotes de perto. Uns iam para lá outros vinham para cá, mergulhavam levantavam as cabecinhas amarelas e batiam as pontas das asinhas despenadas. Afinal, eram muito jovens para se defenderem, por isso ela os vigiava sempre de perto. Ao menor sinal de perigo ela os reunia nadando em círculo em torno deles. Às vezes os chamava de volta ao ninho. Pareciam não se importar muito com a própria segurança. Afinal, mamãe estava ali para protegê-los. Também os demais da mesma espécie não se importavam ou não se manifestavam com a presença dos pequeninos. Não sei se por costume ou por saber que eu estava ali e que se precisasse eu poderia também defendê-los.
A esse ponto não somente a pata e seus companheiros, vários deles, vinham diariamente em busca de comida e, pode-se dizer que já estavam domesticados novamente. Não apenas os patos, mas outras espécies também. Os dias iam passando e eu me sentindo aliviado e sem maiores crises. Eu até sorria no meio da festa. Ou quase no meio, pois ficava horas sentado em uma tora de uma árvore caída ao lado da porta. Se a lagoa oferecesse condições nadaria juntamente com os bichos.
Era uma tarde de céu limpo e sol quente, vários animais, como vacas, cavalos e diversas aves pequenas e grandes se reuniam na porta da garagem creio eu esperando por alimento. A minha vida mais parecia de um fazendeiro que passava todos os dias envolvido com as plantações e criações da fazenda. Apenas, quando eu aproximava desses animais, eles saiam em disparada. Cheguei a dar nome para alguns deles que se mostravam mais amistosos, porém não mansos o suficiente para um contacto direto.
_ Parece mesmo que deixei de ser cientista. Também, pesquisar o que agora? Com que finalidade?
Consegui depois de muitas tentativas e muitos dias, laçar o cavalo que se mostrou mais simpático e amigável. Com uma corda no seu pescoço caminhei com ele até certo ponto, voltei, passei a mão sobre o seu dorso, depois sobre sua crina. Ele a princípio se contorceu todo, mas acalmou até que um barulho diferente o assustou e tomou o laço de minhas mão com um solavanco no pescoço. Saiu em disparada. Por medida de segurança usava um corda mais curta, justamente para o caso de acontecer uma escapada e o mesmo não se ver preso a algum tronco tornando-se presa fácil para os predadores maiores. Não vi quem fez o barulho, mas como estava preparado saquei de uma pistola que trazia sempre comigo e fiquei atento. Olhei em volta cuidadosamente enquanto todos os animais dispersaram, com exceção da pata e seus filhotes. Mas logo em seguida ela tratou de chamá-los para perto de si e caminhou rumo ao seu ninho. As aves revoaram assustadas aos bandos e depois sumiram de vista. O silêncio reinou novamente.
Nesta noite, após o episódio, fiquei temeroso em deixar a pata do lado de fora e procurei agasalhá-la dentro da garagem fazendo um ninho improvisado com as sobras da cobertura dos veículos e um pedaço de tecido. Ela se aninhou com seus filhotes agasalhando cada um deles debaixo das suas asas.
Com isso me recolhi, pensando na forma como todos os animais saíram. Uns voando rapidamente e outros correndo por entre as árvores e poças de água. A imagem ficou se repetindo em minha mente roubando meu sono e me mostrando o quanto eu estava inseguro. Cada animal apesar de se tornar presa com facilidade de predadores maiores, tem suas defesas. O silêncio e a penumbra que caíram sobre meu coração iniciou antes do pôr do sol. Meus ossos pareciam doer de tanto silêncio. No momento, senti um arrepio no corpo inteiro e o temor caiu sobre mim. Volta e meia o medo tomava conta de minha alma e via alguma coisa se aproximando. Pura ilusão. Por mais que eu esforçasse não conseguia esquecer o que aconteceu. Procurei o refúgio no interior do prédio, mas em que interior eu esconderia dos meus temores mais profundos.
_Não há psicólogo que possa me orientar nessa situação. Não há ninguém com quem eu possa trocar ideias a respeito.
_ Meu Deus, o que terá acontecido?
Não conseguia ouvir um pio sequer, por mais que me esforçasse. Podia ouvir meu coração bater dentro de meu peito. Tinha a sensação de que ouvia meu sangue correr dentro das veias.
Depois que fechei a porta da garagem a penumbra aumentou também ao meu interior. Procurei aumentar a intensidade da luz desse ambiente, mas os controladores não obedeceram, porque a potência estava muito baixa e os os geradores de energia elétrica não conseguiam atender a demanda.
Só consegui apagar a luz da garagem depois que estava com uma boa lanterna ligada, mesmo assim, saí do local correndo rumo ao quarto onde dormia.
Fiquei deveras inquieto com o que aconteceu lá fora. É certo que eu trouxe parte disso para dentro. Dentro de mim apenas. Com certeza. Os pensamentos voltaram a me torturar de forma que não consegui ligar computador, ver filme, ouvir música ou fazer qualquer outra coisa por várias horas. E elas não passavam. Queria subir ao terraço mas o temor me impediu de fazê-lo e procurei ficar quieto. Deitado em minha cama fiquei encolhido, creio que em posição fetal, como muitas vezes eu dormia.
_ Tenho que comer alguma coisa. Vou preparar algo na cozinha.
Lá, peguei uma fatia de carne gelada e com os poucos temperos que tinha preparei num resto de óleo vegetal reutilizado.
_ Estou mesmo me tornando um cozinheiro e dono de casa.
_ Hum! Está realmente bom. Cheiro, sabor e visual. Espero que depois dessa experiência eu consiga dormir.
Quando abri a porta que dava ao terraço na manhã seguinte, procurei ter uma visão melhor da parte inferior, uma vez que as câmeras não funcionavam a contento já há uma semana. O nível de energia estava muito baixo, tanto de dia como a noite.
_ Tenho que desligar algumas das câmeras frigoríficas, elas estão sugando toda a energia gerada. Também pudera, toda hora tenho que abrir uma delas. Sabia que os problemas estavam chegando. Ou resolveria cada um deles ou teria que conviver com mais um que aparecia a cada dia.
O silêncio ainda era grande e a sensação de medo não passava, pois não via os animais que sempre estavam presentes. Os pássaros estavam arredios, os animais de solo não apareciam e eu ficava cada vez mais incomodado com a situação. Por fim alguns dos pássaros que costumavam vir ao terraço chegaram como que meio espantados e arredios. Uns pousaram outros rodearam o prédio, mas sem muita algazarra como costumavam fazer nos dias anteriores.
_ Bem, talvez seja apenas impressão minha. Logo, logo, tudo voltará ao normal. Tenho certeza.
Vasculhei novamente o solo com a luneta até onde podia, visualizando apenas alguns animais tidos como mais pacatos, como jumentos. Um jabuti solitário andava lentamente por entre as folhas caídas no chão. O silêncio continuava pairando sobre tudo. Somente o assobio do vento sobre as copas das árvores que era de um suave a acentuado. Nada além do normal.
_ Sinto-me impotente pois não tenho nenhuma fonte de consulta para esse fenómeno. Sismógrafo, noticiários, nada. Hábitos dos animais e mudanças climáticas. Alguma coisa está acontecendo.
Em particular eu era muito sensível às mudanças climáticas e sabia por outro lado que os animais tinham a capacidade de prever determinados fenómenos.
Procurei no depósito por outro rádio e resolvi instalá-lo no topo do edifício onde as ondas de rádio geralmente eram mais fortes e uniformes. Desta vez conferi a voltagem. Mas antes que ligasse na tomada lembrei de que vira uma caixa de pilhas adequadas ao aparelho. Corri escada abaixo em direção ao almoxarifado e peguei algumas delas. Uma vez instaladas no depósito o rádio passou a funcionar normalmente. Girei o dial para um lado até o fim do cursor, voltei para o outro lado desta vez mais devagar. O som que ouvia era apenas chiado que mudava de intensidade de acordo com a mudança do ponteiro. O ponteiro passava de um número para o outro. Mudava aumentando e diminuindo. Não usei o modo de procura automático, pois ele costuma falhar nas frequências muito baixas. Mudei o cursor de faixas de frequências e repeti a consulta no dial. Ponteiro para lá, ponteiro para cá. Ondas médias, ondas longas, ondas curtas, nada. Só chiado. FM, apenas estática. De um lado ao outro, de uma faixa à outra só estática. Deixei ligado na esperança de ouvir alguma voz. Estática. Mudei o aparelho de posição. Nada. Mudei novamente. Caminhei pelo terraço mas nada. Quando já estava para atirar o aparelho do alto do prédio em outra crise de desespero, lembrei-me de que nada adiantaria e contive novamente o acesso.
_ Calma rapaz... calma rapaz. Contive pois no momento o que eu mais precisava era de autocontrole. Domine-se para dominar as coisas e as situações. Lembrei de uma frase que costumava dizer em momentos difíceis. Melhore os seus argumentos.
Antes do fim do dia já havia descido e subido as escadas do solo até o terraço várias vezes em busca de respostas. Onde estão os animais, onde estão os animais. Todos eles. Até mesmo as aves que vieram aqui pela manhã sumiram novamente.
Resolvi descer até a praça para recolher a pata e os filhotes, que na correria a deixara pelo lado de fora e sem sua porção extra de ração que lhe oferecia todos os dias. Ela estava aninhada sobre os filhotes em um canto de parede.
Ouvi um chiado como de vento, mas com uma diferença. As folhas não balançavam.
_ O que será desta vez?
O chiado foi aumentando de intensidade e eu virava de um lado para o outro para tentar ver alguma coisa, até que fiquei paralisado no local onde estava.
O solo começou a tremer debaixo dos meus pés. Quase não conseguia parar de pé. Alguns eternos segundos se passaram e quando tive a impressão de que estava acabando, o tremor piorou. A sua intensidade foi tanta que desta vez não consegui parar de pé. Com temor de que a fortaleza desabasse, me afastei o máximo que pude durante os primeiros instantes. O medo de predadores sumiu. O medo agora virou pavor incontrolável. Medo do que eu não conhecia até então. Sentei-me, ou caí sentado, não me recordo. Árvores contorciam, tombavam quebradas ao meio, outras iam e vinham embaladas por uma força desconhecida para mim.
_ Por essa eu não esperava. Me pegou de surpresa. Pelo menos se eu tivesse equipamento teria conseguido prever o ocorrido.
Restos de algumas construções nas proximidades vieram abaixo; algumas mais longe e outras a poucos metros de distância de onde estava. Outra mais adiante rompeu o silêncio em um estrondo e logo em seguida uma coluna de fumaça subiu no meio da poeira de tantas outras construções que ruíram. De ruínas viraram escombros. Viraram entulho, aquilo que já não era. Apesar de haver chovido nos dias anteriores, o desmoronamento fez deslocar uma quantidade enorme de poeira que cobriu o céu. Foram tantas construções que desabaram que era difícil contar as colunas de poeira. Era próximo das quinze horas e o sol estava ativo. Quando tudo terminou, ele não podia mais ser visto por causa da nuvem de poeira. O vento dissipava parte dela, mas ainda desenvolvia e misturava tudo formando uma nuvem que caminhava do vermelho para o cinza.
Tenho que entrar na fortaleza e me proteger. Mas e se ela não estiver de pé? Não a via direito. Apenas um vulto na direção dela. Caminhei para o seu lado e percebi que estava de pé; a porta aberta e alguma luz bem fraca no seu interior.
_ Patinha, patinha, onde está você e os filhotes? Vê se aparece. Vamos nos esconder.
Não a pude encontrar por mais que a procurasse. Nenhum dos filhotes também.
Não conseguindo respirar nem enxergar direito adentrei pela porta e ouvi.
_ Quack, quack!
Que alívio. Ela estava a salvo com seus filhotes. Abaixei a porta rapidamente para deixar a onda de poeira do lado de fora. A minha amiga e nove filhotes estavam devidamente agasalhados. Dois deles haviam morrido pela manhã, levados por gaviões enquanto eu estava no topo do prédio.
Uma vistoria rápida e improvisada nas paredes da fortaleza e nos equipamentos, revelou normalidade. Apenas alguns pequenos estragos.
_ Esse prédio é mesmo uma fortaleza. O que aconteceu não foi um terremoto qualquer. Foi algo muito grande. Ainda bem que ele aguentou firme.
Consegui chegar ao topo ainda com a claridade do sol que a poeira permitia, e pude contemplar parte do resultado da catástrofe. Quase não via os remanescentes dos edifícios que costumava ver nos dias anteriores. _ Puxa, parece que a maioria dos prédios caiu com o terremoto.
A nuvem de poeira cobria as árvores de uma a outra extremidade daquilo que eu considerava cidade até então. Não dava para ver o horizonte. Não podia ver a extensão do problema, pela presença da poeira e a pouca claridade do sol.
O vento carregava lentamente parte da fuligem de nordeste para sudoeste, porém ainda havia muita coisa suspensa para ser levada. O sol estava parcialmente por trás de uma das partes elevadas do prédio, acima do terraço e, se punha sobre mais uma catástrofe. Raios vermelhos eram projetados através das nuvens de umidade acima e, de poeira abaixo. Desta vez presenciei a catástrofe.
_ Qual delas terá sido a pior? Sobrevivi às duas. Sobreviverei a mais uma?
Gostaria que o pesadelo que começou no dia em que acordei passasse depressa como passou esse.
Ilusão. Muita coisa ainda iria acontecer. Muita.
Capítulo 8
Já havia se passado mais de um ano e, desde então, o sistema de fornecimento de energia elétrica estava declinando sua eficiência. Eu vivia racionando de todas as formas e trabalhado no sentido de restabelecê-lo. Faziam poucos dias que os reatores entraram em pane, talvez pela alta demanda depois do meu despertamento. Ou quem sabe, sua vida útil estava mesmo prevista para ter fim nesta data. Seu combustível poderia ter exaurido. Eles eram algo que eu não ousava nem mesmo me aproximar. Na verdade nunca descobri onde ficavam.
Nos últimos meses, os rotores dos geradores eólicos pareciam travados e as pás não rodavam mais, a não ser durante correntes muito fortes. O que era pior, no dia em que a terra tremeu uma das torres pendeu para um lado e apesar de uma pequena a inclinação foi suficiente para prejudicar o seu funcionamento. Ameaçava cair a qualquer momento. Não podia mesmo contar com nenhuma delas. Para melhor aproveitamento das correntes eólicas as duas torres foram instaladas no alto da fortaleza, assim, não eram de grandes o suficiente para gerarem uma corrente capaz de suprir a demanda do prédio.
_ Se essas torres caírem vão danificar vários painéis solares. Ou até mesmo a estrutura do prédio. Fato que concluí no dia em que comecei uma inspeção das placas.
_ Espero que não caiam, mas se isso acontecer, que não atinjam locais críticos no prédio, em especial esses painéis.
Desmontá-las não posso. Não tenho ferramentas nem máquinas adequadas.
Sem esses geradores a certeza que tinha era que a única fonte de energia eram os painéis solares. Tinha que investir na recuperação ou substituição da maioria das placas.
Vasculhando novamente o almoxarifado encontrei algumas placas e senti certo alívio. Tinha alguma coisa de muito útil nesse sentido. O que eu conhecia a respeito delas era suficiente para montá-las e fazer a instalação. Planejei por vários dias os serviços que teria que fazer. Montar os painéis, reunir um grupo de baterias para armazenar energia para as noites e os dias nublados. Desligar as câmaras frigoríficas, transferir víveres e procurar abrir o mínimo possível a geladeira para poupar energia.
_ Enquanto não tenho uma solução melhor tenho que abrir o máximo de janelas desse prédio ou mesmo mudar meus ambientes de maior tempo de permanência, para lugares mais ventilados e iluminados naturalmente. Remanejar equipamentos, abandonar alguns menos úteis, mudar hábitos e outras providências e atitudes que me ajudarão a economizar energia.
Comecei de imediato uma adaptação nas instalações de energia elétrica a partir do ponto onde pretendia instalar os painéis solares. Da forma como estava a geração, a energia não era suficiente para fazer funcionar o interior do prédio e todos os equipamentos em uso, por isso teria que improvisar e alterar quase tudo. Gastar energia elétrica somente com o extremamente necessário.
_ O ideal seria substituir os painéis velhos, pois onde estavam instalados funcionavam com mais eficiência, mas o local era de difícil acesso.
_ Na verdade, não sei como os técnicos chegaram até o lugar onde estão. Não vou perder tempo nesses questionamentos.
Como o prédio era muito grande deveria gastar muito tempo com essa procura. Preferia instalar os novos painéis em local mais acessível. Além desses velhos ficarem em uma parte mais elevada do prédio eram fixados em suportes ainda mais altos. É claro que possuem uma dinâmica mais adaptável. Para substituí-los teria que usar braços mecânicos ou longas escadas. Mesmo assim como iria levar e montar tantas placas sozinho?
_ Não. Definitivamente não dá.
_ Pelo menos se eu pudesse contar com a ajuda de alguém...Droga! Quem?
_ Animais? Pela minha cabeça passa cada ideia besta. Só mesmo eu nessa situação estressante! Acho que estou começando a delirar.
_ Máquinas? Quem sabe não encontro máquinas para ajudar a fazer esse trabalho?
Enquanto estava pensando no problema, planejando e estudando a posição dos painéis no alto da torre percebi que no terraço onde pretendia colocá-los eles receberiam luz solar somente algumas poucas horas por dia, dependendo da estação do ano.
_ Não sei o que será mais recomendável.
_ Se vai funcionar não sei. Caso contrário, terei que aprender a produzir fogo com pauzinhos ou pedras de fogo. Tenho que dar um jeito antes que as coisas piorem.
Iniciei de imediato o transporte das placas para o terraço mesmo subindo e descendo vários degraus de escada. Muito cansativo. Enquanto parava para descansar observava atentamente a arquitetura do prédio, em especial locais onde não tinha visitado ainda. Portas, salas e corredores. Quase sempre ou totalmente no escuro. Foi assim que encontrei escadas que levavam ao terraço onde os painéis antigos estavam instalados. Na verdade muitas partes do prédio eu ainda não tinha explorado. Sinceramente, tinha medo de alguns locais, pois eram muito escuros e sem ventilação. Fediam a mofo, dejetos de morcegos e até ratos mortos. Sempre que olhava para os longos corredores escuros tinha a impressão de ver fantasmas. Eu ficava gelado só de pensar.
Com a descoberta, me animei e explorei o alto da torre onde estavam as fontes de energia. Comecei logo a transportar os painéis, um a um, até completar um número suficiente e então comecei a substituição deles de acordo com as minhas possibilidades. Cada placa estava presa por parafusos que se encontravam travados pela ferrugem. A maioria teve que ser rompida através de pancadas e marretadas. Outros se rompiam com a força exercida pela torção.
_ Quebrar cada um de vocês é mais fácil do soltá-los. Farei isso. Falei com os próprios que não podiam me ouvir nem opinar.
_Limpar pelo menos alguns dos painéis é uma medida alternativa. Quem sabe sejam reaproveitados.
A maioria deles não serão reaproveitados em função do estado de conservação. Verniz protetor trincado, trilhas enferrujadas, soldas desfeitas e outras avarias. Juro que não foi uma tarefa fácil. Gastei vários dias para instalar apenas algumas placas. Como não tinha experiência com esse tipo de atividade, ainda tinha outras tarefas importantes e urgentes, trabalhei com grande empenho. Contudo, foi mais prático aproveitar as estruturas e alguns módulos existentes.
A medida que as placas e os conversores iam sendo substituídas a energia no sistema ia melhorando. Porém muito discretamente. Assim indicavam os medidores.
_ Vem aqui cavalo baio, preciso de você, não seja tão arredio comigo e me deixe domá-lo! Vem por favor, tenho um pouco de sal delicioso de presente para você. Vem bichinho, vem bichinho.
_ Lacei! Lacei você seu menino teimoso.
Aos poucos fui me aproximando até passar a mão pela crina dele. Alisei sua testa e orelhas, enquanto ele se mostrava impaciente e inquieto. Sapateando e andando a trote em volta de mim. Bufava e relinchava com a cabeça erguida. Acompanhei passo a passo o andar ligeiro, troteado do animal. Dei cordas para que ele pudesse se afastar um pouco. Não dizia nada, não o ameaçava de forma alguma.
_ Vi como se faz isso na TV uma vez e creio que funciona. Os animais possuem comportamento semelhante.
Era melhor deixar que ele percebesse que não o queria mal. Que não iria espancá-lo. Mas tratar bem dele, respeitar sua individualidade e sua força. Somente assim poderia usar sua força ao meu favor. E estava dando certo. O animal estava realmente se sentindo à vontade comigo e demonstrava confiança em mim. E isso era muito bom. Por fim, peguei um pouco de sal que trazia numa sacola e aproximei de sua boca. Ele lambeu tudo e procurou mais. Ofereci mais um pouco e quando terminou, retirei a corda de seu pescoço. Tudo era apenas o começo, mas um ótimo começo. Todos os dias eu fazia o mesmo com ele, até que resolvi, montei em seu dorso e comecei cavalgá-lo dentro de um pequeno cercado que havia feito. Ele estava se mostrando muito dócil. Logo que o soltei ele saiu em disparada em volta da lagoa como se nunca mais fosse voltar para mim.
Lá na garagem as coisas estavam melhorando pouco a pouco, de sorte que consegui fazer com que um dos motores funcionasse ainda que rateando. A fumaça emanada do escapamento cheirava a combustível semi-comburido. A gasolina tinha muita água misturada e isso atrapalhava o funcionamento.
_ Esse cheiro acentuado de combustível não me parece um bom sinal. Deve estar afogado, como dizia o mecânico da família quando o motor apresentava mau funcionamento.
Tive que filtrar e decantar o combustível até reduzir o percentual de água a um nível aceitável.
_ Isso foi a tanto tempo, os carros de hoje não afogam. Mas o pior é que não os entendo. Não possuem carburador, mas bicos de injeção. É o que dizem os manuais dos fabricantes.
Com um facão na cintura, um revólver e uma pistola, resolvi sair dos limites costumeiros por algumas centenas de metros. Com todo cuidado, levando um detector de movimento e som que ainda funcionava, embrenhei pelo que restou de uma rua que, mais parecia uma floresta em regeneração. O leito dela estava cheio de arbustos, capins e samambaias. Veículos deteriorados em posições de abandono, me enchiam de medo do que pudesse sair do interior deles. Ossadas humanas e de animais diversos, tanto no interior como fora deles parcialmente escondidos pela vegetação. Era difícil enxergar as coisas à distâncias maiores. Por vezes, via alguns cervos, capivaras e coelhos pastando a poucos metros de distância. Um belo e grande camaleão disfarçado entre as folhas secas.
_ Quantos animais!
Não tinha ideia do nome da maioria deles. Não os conhecia a não ser através de livros e documentários na TV.
_ Como pode, esses animais parecem tão amistosos ou despreocupados mesmo percebendo a minha presença! Mas eles pareciam mais interessados na grama verdinha e deliciosa. Estavam gordos de tanto alimento disponível por todos os lados. Por vezes via alguns deles descansando e ruminando debaixo da sombra de árvores frondosas. Mas despreocupados eles não estavam. Tinham uma estratégia de sobrevivência muito elaborada. Estavam sempre em bandos e, enquanto uns baixavam a cabeça para abocanhar uma touceira, outros estavam de cabeça alta observando se não havia nenhum predador por perto. Eles se revezavam aos bandos. Agindo assim, garantiam a sobrevivência da espécie, muito embora alguns caíssem nas garras impiedosas das onças e outros predadores maiores. A quantidade de coelhos era imensa. Os via com muita frequência e por todos os lados. Muito embora de hábitos solitários, também tinham suas estratégias de sobrevivência. Eu sempre abatia alguns para abastecer minha despensa. Carne saborosa e leve. Esticava o couro de um a um para futuros aproveitamentos. Para não assustar os animais usava um arco ou um estilingue com bolinhas de barro durante minhas caçadas desses pequenos. Aprendi a usar essas armas devido às minhas necessidades, e assim com elas eu vinha abastecendo a minha dispensa com carne fresca e defumada. Às vezes os preparava e comia na hora. Eram suficientes para a minha manutenção de proteínas.
Certo dia enquanto caminhava nas redondezas percebi um bando de cães que pareciam domésticos. Mas quando me viram começaram a mostrar os dentes e emitir sons não amistosos. Isso dava para saber perfeitamente, mesmo não tendo muita experiência com esses animais. Rosnavam de cabeça baixa olhando diretamente nos meus olhos. Anteriormente, minha vida urbana e confinada em uma pequena casa, nunca me permitiu maiores contactos com animais. Em especial os selvagens. Entretanto não me enganei com a atitude deles. Nesse momento eu já havia descoberto que teria que desenvolver técnicas de sobrevivência, ou meus dias seriam breves nesse novo lar. Era hora de descobrir mais um método de sobrevivência. Só para disfarçar o medo, eu dizia.
_ Vem cá bichinho. Disse a um deles que se encontrava mais perto. Eu não tenho medo de você. Quer um pedaço de carne de coelho defumada?
Tirei de uma mochila que estava pendurada no meu lado, um pedaço de carne seca que trazia para alimento e emergências desse tipo e ofereci ao animal. Como ele não mostrou outro tipo de atitude mais amistosa, abaixei olhando sempre para ele, coloquei no chão e saí andando para trás, passo a passo sem tirar os olhos do animal e de seu bando. Era mais por medo do que por por cautela. Mesmo sabendo que mostrar medo desses animais seria pior. A certa distância percebi que ele caminhou na direção da comida e abaixou a cabeça para pegá-la. Possivelmente era o líder do bando. Eu tinha assim mesmo uma das armas de fogo em punho, armada e pronta para atirar.
_ Ainda bem que não foi preciso usar essa arma. São tantos...
_ A quanto tempo esses animais não tem contacto com pessoas? Pensei.
_ Possivelmente nunca em sua vida. Respondi. Se ao menos a internete estivessem funcionando, certamente encontraria lições de como lidar com esses bichos.
As árvores que haviam crescido nos locais onde elas não deveriam estar, apresentavam características adultas, medindo entre dez e até trinta metros de altura. Algumas com troncos chegando a dois metros e diâmetro. Isso me fazia parar diante da cena e tentar entender alguma coisa do que havia e estava acontecendo.
_ Pelo que sei, para uma árvore chegar a um porte desses de maneira natural são necessários entre quarenta e cinquenta anos. Como posso ter ficado em coma por tanto tempo? E também, toda essa destruição não ocorre de uma dia para o outro.
_ Não posso acreditar. Como podem os equipamentos me manterem vivo por tanto tempo? Se fiquei, o que aconteceu para que o mundo se tornasse isso que vejo hoje? E mais, porque estou sozinho? Se é que estou mesmo sozinho. Penso que alguma guerra aconteceu entre as maiores potências do planeta, e as demais nações foram envolvidas. Foram usadas armas químicas de sorte que somente as pessoas morreram? Armas biológicas? Os animais teriam sido afetados, com certeza. Psicotrônicas? Vírus? Me arrepiei todo ao pensar nessa possibilidade. Se foi vírus, foi letal no mundo inteiro e além de ser novo, não deu tempo para produzir uma vacina para combate-lo. É de se supor. De certa forma, pensava, se os animais foram atingidos, algumas espécies conseguiram sobreviver e deram início a um novo ciclo reprodutivo. Nesse tempo, a vegetação cresceu ampliando as chances das espécies aumentarem. Mas tudo isso são conjecturas apenas. Coisas da minha mente confusa e carente.
À noite não consegui dormir, pensando em como sair à procura de outros sobreviventes. Fazia planos, mas sempre acabava por não achar uma saída plausível.
Mesmo se fizesse algum veículo funcionar, as estradas não ofereciam mais condições de uso. Pontes, serras, árvores no meio das estradas, veículos bloqueando a passagem. Pensava em usar os cavalos mas sabia que ia precisar de vários deles bem domesticados e treinados para levar todas as coisas que precisava para sobreviver num meio tão hostil.
Não chegava a conclusão alguma. Nessa noite, quando adormeci era muito tarde e as lâmpadas estavam quase apagadas por falta de energia. As baterias estavam com carga mínima nas suas reservas.
_ Droga! Preciso isolar mais equipamentos da rede, ou terei sérios problemas. Deve haver alguma fuga de energia e não consigo detectá-la.
O ambiente que estava usando dentro do prédio era muito grande e consequentemente consumia mais energia do que as placas conseguiam gerar e as baterias armazenarem. Esta era a única fonte de que dispunha. As outras duas não funcionavam mais. Para isolar parte do circuito era muito complicado, pois a rede era totalmente escondida em conduítes nas paredes do prédio.
_ Terei que me mudar para outro lugar onde posso controlar melhor o consumo de energia. Mas para onde? O prédio é muito grande.
_ Deve haver um jeito e tenho que descobrir.
_ Verei o que consigo fazer. Confirmei.
Às vezes respondia em silêncio, às vezes expressava em voz alta. Fazia isso nos longos corredores do prédio somente para ouvir minha voz ecoar por eles e voltar onde eu estava. Assim eu podia ouvir vozes ainda que as minhas. Gritava bem alto e ficava parado em silêncio para ouvir o eco.
De manhã, após um desjejum, antes de descer as escadas, desliguei todos os equipamentos que consumiam eletricidade. Desci como fazia para chegar à garagem onde iria trabalhar nos veículos na tentativa de fazer algum deles funcionar.
_ Espero que as baterias ganhem carga suficiente para fazer funcionar a base de dados para pelo menos alguns minutos de pesquisa.
_ Preciso transferir alguns arquivos para alguns HDs e usá-los em notebooks que consomem menos energia. Para esses, algumas pequenas placas de energia serão suficientes pelo menos para uso diurno, até que eu encontre cartões de memória que consomem ainda menos energia.
Passei a trabalhar no limiar da porta da garagem e parte externa do prédio apesar do temor de não perceber a aproximação de predadores, mas não tinha outro meio. Resolvi trazer para fora a pata com uma nova ninhada de filhotes, agora já grandinhos, para contar com sua ajuda denunciando a presença dessas indesejáveis visitas. Prendi em gaiolas dois gansos que eram verdadeiros cães de guarda anunciando a aproximação de qualquer ameaça. Consegui colocar uma pick-up para fora, troquei a bateria por outra que havia deixado recebendo carga no dia anterior. Depois de algumas tentativas ela funcionou.
_ Graças a Deus! Funcionou. Mal, mas funcionou. Acelerei bastante para desobstruir qualquer sujeira nas tubulações e filtros.
_ Espero com isso manter o funcionamento, e foi o que aconteceu. Desta vez tive sorte.
Enquanto consertava conferi o nível de óleo no motor e na caixa de câmbio, o nível de combustível no tanque, a pressão dos pneumáticos e outros dados que julguei serem importantes e os recomendados pelo fabricante, conferindo através do manual do usuário.
_ Creio que fazendo um dos veículos funcionar, terei aprendido alguma coisa e outros também funcionarão. Mais cedo ou mais tarde. Resolvi sair com ela para uma volta pelo que restou das ruas nas proximidades.
_ Droga, um pneu furou! Droga! Droga! Mil vezes droga! Que saco, quando conserto uma coisa surge outro problema. Assim não é possível.
Num acesso de ira chutei o pneu furado. Mal o veículo deslocou algumas centenas de metros e lá se foi o primeiro pneu. A borracha estava muito ressecada para suportar a pressão do ar, o peso do veículo e talvez alguma ponta rígida. Voltei mesmo com ele furado sendo cortado pelo aço da rodagem. Tinha que voltar. Estava a mais de dois quilômetros da fortaleza e não arriscaria andando de pé. Na pressa em testar a pick-up saí esquecendo-me das armas de fogo que sempre tinha comigo.
_ De qualquer forma esse pneu não serve para mais nada mesmo. Tô ferrado.
Mal lembrei dessa expressão vulgar que ouvira muitas vezes em outros tempos.
_ Se esse pneu não aguentou, os outros também não aguentarão. Não sei mais o que fazer.
Fim de tarde com mais uma frustração. O que fazer agora que tenho que racionar energia das baterias. Usando uma lâmpada apenas para os afazeres noturnos, conferi a carga do conjunto de baterias. Mais uma vez, droga. Estão pela metade. Desse jeito vai levar uns três ou quatro dias para terem carga total. Se não houverem nuvens no céu o dia todo.
_ O que devo fazer com os pneus? O que fazer com as geladeiras? O que fazer com os carros?
_ Paciência meu caro. Disse em uníssono.
Só perguntas. A cada dia mais uma. A cada episódio mais uma questão insolúvel. Desse jeito minha vida será feita delas.
_ Não tenho respostas, não sei o que fazer para tê-las, mas de uma coisa eu sei. Não vou desistir. Não vou mesmo. Enquanto eu, vida tiver, vou lutar, vou buscar as respostas, vou buscar outros sobreviventes. Mesmo que seja montado em lombos de cavalos, ou andando à pé por esse infinito mar de floresta.
Capítulo 9
_ Estas árvores não estão ajudando em nada, pelo contrário, estão cobrindo e aniquilando a grama com suas sombras. A grama é o alimento especial para muitos animais. Detesto cortar árvores, mas não tem outra maneira de dar vida ao capim e ao gado. Além do mais estão muito próximas da fortaleza e isso pode acelerar a degradação dos materiais da sua construção. Cheguei a essa conclusão numa manhã de céu limpo e sol brilhante em que vários animais herbívoros tentavam encontrar comida perto do prédio.
Realmente, as árvores retém muita umidade no solo e nas paredes do prédio. Muitas invasoras e trepadeiras sobem pelas paredes e podem atingir até o teto. Isso não é bom. Desse jeito dentro de pouco tempo esse prédio também será como as demais construções da cidade.
Comecei uma limpeza do local a partir das árvores mais próximas e, a cada dia trabalhava com ferramentas e com as mãos nessa tarefa. Árvores menores e arbustos, eu cortava e removia o que podia delas. Samambaias, cipós e trepadeiras que eu conseguia puxar e desprender das paredes eu cortava ou arrancava pelas raízes. Outros apenas cortava e deixava secar para aos poucos ir queimando para aquecer e cozinhar alimentos.
_ Ah, se eu tivesse um braço mecânico para me elevar pelo menos até o terceiro andar.
_ É. Facilitaria muito nessa limpeza.
_Vou deixar as frutíferas para abrigo e alimento das aves e animais. As demais, na medida do possível vou cortando.
_As frutíferas servirão para mim também. É claro.
_Como pode uma árvore dessas se incorporar à floresta desse jeito. Disse recostado a uma frondosa mangueira que estava nas proximidades do prédio.
As árvores mais resistentes ou grossas eu cortava com um motosserra. As plantas menores usava um facão ou uma foice afiada. Mesmo em ritmo bem lento, como era de se esperar, dentro de alguns dias já havia aberto uma boa clareira e caminhava com mais segurança em torno do edifício. No alto da fortaleza, também onde havia plantas maiores, trabalhei duro durante muitos dias, mas consegui fazer uma boa limpeza. O ambiente estava cada vez mais agradável. Mesmo sabendo que afugentaria de certa forma as aves que procuravam descanso nesse lugar, inclusive os patos que eu saboreava tanto. Procurei um modo de drenar a água que acumulava no terraço quando chovia. Assim, a umidade não permanecia por muito tempo no local.
Dessa forma, enquanto não estava explorando as casas das cercanias ou, tentando consertar alguns dos veículos, ainda pesquisando nos computadores, eu estava trabalhando duro na limpeza. De certa forma estava gostando pois, preenchia o meu tempo e minha mente. O trabalho sempre me dava mais paz e harmonia.
Cheguei até iniciar uma cerca na frente da garagem para ampliar em parte os limites da porta e dessa forma poder plantar uma pequena horta para minhas provisões.
_ Mas, e as sementes? Onde encontrar as sementes? Não sei ainda.
_ Temo que alguns exemplares que encontrar por aí já não possuam mais as características amigáveis do milho, do arroz, do tomate e outros grãos e hortaliças. Possivelmente não possuem todas as características das sementes melhoradas de que tanto ouvia dizer antes do episódio catastrófico que me deixou nessa situação.
O milho poderia ter se tornado outra coisa. O arroz da mesma forma. Não sei nem se consigo reconhecer um pé de arroz, pois nunca convivi com essas plantas. Tomate, abóbora e outros legumes serão fáceis reconhecer. Além do mais, com tantos animais famintos nesta floresta urbana, dificilmente encontrarei sementes maduras para plantar. De qualquer forma, preciso tentar. Mesmo porque preciso encontrar coisas para fazer e preencher meu tempo, senão fico louco. Esses meses que se passaram por pouco não me levaram ao desespero, e algumas vezes quase cometi uma loucura querendo acabar de vez com a agonia que estava passando.
_ Que planta mais bonita e interessante. Mas o que é isso mesmo? Cheiro agradável.
Caule alongado e segmentado, folhas longas e fibrosas. Uma protuberância verde e cheia de fibras longas na ponta parecendo fios de cabelo. _Será mesmo um pé de milho?
_ Um pé de milho? Verdade. Que bacana!
Fiquei deveras emocionado com a descoberta dessa planta milagrosa e rica em nutrientes para os animais e o ser humano.
Recorri ao computador para procurar por mais informações e cheguei a conclusão de que se tratava mesmo de um pé de milho e já estava com uma espiga formada. Precisava deixar amadurecer para colher, deixar secar e ter as sementes para um plantio futuro. Um pé de milho não oferecerá fartura como alimento, mas como semente significa muita coisa. Assim eu fiquei sabendo em um documentário sobre ele.
_Se eu plantar todos os grãos da espiga, terei muitos e muitos pés, e sem dúvida muitas espigas para saborear e me nutrir.
Todos os dias eu ia até ele para averiguar e não demorou muito para os problemas surgirem. Certo dia, ao chegar perto deparei com um dos cavalos que frequentavam a porta comendo a meu precioso pé de milho.
_ Mas não é possível, você está destruindo minhas sementes. Com tanta grama por aí e você vem comer meu pé de milho. Caia fora já!
Havia sobrado pouca coisa, inclusive a espiga estava quase toda destruída. Peguei o que sobrou com todo cuidado e percebi que os bagos estavam cheios e amarelinhos. Lindos mesmo. Já estavam bem duros. Até fiquei com vontade de experimentar, mas contive o apetite. Antes que eu saísse do local com o que sobrou da espiga, um bando de macacos estava rondando por perto. Não sabia se macacos comiam milho, mas por via das dúvidas afugentei os bichos e recolhi o que sobrou da espiga, e levei para o terraço ao sol para secarem. Assim cobertos com uma tela de arame os patos não iriam devorar o restante, que não passava de umas poucas dezenas de grãos. Segundo fiquei sabendo estavam prontos para virarem sementes. Os grãos maduros e suculentos iriam para a minha horta para se transformar em muitos pés. Muitos pés e com certeza muitas espigas e milhares de grãos. Alimento e semente. Daria até mesmo para saborear algumas espigas e semear o restante. Seus bagos cheios de carboidratos, proteínas, vitaminas, açúcares e gordura. Um alimento importantíssimo nos dias anteriores, muito embora eu não soubesse praticamente nada a seu respeito. _ Certamente serão saborosos tanto frescos como depois de secos. É só descobrir como preparar.
_ Espero que o computador funcione para me dar essas respostas. Afinal, uma pessoa como eu, que nasceu e cresceu no meio urbano, sem contacto com as plantações e criações, com a terra e as plantas, não conhece esses processos. Mas hei de conhecer e dominar.
_ Se Deus assim o quiser.
Deus?
_ Mas onde eu posso encontrar material para fazer a cerca e montar minha horta?
Precisava de cabos de aço, madeira, pregos e ferramentas. Precisava furar muitos buracos no solo para plantar as estacas.
_ Mas vou conseguir. Vou conseguir. Vou conseguir. Se preciso, usarei somente madeira. Tenho como fazer isso. Afinal, madeira tem de sobra.
Vi num documentário, como alguns povos nativos construíam cercas usando apenas madeira. Contudo, pelo nível de degradação de alguns materiais que tinha explorando o local, deduzi que os cabos galvanizados não sofreriam desgastes substanciais, desde que acondicionados adequadamente.
_Vou explorar a via comercial e tentar encontrar cabos e outros materiais. Aliás, como aprendi a ser otimista, vou refazer a frase. Vou encontrar cabos de aço, ou galvanizados em lojas ou depósitos desses materiais. _ Ah, se vou.
Nasceu assim, a intenção de plantar dentro de uma área cercada com estacas e arame. Cavaria algumas dezenas de covas, depositaria as sementes secas, as cobriria com terra e esterco dos próprios animais. Meses depois o resultado apareceria em forma de pés com folhas largas, compridas e saudáveis; logo depois as espigas viriam cheias de bagos suculentos. Mesmo antes do plantio fiquei pensando no fato que, de apenas algumas dezenas de sementes, poderia ter milhares de grãos que serviriam de alimento e outras sementes ainda ficariam para o próximo plantio. Já havia descoberto que o milho servia para comer enquanto os grãos estavam macios, tanto cozidos em água, como assados em brasas como churrasco. Extraídas as polpas, serviam para serem cozidas sem tempero, dando o delicioso angu. Cozido com leite adoçado produziam o curau. Cozidos com gordura envolto nas próprias cascas da espiga, a pamonha tão saborosa e apreciada por milhares de pessoas. Descobri dezenas de formas de se preparar, o milho riquíssimo tanto para o ser humano como para os animais e aves.
Era uma manhã como as outras. O sol apareceu discreto, mas apareceu. Percebi isso pelos raios que penetravam pelas janelas que eu conseguira abrir as persianas após limpar as trepadeiras pelo lado de fora. Estava ainda tomando um banho para despertar, quando me lembrei de preparar um belo omelete com dois ovos de pata.
_ Uma delícia. Estou me tornando um mestre. Posso abrir um restaurante. Sorri desconfiado depois que a expressão saiu. De repente os raios de sol desapareceram por completo.
_ Uma nuvem passageira deve ter coberto o sol. Logo estará brilhando novamente. Pensei em voz alta.
O sol não reapareceu, pelo contrário, uma penumbra foi tomando conta do ambiente e as luzes tiveram que ser ligadas mesmo com o nível de energia muito baixo. Como o sol não reapareceu resolvi subir ao terraço galgando a escada, degrau por degrau, como fazia quase todos os dias.
_ O que é isso, meu Deus? Perguntei para mim mesmo, muito embora citando o nome do todo poderoso rei do universo.
A nuvem que cobria o sol, cobria também os remanescentes da cidade, tanto para o leste como as demais direções que conseguia ver. Parecia que o mundo ia acabar em água. Eram nuvens escuras e lisas por baixo. O céu estava todo coberto por elas e pareciam cobrir parte do que restou da cidade.
_ Terei provisões para quantos dias?
_ Não sei. É preciso averiguar.
_ Então, se cuida rapaz. Precisamos de lenha, para cozinhar, e lenha seca, pois ao que parece o sol não alimentará as placas de energia por enquanto.
De fato, uma chuva fina começou a cobrir o céu entre mim e o horizonte, estendendo-se como uma cortina branca por sobre as árvores e restos das construções. A essa altura a serra que ficava a leste, bem distante, já não podia ser vista de onde eu estava. A partir desse dia e por mais oito, não vi o sol brilhar. Mesmo quando não chovia, o céu continuava densamente nublado. Era um frio intenso noite e dia. Uma angústia e tristeza se abateu sobre mim porque pouca coisa tinha para fazer dentro da fortaleza a não ser procurar meios de me aquecer. Os dias pareciam não terminar mais.
Com muita dificuldade às vezes saía com uma arma de fogo para caçar e abater algum animal solitário para servir de alimento. Pensava nos grãos de milho que deixei secar para servir de semente. Estavam bem acondicionados para esperar o tempo certo do plantio, isso depois de aprontar a cerca e preparar a terra. Como sabia muito pouco sobre o assunto, e claro, não sabia que o milho produz muito bem quando irrigado artificialmente, fui deixando-o guardado.
_ Mas agora com essa chuva, como vou fazer tudo que tenho planejado?
_ Creio que no final dessa estação, posso começar o preparo da terra para dar início ao plantio do milho e outras sementes que encontrar. Isso quando a estação chuvosa voltar. Por enquanto essa chuva é de inverno. O plantio de sementes somente se dará no final da primavera.
Felizmente tinha lenha guardada em um canto dentro da garagem, pois já havia enfrentado momentos de chuva e sabia que mais dia menos dia precisaria dela. Era o inverno. Além da chuva, o frio. Onde estava, sabia que não ia ter neve, mas não me sentia bem com o clima frio. Mesmo que não fosse tanto. Por isso precisava de muita lenha para aquecer-me nas noites dos próximos meses.
_ Esse frio me lembra meus tempos de criança na cidade onde morava, espero que não seja tão intenso como lá, caso contrário posso morrer congelado. Não tenho roupas suficientes e nem sistema de aquecimento.
Só tinha mesmo lenha para cozinhar meus alimentos e aproveitar a energia delas enquanto o fogo estava aceso para me aquecer.
Me enganei, pois o frio foi muito intenso, como nunca havia sentido desde quando me mudei para essa cidade. Quando a noite chegava, aumentava tanto e tinha que manter o fogo acesso para não morrer congelado dentro de casa. Quando a chuva dava uma trégua, eu recolhia mais lenha e a colocava em um lugar seco para que ela desidratasse por fora. Depois transferia para as proximidades do fogo para que fosse secando e aquecendo para que logo pudesse ser usada.
Minhas opções de trabalho e diversão eram poucas. Alguns aparelhos de ginástica era o que de melhor havia. Ouvir música, dançar ao ritmo das que eram mais ritmadas. Escrever minha agenda e minhas experiências diárias tornou-se obrigatório. Alguns livros que encontrei eu lia à luz do fogo do fogão. Eles vieram em ótimo momento, pois os computadores não tinham energia para funcionar e assim não tinha como pesquisar nos seus arquivos.
Até mesmo os patos e algumas vacas e cavalos domesticados queriam adentrar à fortaleza para se aquecerem um pouco e se secarem de tanta chuva e frio. Como a garagem era bem ampla, resolvi abrir as portas e separar um espaço para eles se acomodarem. Afinal, duas das vacas já permitiam que eu as ordenhasse. Com isso essa tarefa ficou mais fácil. Tinha que fazer o trabalho em meio aos outros animais que ficavam desconfiados e muitas vezes agressivos. Também domar os cavalos que já se encontravam mais amistosos foi penoso. O espaço era grande o suficiente para isso, principalmente depois que retirei parte do material que não tinha utilidade. Dessa forma quando sentiam sede ou fome eles saíam para o campo, mas logo voltavam tremendo de frio.
_ Para esses animais se esconderem desse jeito é porque o frio está mais intenso do que nos anos anteriores.
_ Infelizmente, não posso dar a vocês todo o sal mineral que tenho. Amanhã posso precisar e aí?
Minha alimentação básica era o leite e derivados que aprendi a fazer. Carne de alguma caça, ovos e o que restou nos depósitos da fortaleza. A maioria destes, afinal, não estavam mais em condições de uso, desde que começou a faltar energia nos freesers. Não sabia a quantos anos estavam guardados. Muito embora alguns de aspecto normal já me causavam certo asco.
_ Graças a Deus tenho alimento natural suficiente. Esse patê, não sei de quê, não desce mais pela garganta.
Tinha que dar um jeito de filtrar e armazenar água potável, pois não sabia ao certo o nível dos depósitos da fortaleza. Com muito esforço, um dia subi ao terraço superior onde ficavam os depósitos secundários de água e percebi que as reservas não estavam tão boas assim. Apesar de bem acondicionadas não sabia por quanto tempo ela estava estagnada nesses depósitos.
_ E a qualidade dessa água? Não sei como está. Deve passar por filtros e sistema de oxigenação, pois até agora não sofri nenhum tipo de enfermidade que pudesse ser atribuída a ela.
_ De qualquer forma, de hoje em diante vou ferver pelo menos a água de beber.
Com certeza estávamos no inverno, pois o frio estava muito intenso e muitas árvores começam a perder as folhas. Não foi fácil passar os meses naquele local sozinho e nas condições que me encontrava. Para mim o inverno sempre foi difícil estando com minha família, com recursos de energia, alimentos próprios e variados. Foi mais difícil passar os meses naquelas condições. Cessada a chuva, e os dias nublados, durante o dia o sol era muito quente, mas à noite, o frio era intenso.
_ Creio que minha cápsula deve ser mais quentinha para passar melhor as noites frias.
_ Que bobagem, aquela bolha sem energia é como qualquer outro lugar. Pensando bem...ela deve concentrar e reter meu próprio calor. Vou testar.
Tecendo umas e outras conjecturas, eu passava as horas e os dias, pensando e repensando. Elaborando projetos para o dia seguinte e para quando o inverno parasse.
Plantar, minhas sementes naquele ano havia passado da hora. Com o frio e a falta de material para a cerca, a primavera chegou e se foi sem que o local estivesse preparado. Também eu não conseguia definir com exatidão as mudanças de estação, pois nunca havia dedicado muita atenção para esse e outros detalhes importantes da vida. Só para o ano seguinte quando a horta estivesse pronta e a primavera chegasse trazendo calor para fazê-las eclodir. Ainda bem que estavam bem secas e devidamente guardadas.
_ Vou ajuntar o esterco dos animais para usá-los no plantio do próximo ano.
_ Enquanto isso, vou descobrir como fazer esse tipo de coisa.
_ Uma lareira? Bem que seria bom.
Capítulo 10
De uma coisa eu já estava consciente. Estava sozinho, pelo menos, nessa parte do mundo. A cada dia que passava e a cada tentativa frustrada de localizar alguém aumentava minha certeza de que não mais veria outro ser humano. Mas não queria desistir. Possivelmente o mundo inteiro estivesse desabitado e eu me encontrava solitário física e emocionalmente. Diante de todos os acontecimentos a solidão havia me levado a um desalento total pois quanto mais eu pensava em respostas menos elas apareciam. Quanto mais eu as procurava mais perguntas surgiam. Menos evidência delas eu tinha. Sabia que estava vivo, sozinho e que as reservas de energia e de recursos tecnológicos estavam caminhando para o fim. Teria que aprender a sobreviver apenas com os recursos naturais e ferramentas básicas.
_ O homem sem seu conteúdo social não consegue sobreviver por muito tempo. Isso sempre ocorreu na história da humanidade.
_ A cada dia me aproximo mais do homem das cavernas. Com diferenças básicas. Não tenho companhia. Tenho conhecimento mas não tenho tecnologia.
_ Sobreviverei? Não sei por quanto tempo. Terei que ir levando a vida até que chegue a um fim. Foi uma severa conclusão.
A essa altura transferi meu dormitório para um ambiente que passei a chamar de quarto, pois era bem amplo, arejado e muito bem iluminado pelo sol e pela lua. Da cama eu podia contar as estrelas, quando possível, até o sono chegar. Era do jeito que eu gostava. Suas amplas janelas de vidro me permitiam ver do lado de fora e quando abertas permitiam a entrada de vento para renovar o ar no seu interior. Tinha além de um belo banheiro outros utilitários que me faziam sentir bem confortável.
_ Pelo menos em relação ao conforto físico estou bem instalado nesse apartamento.
Dele saía praticamente direto para a sala de estar e cozinha. Tudo ficava num pavimento pouco acima do térreo, portanto, próximo à saída principal do prédio.
Naquela madrugada acordei com a claridade da lua que aproveitava um momento de céu sem nuvens, para me despertar. Sua claridade era tanta sobre o meu rosto, que mesmo fechados meus olhos doíam. Também, alguns pássaros de hábitos noturnos cantavam nas proximidades. Era um canto solitário e triste. Grilos chiavam agudo nos cantos do quarto. Nunca sabia se era um ou vários, se estava de um lado ou do outro, ou mesmo se estavam em vários locais. Chiavam por todos os lados. Podia ouvir lá em baixo, os cães agora selvagens latindo e outros uivando. A princípio pensei que já era hora de me levantar e iniciar um novo dia.
Logo depois desse momento de encanto, o céu começou a ficar escuro com densas nuvens cobrindo a pouca claridade. Não conseguia distinguir ainda se a claridade era mesmo do sol que ameaçava nascer ou da lua opulenta no final do seu curso no oeste. O certo é que ela durou pouco. Uma chuva fina e contínua começou a precipitar e molhar a vidraça. Apesar de mansa e fina ela se deixava levar pela brisa até a parede e a vidraça do lado nordeste do prédio.
Fechei os olhos e tentei dormir novamente, mas os pensamentos e devaneios começaram a me torturar como se eu fosse um prisioneiro de um centro de concentração nazista.
_ Pelo visto não adianta levantar desta cama pois a chuva não vai me deixar sair para fazer coisa alguma.
Aliás, o que me fazia esquecer ainda que momentaneamente o meu problema era o trabalho. Quando não tinha alguma necessidade eu inventava outra coisa para fazer. Quando achava que não tinha nada de proveitoso, costumava desfazer tudo e começar de novo o que já estava pronto. Assim mantinha o meu tempo e a mente ocupada o dia todo. A noite estava sempre cansado e assim conseguia dormir. Agora, não podia acessar a uma rede de TV ou de internete pois elas não existiam. Nada de ouvir uma notícia pois não existiam mais notícias nem repórteres para anunciá-las.
_ Droga, merda, não existe ninguém mais neste mundo? Somente eu e minha solidão? As palavras que saíam, muitas vezes doíam nos meus próprios ouvidos. Mas, enfim, saíam.
Você está sozinho. Essa era sempre a resposta que ouvia de todos os lados inclusive de dentro de mim. Não havia mais ninguém para falar comigo.
_ Não pode ser. Não pode ser. Essa situação é demais para mim.
Puxei o velho cobertor sobre a cabeça e fechei os olhos. A cena se repetia. Prédios caídos, outros desmoronando aos poucos, ruas desertas de pessoas e cheias de vegetação e animais selvagens. A movimentação que via era apenas de minha memória que se encontrava tão viva quanto eu. Inquieta e impaciente quanto eu.
_ Infelizmente.
_ Eu deveria estar morto como as demais pessoas desse planeta. Sou mesmo um azarado, um morto vivo. Viver assim sem ninguém, não sei até quando vou suportar. O pior é que a morte não quer chegar nem perto de mim.
Quando fechava os olhos via nitidamente a movimentação nas ruas quando passeava com minha família, quando fazia compras, ia ao parque no domingo com minha filha. Ouvia as buzinas ferozes dos motoristas frenéticos gritando palavras de ordem a todos que cruzavam seu caminho. Sirenes de polícia e de resgates cortavam o céu pelas ruas gritando com os motoristas stressados. _Saiam do meu caminho. Saiam seus imbecis. Barbeiros!
Certa vez ouvi um PM dizer-me com toda classe: _O senhor é um imbecil. Eu sequer sabia o que havia feito de errado.
_ Vai levar uma multa seu analfabeto. _ Encoste ali. _ Documentos do veículo e do condutor. Dizia um outro policial a outro condutor, com sua cara amarrada. Mais parecia um carrasco do que um policial para cuidar da segurança da sociedade. Por outro lado, podia ouvir meu diretor dando uma ordem durante um teste em uma de nossas experiências. Ligue isso, ligue aquilo. Todos prontos para iniciar a contagem? Já conseguiram verbas para a próxima etapa do projeto? Já fecharam os relatórios solicitados?
_ O que aconteceu agora?
_ Caiu a fase e os perversores não conectaram no tempo certo.
_ Agora os computadores não respondem.
_ Esse aqui travou, responde um dos técnicos.
_ Droga, temos que reiniciar tudo. Inclusive os computadores. Traz um suco para o iniciante.
_ Verifique a temperatura ambiente e as vazões dos tubos de alimentação.
_ Confira os sensores da fase direita.
_ Depressa com isso.
Minha cabeça girava e fervilhava com pensamentos e lembranças. E respondia com inquietação e mais dúvidas.
_ Tenho que me levantar e fazer alguma coisa ou vou enlouquecer. Virava na cama de um lado para outro, depois voltava para a mesma posição. Creio que nunca tive uma noite tão comprida e indigesta como aquela. Nunca havia enfrentado situação tão difícil.
Seguiram-se dias de muitas lembranças, muitos questionamentos sem respostas e muitas noites sem sono. Até a fome ausentou-se de mim e quando comia alguma coisa o fazia simplesmente pela necessidade do que pela vontade.
Um dia me peguei assinando o boletim escolar de minha filha em um pedaço de papel quadriculado que estava sobre a mesa. Podia ver claramente suas notas e sentir o mesmo orgulho que sentira no dia em que o recebi pela primeira vez da escola.
_ Viu querida, como nossa filha é mesmo inteligente? Falei sem perceber.
Quando percebi o que estava fazendo e falando senti as lágrimas escorrerem pelo meu rosto. Agora, pelo menos podia chorar sem sentir vergonha; não tinha ninguém para notar e testemunhar essas emoções pouco masculinas. Bati com a mão fechada sobre a mesa com toda força que tinha. Não cheguei a sentir dor no punho, mas na alma.
_ Se pelo menos essa chuva parasse por um instante. Sempre gostei de chuva mas não de sair e me molhar dela. Só me resta uma coisa. Encontrar um tranquilizante para me ajudar a pegar no sono novamente. Mas onde encontrar? O que tenho está com data de validade marcando seu vencimento a sei lá quantos anos.
_ Que merda! Merda, merda! O que eu faço agora?
Ia me levantar para pegar a pistola que estava sempre por perto, mas não encontrei forças. Fiquei por horas de cabeça baixa segurando-a com as mãos e sentindo as lágrimas escorrerem pela minha face.
Estava saindo da garagem de minha casa numa viagem de férias. As últimas férias que duraram apenas dez dias. Tinha que voltar e me preparar para entrar na cápsula por pelo menos três anos. Talvez cinco. Teria que fazer depósitos para manter a sobrevivência da família o tempo em que estivesse dormindo, apesar de saber que os meus vencimentos todos os meses, que por contrato seriam repassados para minha esposa. Eu era precavido e não queria deixar lacunas. Também não precisava levar dinheiro para onde eu ia. O futuro. Caso acontecesse algo errado elas teriam uma garantia extra através do seguro que havia contratado. Pagar contas, consertar o telhado, trocar o veículo por outro novo e coisas dessa natureza.
_ Você não vai entrar nessa coisa. Disse minha esposa desesperada. Tinha o rosto molhado de lágrimas e a cabeça baixa. Desiludida. Vocês não sabem ainda todos os efeitos desse sono tão prolongado.
_ Mas querida, eu preciso. Essa é minha carreira profissional. Um cientista precisa se entregar de corpo e alma naquilo que faz. Ou então, seu projeto não passa de um experiência mal sucedida. Nunca iniciei nada com o pensamento na derrota. Posso até não ser bem sucedido, mas não sem antes lutar muito e dar tudo de mim.
_ Você não está pensando em mim e na sua filha. Em seus pais que já estão velhos.
_ Já assinei os protocolos. Não posso mais voltar atrás. Disse tentado fazer algum carinho no seu rosto e limpando suas lágrimas. Por outro lado, tenho vontade de sentir na pele os efeitos dessa viagem. Não se preocupe. Vai dar tudo certo. São poucos anos. O tempo passa rápido e logo estarei de volta. Os protocolos de adesão me garantem três meses de férias ininterruptas quando sair da cápsula. Posso inclusive solicitar mais mais duas férias que estão pendentes desde que iniciamos os estudos. Assim ficaremos juntos e você verá que vai recompensar. Além do mais serei reconhecido como o homem que dormiu por cinco anos e não envelheceu.
_ Não sei, tudo isso é muito temeroso. Disse ela mais calma. Pode não dar certo e perdê-lo dessa forma não está nos meus planos.
_ Mas você não vai me perder. Eu também não vou perdê-la. Quero fazer uma festa quando voltar. Confie em mim e em meus colegas do projeto. Tudo foi feito e revisto por uma equipe de pessoas muito bem treinadas e confiáveis. Além do mais está previsto para esta etapa um plantão de vinte e quatro horas por dia para monitorar todos os acontecimentos da cápsula enquanto eu estiver dentro dela. Se qualquer coisa ameaçar a minha integridade eles interrompem na hora.
Não revivi a resposta e as argumentações dela nesse dia, pois uma rajada de vento mais forte fez com que a chuva penetrasse pelos vãos da janela e o frio aumentou me fazendo levantar aos palavrões para fechá-la. A movimentação levou essas recordações, mas não levou as minhas dores.
_ Essa merda de chuva ainda molha minha cama. Que saco.
Levantei chutando o que via pela frente. Fui até a janela e num lance de violência arremessei-a contra os portais e o vidro estilhaçou caindo nos meus pés. De um salto me afastei um pouco, mas os fragmentos já haviam caído sobre mim. Outros palavrões e outros chutes. Por sorte não me feri profundamente, pois ao virar-me tropecei em alguma coisa e quase caí no piso do quarto, cheio de estilhaços. Saí esmurrando a parede.
Quando vi pequenas gotas de sangue no meu braço, pude exclamar:
_ São apenas arranhões. Essa merda de vidro não presta mesmo. Agora a janela tem que ficar aberta, não tenho outro para substituir.
Saí excomungando e maldizendo tudo. Aos gritos e berros xinguei o diretor, o orientador, xinguei minha esposa e cheguei a gritar maldizendo até mesmo Deus.
_ Porque vocês me deixaram entrar nessa merda de cápsula? Porque não morri antes de acordar dessa praga miserenta. Droga, droga. Mil vezes droga. Vou dar um jeito nisso tudo, agora mesmo.
Saí do quarto, quando o dia já havia amanhecido, decidido a me jogar do alto do prédio se fosse necessário. Confesso que essa ideia já havia passado pela minha cabeça, não apenas uma vez, mas várias. Minha covardia não permitiu que eu a levasse a cabo. Saí correndo pela porta da garagem e adentrei à chuva, e ao mato. O medo desapareceu e corri feito louco em meio às gramíneas que em função das chuvas abundantes estavam bem altas. Enquanto a chuva caía sobre meus ombros, corria e xingava gritando a toda altura. Descalço e quase nu corri até cansar a ponto de perder o fôlego. Então caí deitado numa poça de lama. Havia tropeçado em uma raiz exposta e quase arrancado o dedão do pé. Por sorte foi apenas a unha. Assim deitado de costas, via os pingos de chuva caírem sobre mim como fagulhas que desciam alheias ao meu sofrimento. Cada uma descia veloz e não respeitava meu sofrimento, mas pareciam brilhar quando a luz interpunha entre elas e meus olhos. Deus lá de cima, parecia também alheiro a minha agonia.
_Só quero que um animal feroz me ataque e devore minha carne. Assim essa agonia terá fim.
Fiquei assim deitado e olhando a chuva cair sobre mim e vez ou outra fechava os olhos para que não caísse dentro deles. As gotas caíam tão alheias quanto os animais que pastavam por perto. Somente caíam. Não podiam sentir nada, pois sua animação só tinha a ver com a gravidade. Apesar do meu acesso de fúria tinha consciência de tudo. Tinha consciência mas estava emocionalmente transtornado, e não conseguia ter reação alguma. Não sei se o que mais me molhava era a chuva ou minhas lágrimas. Chorei feito criança em voz alta, aos berros na esperança de que alguém ouvisse e visse minha situação, e se compadecesse. Mas nada. Nenhuma resposta.
Fiquei ali deitado na lama não sei por quanto tempo. Nenhuma resposta, nenhuma viva alma, nenhum animal ousou se aproximar de mim. Estava começando a me resfriar quando senti uma picada no braço e, assustado levantei de um salto. Era apenas uma formiga solitária incomodada com minha presença talvez no seu território. Quando me levantei e comecei a andar senti um ardor no dedão do pé direito e percebi que estava sangrando. Senti a dor somente depois que vi o sangue colorindo a enxurrada.
_ Droga, tenho que encontrar algum medicamento antes que isso me traga um tétano. Me vacinaram contra tétano, mas quantos anos fazem?
Cruzei os braços por causa do frio e caminhei em direção à porta. Pisava com o calcanhar do pé direito por causa do tropeção. Ao que parece, aquela chuva fina caindo sobre minha face e meus olhos, a tranquilidade da brisa que embalavam as folhas das árvores e palmeiras, o silêncio e, quem sabe, Deus, fizeram acalmar meu coração e minha alma.
Minha pata me recebeu com sua pantomima costumeira e me acompanhou até o interior da fortaleza. Não dei atenção a ela. Subi para o quarto, tomei um banho frio, pois não tinha energia suficiente para fazer funcionar o chuveiro e não estava disposto a esperar que o fogo aquecesse tanta água para um banho. Troquei de roupa e coloquei um agasalho. Improvisei um curativo com tiras de tecido limpo para o dedo e coloquei meias para aquecer os pés. Não consegui calçar tinis, por isso usei um par de sandálias mais confortáveis. Depois desci, fiz um chá quente e forte com folhas de erva cidreira de folhas longas, e tomei com um bom prato de carne frita e mandioca cozida. Eu parecia outra pessoa. Chorei novamente, mas dessa vez porque uma paz misteriosa invadiu minha alma e me fez sossegar e cantarolar alguma canção.
Consegui dormir um bom sono no período da tarde, uma vez que a chuva não deu trégua por todo o dia. Apenas deitei-me num sofá que tinha na sala. Para que o vento não entrasse e aumentasse a sensação de frio, fechei a porta que dava para o quarto. Cobri-me com um cobertor e disse algumas palavras me desculpando com Deus pela maneira desrespeitosa e agressiva com que me dirigi a Ele. Não ouvi resposta e se ela veio não pude compreender nada.
A crise trouxe a consciência de que minha situação era cruel mas eu tinha que enfrentar tudo. Reforcei minha vontade de buscar as respostas que tanto me atormentavam. Mesmo que tivesse de andar errante pelo mundo pelo resto dos meus dias.
_ Tem que haver uma resposta. Em algum lugar no tempo e no espaço.
_ Eu que tracei praticamente todo o projeto desse experimento, vou fazer meus projetos, trabalhar neles para encontrar essas respostas. Quem sabe encontro outras pessoas na mesma situação que a minha.
A partir daquele dia comecei a pensar melhor na minha sobrevivência e saúde, física, mental e espiritual. Me acalmei, muito e embora muitas vezes o stresse tenha me trazido outras crises, mas saí dessa com esperança e com força para lutar pela minha vida ainda que sozinho num mundo destruído quem sabe, por mim e meus concidadãos.
Capítulo 11
Eu aproveitava os dias sem chuva para sair da fortaleza e tentar adestrar algum cavalo. Com o frio eles se acostumaram mais com a minha presença e eu sempre tinha um pouco de sal para agrada-los. Consegui passar o laço no pescoço de um e procurei ganhar sua confiança andando ao seu lado e obedecendo os seus comandos. Quando ele se exaltava um pouco eu soltava. Quando se acalmava, eu o puxava para perto de mim. A propósito, o cavalo que saiu correndo no dia do terremoto não mais retornou com os demais. O que mais consegui me aproximar era também um belo animal, esperto, elegante com crinas longas e lisas. Era quase sempre o primeiro a chegar para ganhar a porção de sal. Oferecia também alguma porção de capim, que creio não eram melhores do que os do gramado, mas eles gostavam de receber das minhas mãos. Talvez estivessem revivendo seus ancestrais domesticados.
Depois de alguns dias fazendo contacto, consegui aparar suas crinas e escovar seus pelos com uma bucha vegetal. Ele parecia gostar, mas se mostrava sempre muito inquieto. Como eu não tinha experiência com montarias, temi fazê-lo nos primeiros dias. Passeava ao seu lado tendo a corda que o amarrava sempre presa à minha mão e bem curta para ele sentir minha presença e meu domínio. Aos poucos fui conquistando sua confiança. Quando não dormiam na garagem, ele era o primeiro a chegar ao pátio que já estava limpo e pisoteado. Afinal, patos, e outras aves, vacas e cavalos, além de alguns pequenos animais frequentavam a porta todos os dias na esperança de ganhar algum alimento o que eu sempre que os tinha, e fazia com gosto. Procurava mesmo repartir o que era destinado a mim com eles. Alguns cães vinham procurar sobras dos animais que eu abatia. Alguns chegavam a dormir dentro da garagem algumas vezes. Para não permitir a invasão deles no interior de todo prédio, optava por fechar a porta que estava entre a garagem e demais aposentos.
_ Estou conseguindo ganhar a confiança deles. Isso é muito bom. Eles são ótimas companhias.
Estava quase sem energia elétrica há vários dias seguidos, pois o sol não aparecia para estimular os painéis. O reator, por outro lado, não funcionava a meses, também as pás das turbinas eólicas haviam travado com o terremoto e a forte ventania que ocorreu. Desta forma, a única alternativa para fornecimento de energia para o prédio eram as placas solares.
_ Mas sem sol...não é possível fazer muita coisa.
_ Estou mesmo ferrado. Não fosse o tédio desta solidão desumana, até que dava para viver mesmo com tantos problemas. Melhor se pudesse passar o tempo vendo um filme, um jogo ou uma outra atividade qualquer com o computador.
_ Somente posso ler um bom livro nas proximidades das janelas, pois não tenho outros meios de produzir luz suficiente.
Procurava não abrir o freezer que ainda continha alimentos para não derreter o gelo que se formou no seu interior. Assim o que ele guardava durou mais tempo.
A claridade e o calor do dia era pouco e a umidade tomou conta de tudo. Como eu estava no meio de uma grande floresta isso agravou-se ainda mais. Passava a maior parte do tempo numa sala próxima à saída para o terraço ou na porta da garagem, onde havia mais iluminação podendo dessa forma fazer alguma coisa útil. Ainda tinha alguns livros editados em papel os quais eu não tinha lido. Também um exemplar da Bíblia que lia com frequência a partir do seu primeiro livro, e já estava quase no fim.
Por fim depois de adquirir confiança encontrei coragem para montar o cavalo. Comecei cavalgando por perto para não cansá-lo antes da hora. E tinha que ter domínio completo para não correr o risco de ser deixado no meio do caminho. Apesar de tudo ele se tornou um animal muito dócil. Só faltava mesmo ele adquirir total confiança em mim e eu nele.
_ Aliás, os animais tem mais medo do homem do que o homem deles. Não sei porque.
Como não tinha cela apropriada, improvisei alguns forros de tecido, e até mesmo um pedaço de couro do animal animal abati alguns dias antes. Forrei o dorso do cavalo e amararei por baixo com uma espécie de cinto com fivela. Eu tinha visto esse tipo de forro numa ilustração e posteriormente produzi com minhas mãos algo mais confortável.
_ Acho que assim ficou bom. Só espero que o cavalo não se sinta incomodado e resolva me derrubar do seu dorso. Risos.
Desse forma o animal se tornou meu parceiro e amigo me levando onde eu queira, ou era possível. Numa de minhas explorações pelas lojas que ainda resistiam ao tempo, encontrei uma cela de couro, bastante desgastada pelas traças. Com uma pequena reforma ficou em ótimo estado. Arreava o animal sempre que a chuva dava uma trégua, colocava um pelego sobre o arreio e saía cavalgando pelos espaços que pareciam ser ruas anteriormente.
_ Montado, minha exploração funciona muito bem, pelo menos para as pequenas distâncias. Não tenho que me stressar com conserto de carro. Quando der, tudo bem.
_ Com certeza, meu caro amigo.
_ Basta ficar atento às onças e outros predadores. Esse local está cheio deles.
_ É verdade, sempre os vejo quando estou no alto da fortaleza.
_ Então, cuidado nunca é demais. Não esqueça nunca de levar boas armas de fogo, facão, e o que for possível.
_ Outra coisa. Nunca vá longe demais.
_ Sei, sei, sei. Droga, estou novamente falando comigo mesmo.
_ Ah!. Também não tenho mesmo com quem falar, falo comigo mesmo. E eu mesmo respondo. _Sorri à vontade montado, a caminho não sei de onde.
É isso mesmo. Você (eu) é meu grande companheiro. Meu melhor amigo. Sorri novamente.
Muitas vezes divagava tanto conversando comigo mesmo e acenando com os braços e mãos, que me distraía pelo caminho. Enquanto isso, o cavalo de cabeça baixa me levava guiado mais pelo seu instinto do que pelas minhas rédeas.
_ A chuva está chegando novamente. Tenho que encontrar abrigo até que passe pelo menos a mais grossa. _ É sempre assim. Volto para casa molhado de suor ou de chuva.
_Mas o importante é que sempre volto.
_ Verdade.
Entrei rapidamente em uma construção com um salão enorme cheio de restos de objetos, prateleiras, caixas e muitas teias de aranha. Dejetos de aves e morcegos, haviam manchado os móveis e restos de produtos. Ossadas humanas estava sempre por onde eu andava de maneira que não me assustavam mais.
De repente fui tomado de um susto, tanto que tive taquicardia. Quase não me controlo. Tive que parar um pouco, passar as mãos no cabelo, cruzar os dedos das mãos e tocar os polegares com suas pontas, o que se tornou um hábito, para me acalmar. Alguns manequins ainda estavam de pé, vestidos com roupas ainda aparentemente boas. Usavam jeans, e outras modelitos em muito bom estado de conservação. Os manequins eram tão perfeitos que eu os confundi com pessoas. Quando me acalmei do susto fui explorar melhor os modelos, as roupas, sapatos e outras coisas interessantes que vira. Eles me despertaram a atenção, pois há tempos não via nada de interessante. Eram quase humanos. Toquei em um, que alcancei primeiro, para ter certeza de que não era um rapaz. Era rígido e sem vida. As roupas estavam fragilizadas pelo tempo e pelas traças. Ao primeiro toque pude sentir sua fragilidade. Fui a um manequim feminino que parecia ainda mais humano.
_ Muito interessante, parece macio como o corpo humano.
Toquei de leve e tive uma sensação estranha. Meu dedo afundou na sua estrutura tanto quanto no corpo de uma pessoa. Toquei novamente.
_ Droga, esta coisa está viva!
Toquei de novo para ter certeza.
_ Não! Não é possível, cara.
_ É como tocar em uma pessoa de verdade.
Testei na minha própria pele e tive a mesma sensação. Apertei com força o seu braço e ele se mudou de posição obedecendo aos meus esforços. Forcei em outra direção e ele me obedeceu dobrando o braço na altura do cotovelo. Empurrei e ele me obedeceu.
_ Santo Deus! Não é possível! Será um androide desativado? Fiquei arrepiado a princípio.
_ Será que enquanto eu dormia a ciência desenvolveu tanto?
_ Vou verificar o seu peso.
Abracei-o pela cintura e levantei para o alto com a força dos meus braços.
_ Que merda, tem mais poeira do que qualquer outra coisa. Sua roupa está apodrecida e fedida. Rasgou toda.
_ Também você esperava sentir o cheiro de uma mulher depois do banho? Sorri.
_ Não seria nada mal. Um sonho, encontrar uma companheira nesta imensa terra deserta. Melhor que um companheiro. Isso seria bom.
_ Mesmo que fosse uma androide?
_ Mesmo que fosse.
Logo descobri que era apenas um manequim desenvolvido em silicone. Tão perfeito que dava para confundir com qualquer pessoa. Pena que não falava, não andava, não podia trabalhar.
Roupas embaladas à vácuo em sacos plásticos se encontravam em ótimo estado de conservação em vitrines de vidro. Apresentavam praticamente a mesma consistência das novas quando as conheci. Procurei pelo meu número e experimentei ali mesmo uma muda nova. Na frente dos manequins que agora se faziam meus amigos. Cuecas, calças e camisas a meu gosto. A loja era enorme. Reuni algumas peças para levar, embalei tudo em uma sacola e preparei para voltar. Encontrei uma capa de chuva muito apropriada para o momento e coloquei sobre o meu corpo. Tudo, apesar de usáveis, cheirava a guardado no baú. Quando fui montar, a princípio o cavalo ficou arredio com a diferença, mas ao falar com ele em voz audível ele se acalmou. Já ia saindo quando me lembrei.
_ Um manequim desses pode me fazer companhia. Pode ser uma boa ideia. Mas como vou levar montado no cavalo? Pode estragar.
_ O cavalo pode não gostar da ideia.
_ Vou pelo menos tentar.
Puxei o animal por entre o estoque da loja até onde se encontravam os manequins e o fiz parar próximo a eles. A princípio ele ficou meio arredio e teve dificuldade de aproximar-se, mas com palavras e carinho ele se acalmou. Peguei a mão de um dos bonecos e coloquei sobre o seu dorso. Ele sentiu que era diferente, mas aos poucos se acostumou e se acalmou. Como a roupa dos bonecos estava muito deteriorada e apresentando odor nada agradável, despi alguns para examinar melhor.
_ Não tem órgãos genitais. Também pudera, são apenas manequins.
Ao tirar as roupas sujas e rasgadas fui apalpando o corpo dela de maneira um tanto erótico, acariciando suas partes mais sensuais até que me senti bastante estimulado. De repente caí na real e interrompi meus pensamentos e atos libidinosos.
_ Que pena em cara!
_ Uma mulher a essa altura não seria nada mal.
_ Companhia e sexo seguro.
_ É. Calei meus pensamentos a respeito. Não tinha opção.
_ Como montar? Pensei, pensei. É muito pesado para que o puxe depois de estar montado. Se eu o colocar primeiro não vai equilibrar.
Levei o manequim para fora do prédio, o coloquei sobre a calçada que ainda era um pouco mais alta do que o nível da rua e fui buscar o animal. Montei e aproximei do boneco. Escolhi um do sexo feminino, pois, pensei que uma companhia feminina seria melhor. Já que não iria me ajudar nas tarefas, que pelo menos fosse uma presença do sexo oposto. Teria com quem conversar.
_ Pensando bem, já que desenvolveram manequins tão perfeitos, não seria difícil pelo menos fazê-los conversar.
_ Ou colocar genitais neles.
_ Também.
_ Mas isto já existia antes. A questão é encontrá-los.
_ Pare com isso cara. Você não tem jeito mesmo. Sorri meio desconfiado.
_ Qual o homem que não pensa em sexo?
_ É verdade. Mas aqui e agora isso não é possível.
Encostei o animal o máximo que pude, e abaixei para pegar minha companheira, mas os forros que estavam sobre o seu lombo cederam e eu caí sobre ela ou quase sobre.
_ Quase me machuco nessa brincadeira.
Não era de desistir com facilidade, por isso levantei-me meio constrangido, a roupa nova meio molhada e suja. Ajeitei novamente os forros sobre o animal, apertei bem a cinta, montei e repeti com sucesso a façanha. Deitei com todo cuidado a boneca sobre o animal bem na minha frente. Suas mãos penduradas iam balançando. Do outro lado os pés da mesma maneira.
_ Será que não vai estragar?
_ Espero que não. Vou cavalgar bem devagar. Mesmo estando um tanto longe de casa chego ainda durante o dia.
Durante a viagem eu tinha todo cuidado com ela para que não sofresse nenhum dano. Desviava de uma moita, de um tronco caído, de um monte de entulho. Vários veículos me fizeram traçar um verdadeiro zigue-zague. Mas segui meu caminho de volta.
_Você precisa resistir a esta pequena viagem. Dizia para ela a todo momento e a qualquer tropeção do animal.
Nesse retorno as coisas não saíram totalmente como eu esperava. Havia uma área em que a vegetação era bastante densa e atrapalhava a visão mais distante. Senti que alguma coisa não ia muito bem, pois o cavalo assustou e ficou impaciente parecendo pressentir alguma coisa errada. Meu coração disparou juntamente com o dele e tive certa dificuldade para me controlar e controlar o animal. Não sabia se segurava minha companheira, se dominava o cavalo, ou se sacava a arma. Nessa luta preferi dominar o animal e sacar a arma.
O cavalo bufava e batia com as patas no solo e dava voltas em torno de si mesmo, com muita dificuldade para se acalmar. Eu já estava com a pistola em punho e pronta para disparar no que aparecesse pela frente. Ou por trás, sei lá, pois dizem que os predadores preferem atacar por trás. O cavalo rodopiava freneticamente. De repente, ela apareceu bem na minha frente, a menos de quinze metros. Mas não assumiu posição de ataque. Ao que parece queria passar e seguir a diante. Não tinha meu sensor de movimento, mas o cavalo tinha faro e ouvidos bem apurados. Ele era bem equipado para sentir a presença de onças a centenas de metros de distância. Instinto de sobrevivência.
_ Ainda bem.
_ E se tiver outras?
O bicho sumiu no meio do mato e o meu cavalo finalmente se acalmou. Se eu tivesse atirado, teria sido pior pois o cavalo não estava acostumado com estampidos tão fortes e teria feito uma grande fuga me deixando para trás.
Guardei a arma e me dei conta de que minha amiga manequim ainda estava balançado os braços e as pernas. Espero que não tenha se estragado.
Procurei uma nova posição para ela, desta vez montada como eu e na minha frente, assim poderia segurá-la melhor.
Depois desse dia pensei em programar melhor minhas saídas. Quando observava com a luneta do alto da fortaleza, percebia, às vezes, várias onças vermelhas ou pintadas perseguindo bandos de animais. Vi algumas vezes pequenos mamíferos sendo alcançados por elas e feitos de banquetes no local do abate. Encontrava quando andava pelo meio da mata, carcaças de animais grandes como vacas e cavalos ainda com mau cheiro, com sinais de terem sido abatidos e devorados por esses felinos. Cachorros selvagens sempre aproveitavam parte desses banquetes depois de abandonados, quando eles mesmos não faziam suas próprias vítimas. As menores que eles. Urubus sempre limpavam o que sobrava desses felinos. Bandos voavam esperando a oportunidade de pousar para se alimentar.
Pensava comigo. A natureza é perfeita. Deus é perfeito. Por que será que o homem é tão mesquinho e estúpido, cruel, egoísta e orgulhoso. Nunca se conforma com o suficiente. Sempre quis acumular mais e mais para mostrar poder. A onça rosna e espanta os animais menores para não repartir a presa, porém quando se satisfaz sai do lugar e deixa o restante para os outros. O homem come até sentir indigestão e inventa a geladeira para guardar o resto para que seu semelhante não se alimente também. Mesmo que tenha que jogar fora depois de estragado. Achando isso pouco, transforma o grande excesso em dinheiro e guarda tudo num lugar que supõe ser seguro. Compra bens duráveis para garantir sua posição de abastado.
_ Só mesmo o homem para agir dessa maneira. _ Talvez seja por isso que ele se exterminou. Preferiu se exterminar para não repartir.
_ Será mesmo que ele se exterminou, ou está escondido com sua fortuna e suas ideias num lugar seguro?
Essas ideias e tantas outras passavam pela minha cabeça a todo instante. Sempre que não estava ocupado com alguma tarefa, as ideias e as perguntas sempre apareciam. Mas as respostas sumiam com a mesma frequência. Eram como relâmpagos. Chegavam sem avisar.
_ Creio que se algum homem remanescente soubesse da minha existência eu também não existiria mais. Da mesma forma que os demais foram exterminados eu também o seria.
Quando alguma resposta surgia, na maioria das vezes ela era incerta, louca ou apenas conjectura. Nada mais do que isso.
_ De que me adiantou ser esquecido?
_ Ou deixado com algum propósito!
_ Melhor mesmo se eu também tivesse morrido.
Será que eu mesmo tenho alguma coisa a ver com tudo isso? Creio que não. Sou de uma linhagem humilde e nunca assumi posição de liderança a não ser nesse projeto idiota.
Havia lido certa vez um romance que narrava a história de um magnata que gastou quase toda sua fortuna para criar um ambiente e uma máquina para exterminar a maioria das pessoas, depois dominar as mentes das demais, somente para se sentir poderoso e reinar absoluto sobre eles.
_ Que idiota que você é. Pare de pensar nisso cara. Essas ideias ainda vão te levar à loucura.
_ Como deixar de pensar no que me cerca por todos os lados em todos os instantes?
_ Não sei como, mas sei que é preciso esquecer.
_ Droga! Merda! Por que logo eu?
_ Cale essa boca de uma vez, cara! Não aguento mais suas lamurias sem fim.
Meu diálogo era sempre comigo mesmo. Palavrões que eu odiava, estavam sempre na minha boca.
De tanto pensar e repensar o que havia pensado, talvez no ritmo do cavalo, fiquei deprimido e não percebi quando meu cavalo parou em frente à porta da garagem. Travei os calcanhares nas suas virilhas para que ele andasse mas não obedeceu. Só então levantei a cabeça e percebi que estava na porta de casa.
_ Essa é boa. Chegamos em casa.
Capítulo 12
Eu estava muito feliz com minha nova companheira. Afinal ela se parecia um pouco comigo. Muito embora uma manequim construída de silicone, era o que mais lembrava um ser humano além de mim mesmo. Neste mundo de uma só pessoa, qualquer coisa que lembre um ser humano se torna como um deles. Ela era muito bem vinda ao meu mundo. Por isso agarrei a essa imagem com todas as minhas forças.
Ao chegar, a coloquei sentada em um sofá no meu ambiente de estar, e procurei fazer coisas que julgava importantes para o momento.
_ Vou chamar você de Rita. É isso aí. Rita. É, gostei desse nome.
_ O que? Você não gosta?
_ Tá bem, então escolha outro nome. Ela respondeu com o silêncio.
Quando coloquei a boneca Rita de pé, percebi que ela estava um pouco torta, talvez de tanto cavalgar em má posição.
_ O que é isso, não consegue se endireitar?
_ Coitadinha da minha companheira. Devo tê-la machucado no momento em que a onça apareceu. Vou ver o que posso fazer.
_ Não posso acreditar, logo agora que consegui uma companheira para conversar!
Ela não parava de pé, por mais que eu tentasse. Ela sempre se dobrava ao meio e perdia o equilíbrio apesar de seu semblante sempre alegre.
_ Se ao menos tivesse uma clínica onde eu pudesse te levar. Disse para ela tentando ser gentil.
Eu mesmo, com todo cuidado a tomei nos braços e a deitei no sofá da sala. Apliquei algumas massagens na tentativa de ver se ela se endireitava. Torci levemente seu corpo para um lado, depois para o outro. Apertei na região da coluna para ver se localizava alguma anormalidade.
_ Será que ela tem um esqueleto?
Voltei a colocá-la de pé mas o resultado foi o mesmo. Peguei um pedaço de tecido limpo, umedecido com água, limpei-a bem com todo cuidado, procurando ao mesmo tempo sinais de rompimentos nos seus membros. Sentia um certo carinho por ela, por isso fiquei muito preocupado com o seu estado. Ela estava aparentemente bem, mas não conseguia ficar de pé como antes. Depois de um banho, procurei um belo conjunto com short de tecido fino e blusa de malha e vesti-a com simplicidade para o repouso. Deitei-a com cuidado na minha própria cama. Coloquei perto da cama, os belos sapatos encontrados na loja, na certeza de que ela o usaria em momentos especiais. Coloquei também um par de chinelos bem confortáveis. Tinha esperança de que no dia seguinte ela estaria recuperada e os calçaria ao se levantar. Assim, deitada, calcei os seus lados com travesseiros e cobertores dobrados para que ela assumisse uma posição ereta. Passei carinhosamente a mão pela sua barriga, seu braço e pelo seu rosto e a deixei descansar.
_ Espero que amanhã você esteja bem. Disse bem baixinho para ela. Por isso é importante que fique repousando a noite toda nessa cama. Se precisar, qualquer coisa é só me chamar. Tenho o sono leve e desperto com facilidade. Estarei no sofá ao lado. Amanhã será um novo dia e você certamente estará novinha em folha.
Fui preparar e comer alguma coisa e tomar um banho antes de dormir. Também estava cansado da viagem e do susto que levei na volta para casa. Uma descarga de adrenalina sempre me deixava exausto horas depois.
Logo depois estava de volta. Coloquei uma cadeira perto da cama onde Rita estava e sentei nela para um bate papo. Talvez. Toquei com cuidado sua testa, depois o braço para ver se sentia qualquer alteração na temperatura.
_ Você está bem? Perguntei baixinho, como que, para não assustá-la. Se estivesse acordada me responderia. Se estivesse dormindo não despertaria.
Mesmo assim sentei-me ao seu lado e falei baixinho.
_ Que susto nós levamos naquela hora não foi menina?
_ Que hora rapaz? Eu mesmo respondi.
_ Quando aquela onça apareceu.
_ Eu quase me esqueci de você; Pensei que iria deixá-la cair, pois não sabia se segurava as rédeas do cavalo, você, ou se sacava minha pistola. As três coisas eram muito para mim. Em dado momento cheguei a me esquecer de você. Somente depois de passado o susto percebi que você estava ali também. Me perdoe se você se feriu. Prometo que dou um jeito. Se até amanhã você não melhorar vou procurar recursos. Sei que vai dar tudo certo. Procure descansar esta noite.
Não obtive resposta, mas não me importei com isso.
Fui despertado não sei a que horas da noite, com um forte estrondo. Senti que as janelas vibraram ligeiramente com o passar das ondas de choque. Corri para a janela e como nada vi, peguei uma lanterna pensando em subir ao topo do prédio para tentar ver alguma coisa. Não perdi tempo. Subi correndo as dezenas de degraus da escada que a essa altura era fácil para mim. De tanto subir e descer sem usar o elevador não por medida de economia mas por falta de energia elétrica ou pane no sistema. Meus músculos já estavam preparados para essas emergências.
Do alto da torre pude ver por cima das árvores e dos remanescentes dos arranha-céus, uma nuvem de poeira se levantando, ao que parece, juntamente com fumaça. O luar estava tão esplêndido que eu podia perceber com boa clareza o que estava acontecendo. Um pequeno clarão amarelado se formou na base da coluna de poeira.
_ É um princípio de incêndio!
O incêndio provocou a queda de mais um edifício agonizante, ou a sua queda provocou o incêndio. Alguém deve ter essa resposta.
_ A perícia vai investigar e esclarecer a causa desse evento. As ciências forenses tem respostas para tudo. É só investigar de acordo com a metodologia científica em perícia criminal. Ela encontra a causa para todos os fenômenos.
_ Ou quase todos. Reconfigurei depressa pois para a minha situação não tinha resposta satisfatória.
No dia seguinte voltei ao terraço após tomar meu café da manhã e senti falta de mais um dos prédios, o mais altos do lado leste. Os primeiros raios do sol cortavam o horizonte em minha direção passando direto pelo local onde ele estava no dia anterior. Senti mais um vazio, pois este edifício era um dos mais altos desse lado da cidade e eu gostava de admirá-lo, pois se destacava acima dos outros e da vegetação. Apesar de estar ligeiramente pendido, de apresentar as vidraças parcialmente quebradas e com vegetação aparecendo por todos os lados, ele era imponente. Ele me fazia companhia todas as vezes que me compenetrava na presença da paisagem devastada, ou vitoriosa diante da ignorância do homem. Além do mais, ele poderia se tornar um referencial quando saísse para explorações mais distantes.
O sol já se destacava quando me lembrei de que Rita poderia ter acordado e precisava de mim. Desci correndo e entrei no quarto meio cansado e ofegante. Esperei alguns minutos para me recompor. Rita estava na mesma posição que deixara na noite anterior. Seu semblante era pálido e estava tão imóvel que me assustei com o seu estado. Toquei novamente sua testa e seus braços, depois coloquei a mão cuidadosamente por baixo de sua blusa para sentir sua temperatura no abdome. Também se estava respirando. Ela estava gelada. Só fui confirmando à medida que mudava a mão de lugar. Verifiquei seu pulso e não o encontrei. Quando soltei seu braço a mão desceu flácida na beira da cama.
_ Rita, Rita, acorde! Por favor! Toquei forte no seu rosto que virou para o lado com os olhos fechados.
_ Rita, Rita, Rita, acorda, por favor! Acorda! Não me deixe sozinho. Não faça isso comigo, por favor!
Nada adiantava. Por mais que eu me esforçasse ela não reagia. Peguei-a pelos braços e tentei colocá-la sentada, mas não ficou. Caiu para o lado oposto e só não foi ao chão porque eu estava atento e a segurei com firmeza. Deitei-a novamente. Senti que estava mole e não reagia. Senti um desespero enorme e comecei chorar e andar de um lado para o outro no quarto.
_ O que eu faço agora? O que eu faço? Voltei para a cama e a abracei forte. Talvez se a aquecer ela reage. Recostei meu ouvido no seu peito e não ouvi o som do coração. Procurei novamente por seu pulso e nada senti. Abri suas pálpebras e suas pupilas estavam estáticas. Como sempre. Para mim estavam sem brilho e muito dilatadas. Se ao menos eu tivesse um aparelho de choque para a reanimar....
Depois de alguns minutos, às vezes sentado, às vezes andando no quarto, eu tomei uma decisão. Aqueci um cobertor numa panela ao fogo e o envolvi em seu corpo na esperança de aquecê-la. Aguardei alguns minutos até que o cobertor esfriou novamente e Rita continuava do mesmo jeito. Talvez movimentando-a. Peguei-a pela cintura e tentei colocá-la de pé, mas não funcionou. Seu corpo estranhamente estava muito flácido. A elasticidade do dia anterior se foi, não sei como e nem por que.
Algumas horas depois cheguei à conclusão de que Rita havia morrido. A companheira que encontrara no dia anterior me fez companhia por apenas uma parte do dia. Mas valeu a pena, pois ela era linda e perfeita. Fiz seu funeral chorando e lamentando pelo sua morte tão precoce. Não havia mais ninguém para me acompanhar no funeral. Nem mesmo minha pata se importou com o ocorrido.
_ Também pudera, a culpa foi toda minha. Eu deveria ter dormido abraçado com ela, para que ficasse bem aquecida a noite toda. Assim ela ficaria bem.
_ Aquela onça não deveria ter aparecido naquela hora. Foi isso que me obrigou a deixá-la sobre o animal em posição imprópria. Deve ter fraturado a coluna. Será que enquanto o cavalo rodopiava ela bateu com a cabeça em alguma coisa e fraturou o crânio? Pode ser.
_ Mas como fui descuidado. Como fui imbecil. Minha primeira preocupação deveria ter sido ela.
_ Nunca vou me perdoar por isso.
_ Nunca vou esquecê-la. Por essas poucas horas em sua companhia aprendi a amá-la.
_ Calma rapaz, ela era apenas uma manequim.
_ Não me diga para me acalmar. Você sabe o que estou sentido? Não, não sabe. Seu idiota.
_ ?
O dia todo, procurei me distrair com afazeres diversos, concentrando em resolver o problema dos pneumáticos do veículo. Assim, poderia esquecer o episódio Rita. Depois que um deles estragou na primeira vez que foi usado, e outros nas seguintes, tive que voltar ao ponto inicial em relação aos veículos. Estive pensando em uma maneira de resolver esse problema. Procurar por pneus novos talvez não iria resolver, pois todos que encontrasse tinham a mesma idade, portanto, sujeitos aos mesmos problemas.
Mesmo com as dificuldades impostas pelas constantes chuvas construí um pequeno cercado com madeira cortada nas imediações. Ali eu prendia os animais para domá-los e para ordenhar uma das vacas que já havia sido domesticada. A proteína do leite me foi muito útil na sobrevivência, bem como para ajudar a alimentar patos que por sua vez serviam para meu alimento.
Cheguei a produzir queijo, muito embora não tão saboroso quanto os queijos de minas, mas eram melhores do que a saudade deles. Para a minha tão sonhada horta era preciso que eu encontrasse os cabos para fazer uma boa cerca ou ficaria sem os grãos antes mesmo de estarem maduros.
A experiência com os pneus do veículo nas tentativas anteriores me desafiava. Depois de vários dias pensando desmontei um deles e recortei tiras de borracha de outros e fui colocando por dentro, completando os espaços vazios com silicone. Desde que encontrei um tambor cheio desse produto vinha fazendo uso em diversas atividades. Agora estava tentando resolver um problema.
Nesse trabalho as ferramentas improvisadas acabaram por produzir bolhas nas minhas mãos, já em parte cauterizadas.
Dessa forma consegui remanufaturar um pneumático que ficou compacto e apto a rodar com certa confiabilidade. Não podiam ser submetidos a velocidades altas, pois com certeza aqueceriam. Mas isso não era mesmo possível. Não tinha estradas que permitisse tal façanha. Esperei que o silicone endurecesse o suficiente e testei o pneu em um dos lados na frente do veículo.
_ Esse é o teste de resistência para ver se ele suporta o peso do carro.
_ Espero que funcione. Assim farei com outros.
Liberei os parafusos da roda, levantei o carro com um macaco hidráulico e fiz a troca de um dos pneumáticos rasgados pelo remanufaturado. A borracha foi toda trabalhada no encaixe da rodagem para evitar transtornos na hora da montagem. Quando fui liberando a energia do macaco a frente do carro desceu devagar e se apoiou totalmente sobre o novo pneumático.
_ Ele suportou bem o peso do veículo. Ficou perfeito.
_ É. Parece ter ficado bom.
Entrei na cabine, balancei o corpo e desci para ver o resultado. Normal. Bati com um martelo de madeira e este recuou com a energia elástica. Bati novamente com mais força e o resultado foi o mesmo. Subi na parte superior do mesmo, segurando com as mãos na lateral do veículo e balancei bastante o corpo. Desci para ver se o resultado era o mesmo. A deformação produzida foi compatível com o a elasticidade do pneu. _Ficou ótimo!
_ Muito bem, posso fazer o mesmo com outros para retornar à minha exploração. Dessa forma com mais segurança.
Era um veículo bom para esse tipo de exploração. Não era o melhor, mas para locais onde as estradas estavam acabadas era ideal. Seria o suficiente para distâncias não muito longas, porém mais seguro do que montado em um cavalo sem os acessórios adequados.
Enfiei a cara no trabalho e consegui refazer mais quatro pneus indicados para a pick-up. Observando as dificuldades que tive com o primeiro, melhorei o sistema, de maneira que no último montado gastei menos da metade do tempo que gastei com o primeiro. Em vinte dias de trabalho e de espera para a secagem, estavam prontos para rodar. Fiquei deveras satisfeito com o resultado, pois até então meu trabalho se resumia aos projetos e não às execuções.
_ As próteses de silicone que implantei nesses pneus parecem ótimas.
_ Posso até montar uma fábrica de pneumáticos e revolucionar o mercado do ramo. Pelo menos nessa cidade. Com alguns estudos e montagem de projetos posso produzir pneumáticos para veículos fora de estrada.
Caí na risada a ponto de os animais que estavam no pequeno curral levantarem as cabeças assustados. Creio que eles ainda não sabiam o que era um sorriso humano. Até aquele momento, não me lembro de haver sorrido tanto e com tanto prazer. É realmente gratificante produzir algo com as próprias mãos. Principalmente se o resultado é satisfatório.
_ Produzir qualquer coisa e ver um resultado positivo é muito bom. Resultado positivo. Pensei. Caí nessa situação por causa de um sonho de produzir alguma coisa. Ao que parece o resultado não foi bom. Resultou em uma catástrofe. _Será? Mas pelo menos houve um resultado. Espero que uma coisa não tenha a ver com a outra.
_ Bem. Pelo que sei que a proposta do nosso projeto não apontava na direção de nenhuma possibilidade de catástrofe. A não ser que depois que dormi, outras propostas tenham sido incorporadas a ele. Mas como? Não lidávamos com produtos radioativos, nem com algum tipo de explosivo, armas químicas, a não ser...
_ A não ser o quê?
_ Nada, nada, deixa pra lá. Coisas de minha imaginação stressada.
_ Então porque a raça humana foi exterminada? Pelo menos, até o momento tudo indicava que foi. Saber o que houve era no momento o que eu mais preocupava. Tinha certeza de que se houvesse alguém mais na face da Terra já teria feito contacto. A não ser alguma tribo indígena sem nenhum conhecimento tecnológico. Mesmo assim, teria que estar muito distante.
_ Chega de conversa, vou colocar os novos pneumáticos para rodar e vou experimentá-los ainda hoje.
_ Bem, o primeiro pneu que fiz, ainda se encontra apoiando todo o peso do veículo há uns trinta dias. Se nesse tempo, ele ainda apresenta eficiência, é porque ficou bom.
Levantei o veículo com o macaco no lado da frente e fiz substituição do pneu velho por outro pneu novo. Fiz o mesmo com as duas rodagens posteriores e retirei a carga de sobre o macaco. O veículo se apoiou totalmente sobre os quatro pneus remanufaturados. Passaram-se alguns minutos e tudo continuava normal. O veículo continuava apoiado sobre eles e não cederam ao seu peso.
_ Perfeito. Perfeito. Fiz um bom trabalho.
_ Meus parabéns!
O sol declinava rapidamente e prometia uma noite sem luar. Como estava trabalhando dentro da garagem bem próximo à porta, ainda tinha iluminação natural suficiente. Liguei o motor, testei os faróis, acelerei aos poucos e desliguei os faróis, depois a partida. O motor silenciou. Trinta segundos depois liguei novamente a chave, os faróis e soltei o freio de mão. Como o desnível no sentido da porta era muito suave e os pneus apresentavam um pequeno índice de deformação, o que era normal, o veículo não saiu do lugar. Pisei na embreagem, engatei a primeira marcha e saí lentamente da garagem. Não queria nenhuma surpresa, por isso não arrisquei ir longe demais. Rodei por um caminho que havia se formado com a presença e andança dos animais. Percorri um perímetro de quase mil metros em um caminho quadrangular já bastante conhecido. Parei na porta da garagem e desci para averiguar.
_ Até agora tudo em ordem.
Uma volta, e tudo funcionou normalmente. Fiz curvas galguei pedras e pequenos pedaços de madeira, arbustos e gramíneas, todas as deformidades do local. Outra volta e tudo normal. Uma terceira volta com maior velocidade, já necessitando dos faróis. O céu já estava parcialmente cheio de estrelas, e senti que elas piscavam para mim, saudando-me pelo sucesso. Desci novamente, e mesmo na penumbra do anoitecer, averiguei novamente os pneus e eles estavam da mesma forma. Chutei cada um deles para sentir a pressão. Bati com o martelo de madeira e o resultado foi o mesmo.
_ Tudo em ordem. Tudo em ordem.
_ Estou orgulhoso de mim mesmo. Não tenho com quem compartilhar esse momento a não ser comigo mesmo. E com as estrelas, mesmo distantes.
Adentrei com ele na garagem, manobrei e estacionei com a frente voltada para a saída. Puxei o freio de mão e desliguei o motor. Tudo desligado, abri a porta e desci do veículo para conferir novamente os pneus com o martelo de madeira. Bati em cada um e eles apresentaram a mesma consistência. Me senti orgulhoso do meu feito, e sorri, não sei pra quem. Estava pronto para iniciar minha aventura pelas ruas da cidade e procurar o que tanto me impacientava.
_ Maravilha cara! Você é demais! Tudo em ordem. Até agora tudo perfeito. Veremos amanhã pela manhã como estarão.
_ Com certeza estarão em perfeita ordem e poderei arriscar com uma volta maior ainda. Quem sabe sair das proximidades do prédio e até explorar outras cidades.
Capítulo 13
Minha experiência com plantações era muito pobre. Não sabia qual a estação própria para o plantio de cada espécie, não sabia como preparar a terra, enfim, sabia nada de nada sobre o assunto.
_ Que adubo devo usar? Qual a quantidade para cada tipo de solo?
_ Como saber de algo sobre o qual nunca me interessei antes?
_ Agora que tenho necessidade...
Desde que encontrei algumas sementes, vinha procurando meios de saber sobre elas. Não eram muitas por isso não poderia de maneira alguma perdê-las plantando da forma errada.
Os arquivos do computador bem que poderiam me ajudar. A questão era que os melhores arquivos estavam nas bibliotecas da base de dados, e esta eu não conseguia acessar por falta de energia elétrica. Teria que encontrar um meio de gerar ou de armazenar energia suficiente para alguns acessos. Assim localizaria e salvaria os arquivos no laptop ou em um tipo de mídia de baixo consumo de energia. Até mesmo para localizar os arquivos iria precisar de tempo. Eram vários assuntos importantes no momento. Como a biblioteca era muito grande teria que fazer uma verdadeira pesquisa.
_ Se pelo menos eu tivesse livros sobre o assunto que ajudassem nessas informações.
Pelas características de entrada da fonte de alimentação dessa estação, precisaria reunir mais alguns painéis solares e procurar um meio de instalá-los no teto do edifício juntamente com os demais. O conjunto que se encontravam instalados não atingiam mais o seu potencial máximo, pois estavam muito parcialmente cobertos por detritos, impedindo que os raízes solares incidissem diretamente nas células fotovoltaicas.
_ Tenho que conseguir cabos em boas condições para fazer uma rede independente, direto das placas ao terminal. Não consigo usar os quadros de distribuição de energia existentes. São muito complicados e com certeza provocam ou permitem demandas desnecessárias.
_ Vou fazer uma lista do que preciso e sair para procurar pela cidade. Até agora tenho encontrado muita coisa útil e em boas condições. Creio que para esses itens não terei muito trabalho.
_ É verdade. Há itens que não deterioram facilmente com o tempo.
_ Vou à cavalo, ou de carro? Perguntei para mim mesmo, como sempre fazia. Eu mesmo respondia. Mas dessa vez, não ousei responder. Pelo menos ainda.
No dia seguinte abasteci a pick-up, coloquei em sua carroceria, água fria em uma vasilha de alumínio com tampa, ferramentas diversas e armas de fogo. As armas, é claro, levei na cabine. Desde que descobri as utilidades de um facão e um canivete, nunca mais me separei deles.
_ Esse facão tem sido uma ferramenta e tanto.
_ Muito útil mesmo. Fácil de carregar e de manejar. Pode ser usado como instrumento de corte para vários objetos, além de arma de defesa.
_ Desde que bem amolado.
Não sei como consegui sobreviver sem ele. Gostava muito de um, que media cerca de sessenta centímetros de lâmina, com cabo de material sintético mas muito anatômico. Era leve e resistente, além de aceitar um corte durável. Ele tinha uma bainha de couro marrom e uma alça que permitia pendurá-lo no cinto. Tinha na lateral da lâmina, uma marca conhecida e com fama de produzir boas ferramentas. Dessa vez não esqueci o sensor de movimento. GPS? Pensei nele, mas sabia que não funcionaria, pois já o havia testado antes. Pelo pouco que sabia a respeito, deduzi que a maioria dos satélites em órbita estava desativada, se espatifado no solo da Terra ou se perdido no espaço celeste. Talvez apresentado qualquer defeito pelo prolongado tempo sem correção de suas órbitas, e outras formas de manutenções. Era um sinal de que os centros de controle desses satélites não mais existiam. Ou pelo menos os técnicos que os operavam.
_ Dedução lógica essa.
_ Claro. Eu mesmo respondi.
_ Tenho que procurar andar pelas rotas já traçadas e voltar sempre pelas que já foram usadas.
_ Claro. Já conheço vários caminhos para ir e voltar a vários lugares. Descobrirei outros.
Na paisagem atual, andar pelas sombras das árvores e prédios coberto pela vegetação, sem uma orientação, o risco de se perder era enorme.
Tinha uma serra elétrica movida à bateria que já havia mostrado sinais de grande utilidade. Apesar de ser alimentada por uma bateria já havia cortado vários troncos de árvores sem precisar fazer recarga intermediária. De qualquer forma tinha um bom estoque de baterias carregadas que serviam a essa e outras ferramentas. Levei algumas sobressalentes.
Saí pela manhã dirigindo a pick-up com pneus recheados de silicone e fatias de borracha. Levava mais um de reserva na carroceria, além de ferramentas para fazer uma troca caso precisasse. Como não tinha a intenção de ir muito longe não levei tanta coisa, somente o que seria necessário para uma pequena viagem exploratória. Não arriscaria grandes distâncias, pois não conhecia ainda o comportamento dos pneus em longas horas rodando sem parar. Se aqueceriam, se aguentariam as vibrações e os trancos de um veículo em movimento em local sem ruas conservadas devidamente.
Procurei percorrer pelo que pareciam ser leitos de ruas, entre colunas de prédios e amontoados de casas em ruínas. Algumas placas mais persistentes, embora faltando partes de textos e de literais, indicavam o nome da via, outras nas faixadas de algumas lojas ainda convidavam os clientes para comprarem. Muitas promoções. Muitas novidades. Muita falta de cores.
_ Novidades?
_ Brindes?
Uma placa, a certa altura, me chamou a atenção, pois dizia: “Sua chance de viver por muitos e muitos anos com saúde e felicidade. Use produtos naturais.” Lembrei-me de que alimentar-se com produtos naturais balanceados estava em alta moda quando me preparava para entrar na cápsula. Durante o tempo em que trabalhei nesse projeto, me dediquei tanto que perdi o contacto com o mundo, de sorte que sabia pouco do que estava acontecendo fora do projeto. Minha dedicada esposa era quem cuidava da organização e das finanças e da casa. Ela tinha tudo sobre controle.
Realmente ela era muito eficiente na organização e controle das finanças.
_ Ela era a melhor. Disse orgulhoso.
Outra placa dizia: “...o Senhor... pode achar, ...enquanto está perto...” _ Não consegui ler a parte anterior do texto e nem o restante. Deduzi que se tratava de um templo Cristão.
_ Cristãos...pensei, terá de fato Cristo a ver com o que aconteceu? Terão os muçulmanos ou os comunistas a ver com tudo isso?
_ Que nada, concluí, o homem nunca precisou de ideologia ou crença para se exterminar. Ele precisou apenas de tecnologia para produzir armas, bombas e sistemas de precisão para colocá-las onde desejavam. Aliás, que ele mesmo idealizava, projetava e construía. Dessa forma acabava com nações inteiras.
_ Talvez até forjasse a guerra para vender seus produtos de extermínio.
O que era pior, sempre encontrava um bode expiatório e uma boa explicação para suas negociatas e suas batalhas.
_ Esses políticos...
_ Esses empresários milionários, ambiciosos e inescrupulosos...
Estava passando em frente a uma loja que não conseguia ler direito seu nome de fachada, mas tinha alguma coisa que lembrava temas rurais, como animais, lavoura e outras coisas. Serviu para desviar meus pensamentos de assuntos menos traumatizantes. Resolvi aproximar, mas a vegetação estava tão espessa que tive de usar minhas ferramentas para abrir caminho. Por sorte não precisei usar máquinas pesadas.
Passei por um belo susto quando um víbora peçonhenta saltou na minha direção com sua língua bifurcada saltitando para fora da boca. Ouvi um guizo sibilar e o temor aumentou, pois sabia que se tratava realmente de um cobra muito perigosa. A cascavel. Recuei rapidamente e ela seguiu seu caminho. Arrastava-se devagar e sempre olhando para trás com sua língua sempre saltitando. Demorou alguns minutos até que ela desaparecesse no meio da vegetação. Por mais que eu temesse nunca matava, a não ser para o meu sustento ou defesa. Meus cuidados redobraram com esse encontro indesejado mas não podia recuar. Fui em frente com muita dificuldade e cheguei à porta da loja.
No seu interior encontrei além de rolos e mais rolos de cabos de aço de várias espessuras, arame galvanizado e outros objetos úteis para cercar e trabalhar a minha horta. Martelos, pregos, enxadas, cavadeiras, tesouras para poda. Facões? Fiquei maravilhado com tantas ferramentas úteis. A maioria delas eu não conhecia. Procurei as que se encontravam em melhores condições, limpei parcialmente a sujeira e coloquei tudo na caçamba da pick-up. Deixei a porta fechada como encontrei para que animais não entrassem e acelerassem a decomposição dos materiais. Precisaria de outras coisas mais, e certamente voltaria para buscar.
_ Passar no caixa? Certamente que não. Estava aprendendo a fazer piada com o que acontecia.
Certamente que minha vontade e minha formação me diziam para pagar pelo que estava levando, mas sabia que ninguém reclamaria por isso.
_ Sementes? Ah, sim. Essas sementes são ótimas para minha horta! Exclamei quando vi embalagens de sementes de várias espécies.
Peguei algumas embalagens e balancei perto do ouvido para perceber se estavam cheias. Apalpei, rasguei e percebi que algumas estava furadas por insetos e vazias. Outras porém estavam cheias.
_ Tenho minhas dúvidas se elas germinam. Afinal, fazem tantos anos que estão armazenadas... pode ser que tenham se deteriorado.
_ Mas vale a pena tentar. Vou fazer o seguinte: planto algumas de cada espécie em pequenos vasos, se germinar será bom. Se não germinar...pelo menos tentei.
Passei por um pátio enorme em uma rua aparentemente deserta e alguma coisa me chamou a atenção no meio da vegetação rasteira. Eram longas estacas de concreto, ideais para cercas de arame, e telas para alambrados. Investiguei bem tomando cuidado para não ser surpreendido por cobras, escorpiões ou aranhas caranguejeiras. Tinha verdadeiro pavor de aranhas. Com uma alavanca que trouxe da outra loja, removi algumas delas, e notei que estavam em excelentes condições apesar de se encontrarem ao relento por tanto tempo. Encontravam-se amontoadas ao redor de um robusto pequizeiro. Deduzi que uma semente conseguiu germinar entre duas delas e o seu crescimento separou e forçou as que estavam mais próximas a se afastarem amontoando-se de qualquer maneira.
_ Pode ser que parte dessas estacas não estejam em condições de uso mas algumas delas estão ótimas.
_ Melhor do que madeira, pois não apodrecem. _ Com certeza, como duraram até agora ainda durarão muitos anos. As que estão na parte superior tem menos umidade, portanto estão mais leves. Com um pouco de trabalho consigo colocar algumas na camionete.
Precisei voltar a esse local para buscar mais algumas daquelas peças. Naquele dia não seria possível, pois ele já caminhava para o final e não queria estar fora do abrigo depois do anoitecer. Não sabia o que iria encontrar na escuridão. Tinha medo do escuro, ainda mais em terreno desconhecido. Via de regra, à noite, me trancava no interior de minha fortaleza, mais precisamente nos compartimentos mais íntimos. Dificilmente saía para averiguar alguma emergência. Quando o fazia era no primeiro impulso, pois se parasse para pensar eu desistia. Procurei isolar alguns compartimentos onde me sentia mais seguro em momentos de maior temor em especial nas noites sem luar. As poucas vezes que fui apanhado à noite fora de casa me trouxeram verdadeiros momentos de agonia e medo.
_ Creio que esse medo tem origem em algum trauma de infância. Só pode ser. Coisas que não consegui dominar até o momento.
_ Teria alguém inadvertidamente provocado em mim algum trauma durante alguma noite na minha infância?
_ O subconsciente é uma área do cérebro pouco conhecida, ou pouco comentada pela ciência. Lá deve estar a resposta, mas quem irá tirá-la?
_ De qualquer forma, acho melhor não me aventurar na escuridão fora de minha fortaleza. Lembrei-me de haver lido, “O Senhor é o meu pastor...”mas, sei lá se esse pastor está ligando para mim. Seja como for não vou me arriscar.
Sempre acreditei que a fé e o medo são elementos de sobrevivência. Minha carreira de pesquisador me distanciou da primeira atitude desde que eu ingressara na vida acadêmica. Depois com o sucesso da pesquisa me distanciei mais ainda. Agora que não havia outra saída, parece que a fé estava me retornando ao caminho anterior. Já sabia pelo menos por alto, onde a ciência pela ciência poderia levar o homem. Ou, ao que parece, já o teria levado. A situação em que me encontrava parecia mais uma resposta às atividades humanas do que providência de Deus.
_ Epa! Mas aquela árvore não se encontrava no caminho quando passei por aqui pela manhã.
Parei o carro ao avistar um tronco no meio do caminho.
_O que terá acontecido? Fiquei deveras temeroso e não desliguei o motor, não abri a porta por alguns minutos e permaneci em silêncio.
Peguei a pistola e a deixei bem próximo de minha perna direita. Se surgir uma emergência estarei pronto. Meu coração acelerou e tive que engolir a seco o nó da garganta. Depois que acordei do coma, volta e meia meu coração disparava. Depois de alguns minutos em que ouvia apenas o ronco do motor da pick-up, resolvi agir. Buzinei, buzinei, acelerei o motor e novamente aguardei.
_ Droga o que terá acontecido?
Não obtive resposta alguma. Meu coração se acalmou depois de alguns minutos e então, racionalmente, procurei uma alternativa. Sem sair da cabine procurei um outro caminho após dar marcha-a-ré por alguns metros. Por sorte uma outra trilha permitiu que eu avançasse de volta para casa sem grandes dificuldades.
_ Ainda bem que meus pneus não murcharam.
Tive que passar por cima de algumas pedras maiores, escombros, e não poucos pedaços de madeira. Nada que não fosse possível. Também acabei por traçar uma nova rota alternativa.
Trabalhei por vários dias furando buracos no solo e fazendo minha cerca de arame. Em várias viagens consegui buscar uma quantidade suficiente de postes de concreto, cabos e outros materiais que necessitava para a construção. Arame liso e telas grossas o suficiente para fazer uma boa cerca. Dentro do galpão dessa fábrica, encontrei postes de metal galvanizado em ótimo estado. Usei muitos deles, pois eram mais leves e práticos para manusear.
Muitas ações tiveram que ser improvisadas pois não tinha ferramentas para processar todas elas e também não tinha uma pessoa para me orientar e ajudar. Reforcei o curral para os cavalos, as vacas e suas crias. Uma área bem ampla e bem cercada, para servir de pasto para as vacas e os cavalos, e outra área menor para os bezerros passarem a noite sem sugar o leite das suas mães. Consegui construir até mesmo uma cobertura com palhas de palmeiras sobre parte do curral, como vira em uma ilustração dias antes.
Delimitei outra área, e iniciei a limpeza cortando e arrancado a vegetação com foice, facão e enxada. Teria que preparar o terreno para o plantio. Após limpo, procurei afofar a terra o quanto as minhas forças permitiam. Adubei-a com esterco retirado do curral das vacas e cavalos. O esterco de animais após curtido é um excelente adubo orgânico para qualquer espécie vegetal. Já sabia disso antes. Também a vegetação que arrancava, procurava cobrir com terra para apodrecer e também virar adubo orgânico.
_ Só me resta saber a época certa do plantio e o que plantar. É uma questão de tempo e terei mais algumas variedades de alimento.
As sementes que havia conseguido precisavam ser testadas para saber se ainda eram eficientes. Assim, plantei várias sementes em pequenos vasos que retirei de uma loja na área comercial da cidade. O resultado não foi dos melhores, mas muitas sementes germinaram e mostraram um bom desenvolvimento.
Todo esse trabalho gastou muito mais tempo do que a estação seca me proporcionou, e logo veio o mês de outubro sem que o terreno estivesse totalmente pronto para o plantio em maior escala. Afinal, tinha que delimitar o espaço para minha plantação, pois tanto minhas vacas e o cavalo já estavam bem à vontade perto da fortaleza, bem como os outros frequentadores do pátio, e certamente iriam devorar tudo assim que germinasse. Dessa forma, o ano se passou, enquanto eu estava envolvido com essas tarefas. Mas valeu a pena esperar para o ano seguinte, pois o plantio das mudas em vasos me ensinou muitas coisas a respeito do assunto. Fiz tudo como a metodologia científica recomenda. Fui plantando e anotando os nomes das espécies, o tipo de adubo e quantidade que usava, as datas de plantio, regas e o desenvolvimento de cada uma. No fim das contas foi um aprendizado importantíssimo para a continuidade de minha solitária vida.
Com a camionete minha vida mudou muito. Minhas restrições em termos de circulação diminuíram, pois podia sair e ir até onde o terreno permitia que ela trafegasse. E eu ia onde tinha vontade ou necessidade. Tracei muitas rotas alternativas, pois por onde andava ia retirando os obstáculos maiores roçando o mato que atrapalhava o movimento da camionete e com isso demarcando pontos de interesse. Muitas vezes saía mesmo sem destino, a fim de deixar a rotina e distrair um pouco.
Capítulo 14
O clima estava muito quente e seco, com céu praticamente limpo, sem formações de nuvens suficientes para chuva. O sol se escondia de vez em quando por trás de uma nuvem fina e passageira, interrompendo ou prejudicando o funcionamento dos painéis solares. Nunca fui muito atento aos fenômenos da natureza, mas sabia das quatro estações do ano e que elas poderiam notadas a partir de certos fenômenos naturais. Tinha alguma noção desses fenômenos e até certo ponto poderia identificá-los, embora sem muita precisão. Um deles definia muito bem a primavera, ou seja, a estação das flores. Na região tropical, que já é bastante quente, faz mais calor ainda. Dizem os botânicos que depois de uma estação fria os fluídos das plantas diluem por causa do calor e é por isso que as árvores renovam sua roupagem com um verde intenso e brilhante e em seguida as flores desabrocham.
_ Não saberia ao certo dizer mas creio que estou no mês de setembro, considerando que o período das flores marcam esse mês. Sendo assim é primavera ou estamos chegando nela.
_ É. As árvores estão renovando sua folhagem e já existem muitas flores nas suas copas. Até mesmo as mangueiras estão florescendo juntamente com os ipês, em especial os amarelos.
Passei a contar os anos a partir desse mês, pois era muito expressivo para mim. Marcava uma série de mudanças no clima, na vida e até nas questões fisiológicas. Ao que parece, foi nessa estação que saí da cápsula.
_ Sendo assim, creio que está fazendo um ano desde que fui despertado. O tempo parece não passar, mas um já se foi.
A esta altura consegui abrir uma porta que ficava em uma das paredes laterais da garagem. Até aquele dia vinha tentado sem sucesso. O que vi em seguida me fez crer que na verdade o local que até agora pensava ser uma garagem, na verdade não era. Era uma sala destinada a recepção e triagem de pessoas e que de alguma forma algum dia no passado, foi transformada em depósito de veículos e outros objetos grandes. Era um imenso salão com pé direito triplo, colunas molduradas e outros detalhes que faziam dela um ambiente um tanto nobre para uma garagem. O certo é que a porta que abri estava no topo de uma escada ampla de vinte e quatro degraus divididos em três etapas com pequenas plataformas para descanso. Possuíam acabamento em mármore e corre mãos de madeira, agora enegrecida, mas bem conservada. Além da escada, uma rampa e dois elevadores grandes e panorâmicos destinados a servir aos três pavimentos anexos com suas respectivas acomodações.
Nunca soube porque tudo dentro daquele prédio, inclusive a madeira, estava sempre mais conservada do que nas outras edificações da cidade.
Após a escada e a porta, o próximo ambiente era uma sala bastante espaçosa, bem ventilada e iluminada naturalmente. Possuía um balcão de recepção com vários terminais de computador, mesas, cadeiras, armários bebedouro e outros objetos e utilitários. Uma mesinha perto de um lavatório tinha ainda sobre um forro de material sintético uma garrafa térmica ao lado de algumas xícaras com pires para café e algumas colheres pequenas. Um pote com pequenos sachês que supus seres de açúcar ou adoçante. Estavam ruídos por insetos e vazios. Uma sequência de cadeiras que no passado eram bem confortáveis, agora se encontravam com as coberturas manchadas e rasgadas, além de impregnadas de poeira, assim como os demais móveis e utilitários. A sala tinha uma ampla visão da parte externa do prédio voltada para o norte e leste cardeal. Duas grandes vidraças funcionavam como paredes desses lados do prédio. Não fossem as árvores e as trepadeiras que cresceram do lado de fora, as teias de aranha e acumulo de poeira do lado de dentro, seria uma visão maravilhosa. Quando adentrei no recinto a maior distância que se podia ver eram poucos metros até as copas das primeiras árvores.
Quando vi pela primeira vez através dessas vidraças cheguei a conclusão de que teria que avançar mais ainda com a limpeza nas proximidades do prédio, até mesmo para evitar, ou pelo menos diminuir as infiltrações nas paredes. Por outro lado, a ampliação das possibilidades de visão me atraía por questões de segurança e para permitir ver a beleza do local.
_ Tenho que dar um jeito nisso. Vou cortar essas trepadeiras, limpar tudo isso aqui e lavar as janelas. Cortar algumas árvores que estão mais próximas.
_ Talvez mude meus aposentos para esta sala, que além de muito bem iluminada e ventilada, possui outras salas anexas com vários banheiros bem acessíveis.
Depois de uma boa limpeza pelo lado de dentro da sala, passei para o lado de fora onde consegui cortar muitas das árvores maiores melhorando a visão. O local ficou muito confortável oferecendo uma visão privilegiada do que antes era uma praça. Mesmo com a vegetação invasora e as árvores que cresceram muito nas proximidades, ainda permitia uma bela visão do mundo exterior. Todo o trabalho foi feito lentamente, porém com insistência. Pois depois de derrubadas, as árvores tinham que ser cortadas em toras menores para possibilitarem sua queima, em parte no local, e em parte na fornalha para preparar meus alimentos. Eu conseguia no máximo preparar uma árvore por dia. Nada mais.
Já haviam se passado dois períodos de 30 dias desde que as primeiras flores muito amarelas desabrocharam nas copas de algumas árvores. Outras espécies também ficaram enfeitadas com nova roupagem. Eram nativas e as de reflorestamento, ornamentais no passado, além de frutíferas diversas. Hoje todas misturadas formando um novo bioma. Sentado em uma poltrona puída pelas traças, a qual eu tinha colocado em frente a vidraça da sala, comecei a pensar, como fazia sempre que a solidão tomava conta de minha alma. Subia pelo meu corpo e eu começava a degustar o sofrimento como um prato muito salgado, amargo e apimentado. Tinha que comer, pois estava com muita fome. Fome de alguma companhia, fome de respostas e quem sabe, fome de Deus. Toda essa compenetração só estava servindo para aumentar o meu tédio o que estava me torturando e me matando aos poucos por dentro. O silêncio me atormentava e por mais que eu procurasse cantarolar as canções acompanhando o MP3, isso não era suficiente. Queria ouvir vozes de pessoas. Ao vivo. Contando histórias, fazendo perguntas indiscretas, respondendo de forma improvisada e subjetiva. Me xingando, afinal tudo isso faz parte da vida. Agora que estava totalmente isolado, não sabia mais o que fazer. Sempre gostei de estar sozinho, de viver tranquilo, mas agora era demais. Era algo extremoso e cruel, creio que impossível para o ser humano que sempre viveu em sociedade. Agora que não podia de forma alguma contar com a presença de uma pessoa sequer eu sofria realmente os efeitos da solidão. Uma solidão intensa e indescritível. Conversar, somente comigo, ouvir, somente a mim, brigar somente comigo mesmo. Eu mesmo respondendo sempre que possível às minhas próprias perguntas.
Eu conversava com a pata e seus patinhos, que ao crescer viravam meu alimento. Conversava com o cavalo que consegui domar, com as duas vacas e seus bezerros. Até com as onças e porcos selvagens que permaneciam sempre longe de mim. Aprendi a conversar com Deus, mesmo na dúvida de que Ele realmente se lembrasse de mim depois de ter me abandonado nessa situação. Mas não era a mesma coisa. Não era alguém igual a mim. Não tinha ninguém para tocar, abraçar, pegar na mão. Quem sabe brigar.
_ Deus deve ter se esquecido de que eu existo. _ É. Se o mundo teve um fim eu fiquei esquecido. Não posso entender essa dinâmica.
Apesar de a Bíblia afirmar que Ele conhece a todos pelo nome e se importa com todos, estava duvidando dessa expressão. Deus não sabia da minha existência.
Talvez porque no passado não me importava tanto com as questões espirituais, apesar da insistência de meus pais e alguns colegas de trabalho. Agora, como não tenho alternativa, converso com Ele assim mesmo. Tenho suplicado pelo seu perdão caso tenha cometido algum pecado. Tenho suplicado pelas suas misericórdias em face da minha solidão.
Mesmo em estado depressivo vinha trabalhando na montagem de mais placas solares e uma rede elétrica direta delas para os circuitos do estabilizador e do carregador das baterias. Isso após ordenhar a vaca e alimentar os patos com sobras de comida.
_ Ao que parece as minhas orações não tem sido ouvidas. Parece que esta situação não muda nunca.
_ Ou ainda não chegou a minha vez de ser ouvido. Falava e respondia sempre de cabeça baixa, talvez não ousando levantar os olhos para o céu.
Naquela manhã o sol brilhou insistente até por volta do meio dia. Mesmo atarefado com os trabalhos diários, além de viver sem a presença de alguém, me fechava cada vez mais no mundo das minhas angústias. Até que a fome me forçou a sair deste antro e procurar a cozinha.
Planejava sair com a pick-up para uma exploração rotineira após a refeição do meio dia e me dar a chance de esquecer pelo menos por algumas horas, os meus problemas.
Nuvens começaram a se formar para as bandas do norte mas não dei muita importância, pois isso ocorria com certa frequência. Levantei os olhos para o horizonte e fiquei olhado o fenômeno celeste. Estas formações sempre me fascinaram, agora me enchiam de temor pois havia passado momentos difíceis anteriormente em função do fenômeno. Por outro lado, os enormes cogumelos brancos subindo a partir do horizonte, aumentando de tamanho de forma, me chamavam a atenção e a cada momento, eu parava o que estava fazendo para observá-los e admirá-los.
_Os dias de céu limpo parecem ter chegado ao fim. É certo que chegaram, sendo assim, pode chover a qualquer momento.
_ Sinto que o clima está diferente. Talvez por isso meu emocional está mais depressivo hoje.
_ Gosto de observar as mudanças climáticas que chegam com as estações do ano. Vamos checar o calendário.
_ Vamos?
_ Parece que falo com os animais.
As nuvens que se formavam, foram se intensificando e tomando dimensões maiores. Constatei isso quando subi ao terraço como fazia sempre, justamente para observar não apenas a cidade devastada, mas a qualquer variação suspeita ou já ocorrida. Gostava de anotar em uma espécie de calendário as mudanças que ocorriam, como árvores que cresciam mais do que as outras, prédios que perdiam parte de sua estrutura, ou que simplesmente desabavam por inteiro. As nuvens, a chuva, os animais. Com as anotações que fazia estava tentando traçar um cronograma desses acontecimentos para me situar melhor no espaço e no tempo. Nesse novo tempo sem referenciais humanos preestabelecidos.
Uma faixa azul escura começou a se formar por baixo das nuvens brancas e espessas, e foi subindo onde o céu se encontra com a vegetação. Era um azul de uma tonalidade muito escura, profundo, a ponto de assustar qualquer pessoa. Fiquei contemplando filosofando e fotografando. O céu já estava quase todo tomado por nuvens que foram se tornando cada vez mais escuras. Ouvi trovões que pareciam tão distantes quanto o dia em que tive a última lembrança antes de entrar na cápsula. Pareciam estremecer minha alma e minhas esperanças. Apesar do silêncio, quase não ouvia de tão distante.
_ Não sei por que esses trovões distantes mexem tanto com minhas emoções.
_ Gostaria de poder não ouvi-los agora.
Creio que nunca senti tanta angústia quanto naquele momento, e as horas que se seguiram, o que me fazia parar como uma estátua cada vez que os ouvia. A cada espaço de tempo, que não era tão grande, questão de minutos, eles se repetiam querendo me detonar aos poucos. Tinha a impressão de que meu peito ia explodir ou meu coração parar. Não sabia ao certo definir que tipo de dor eu sentia. Era horrível. Os trovões foram se aproximando lentamente enquanto a faixa azul se elevava entre o céu e a terra, fazendo aparecer uma faixa branca por baixo. Em pouco mais de uma hora os trovões estremeciam a terra e o prédio onde eu estava, de tão violentos que eram. Podia ver o céu clarear com os relâmpagos que os antecediam, rasgando o céu e as nuvens de alto à baixo, iluminando de forma assustadora as copas das árvores, e as silhuetas dos prédios. Esses, mais pareciam fantasmas com dezenas de olhos escuros. Mudavam em frações de segundos as tonalidades azul e branco, em amarelo intenso e brilhante, mais forte que a luz do sol em pleno vigor. Eu contava os segundos após cada clarão e percebia que cada vez era menor o tempo que se passava entre o relâmpago e o trovão. Eram fortíssimos. Eu que gostava tanto de chuva, temi diante da cena. Talvez esse medo fosse consequência de meu estado emocional no momento. Por outro lado, jamais tinha visto algo semelhante. Havia presenciado densas formações de chuva alguns meses atrás, mas nada se comparava a essa. O céu ao meio dia estava escuro com nuvens pesadas e baixas. A faixa azul foi diminuindo enquanto a branca foi aumentado aos poucos.
_ Talvez esse meu estado emocional seja porque eu nunca parei para ver e contemplar mais essa maravilha da natureza.
_ Maravilha? Expressão de ameaça. Isto sim.
A ventania que já era sentida pelas árvores foi aumentando. Do alto da torre eu podia ver árvores se contorcendo e balançado freneticamente de um lado para o outro. Dentro de alguns minutos pude traçar uma rota para o vento. A princípio não vinha diretamente na minha direção, mas passaria ligeiramente a sudeste de onde eu estava. Apesar de haver uma direção predominante, as árvores em alguns locais se contorciam numa direção e outras ao contrário, formando uma zona central praticamente neutra. Galhos e folhas se elevavam como se fossem gravetos secos. De repente uma árvore quase inteira se elevou no meio do redemoinho se contorcendo como se fosse uma folha de papel. Um objeto maior também subiu, não consegui saber o que era. Se elevou tão alto que não pude acreditar. De lá, se precipitou em seguida de acordo com o sentido predominante do vento. Será um tufão? Meu Deus. Nunca tinha visto coisa igual. Fiquei apavorado com a cena. De repente um dos prédios mais altos desapareceu por trás da coluna e quando ela passou não o vi mais. Havia desabado. Talvez jogado ao chão pela força esmagadora do vento que prevaleceu sobre o que já estava debilitado. Ainda percebi pedaços dele sendo arrastados e arremessados longe. Tive a impressão de que a natureza queria se vingar de qualquer ato do homem contra ela.
Temi permanecer no alto da torre, mas fazer o que? Se eu descesse e o prédio caísse seria soterrado. Se ficasse no alto sofreria da mesma forma as consequências. Procurei abrigo no interior da fortaleza após fechar a porta superior. As janelas que tinha acesso eu já havia fechado antes do início da tempestade. As demais nunca foram abertas por falta de acesso a elas.
_ Deus, tenha misericórdia!
_ Também, para que sobreviver? Se tiver chegado a minha vez...tanto melhor. Deus tenha misericórdia. Somente mais essa vez.
_ “Pai nosso que estás no céu, santificado seja o Teu nome”..._ creio que não sabia o restante.
Por fim a coluna atingiu o ponto mais próximo de onde eu estava. Pude perceber a ausência das aves e dos animais. Somente ouvia o sibilar do vento e o rangido das árvores se contorcendo. Imaginei a dor que as elas estavam sentido ao serem torcidas e retorcidas pela força dos ventos. Folhas e galhos menores voavam juntamente com objetos menores em direção ao centro da tempestade. As janelas do prédio tremiam e rangiam parecendo sentir medo ou dor, assim como eu.
Como cena de fundo ficava uma coluna azul escuro e outra branca por baixo, entre a terra e as nuvens esparsas. Com o passar dos minutos o tom de azul foi clareando até ficar praticamente branco. Rapidamente a chuva começou a cair com rajadas parabólicas de nordeste para sudoeste, desfazendo a faixa azul, e deixando tudo branco. Podia ver as curvas acentuadas que faziam as rajadas de água, forçadas pelos ventos. As colunas de água com granizo que precipitavam, eram tão intensas que estalavam quando atingiam as paredes e as vidraças do prédio. Eu as ouvia atemorizado e continuava a orar.
_ Deus tenha misericórdia!
_ “Pai nosso que estás no céu, santificado seja o Teu nome”.
Granizos despencavam do céu em flocos de gelo do tamanho de limões, mas parecendo uma avalanche numa montanha gelada. Espalharam-se por todos os lados, inclusive dentro do prédio, passando por janelas que se encontravam abertas e outras que conseguiram quebrar. Várias vidraças não suportaram a força desses projéteis e espatifaram no piso juntamente com as pedras geladas. O som que se ouvia era indescritível. A pantomima era incomparável.
No final da chuva uma camada grossa dessas pedras de gelo se formou no terraço e na porta da garagem até o dia seguinte quando se desfizeram por completo no final da tarde com o calor do sol.
A tempestade mais violenta foi passando lentamente até que ficou somente a chuva que precipitava quase que verticalmente.
_ Essa chuva não passa nunca. Reclamei depois de horas observando o fenômeno.
_ De qualquer forma é bom que chova bastante para molhar bem a terra. Preciso plantar algumas sementes.
Dizia para mim mesmo, depois de horas e horas de chuva intensa. E ela continuava, mais branda, mas continuava. Os relâmpagos quase não eram mais vistos. Os trovões ribombavam parecendo escadas no céu, dessa vez no rumo do por do sol. Foram diminuindo de intensidade e de frequência. Cada um deles parecia estar dentro de mim e cada vez que soava balançava ainda mais meu estado melancólico e depressivo. Ao se afastarem para o oeste pareciam levar as últimas gotas de minha esperança.
Voltei para a cama e fiquei deitado durante a tarde e mesmo depois que a chuva cessou, não quis mais me levantar naquele dia. Cabeça coberta para aumentar a escuridão que me assolava mesmo em plena luz do dia. Creio que nunca conseguirei descrever o meu estado de espírito em função da solidão intensificada pelo clima e a chuva desse dia.
_ Queria não estar vivo e não passar de novo por outra situação semelhante. De qualquer forma, com as tempestades de vento, chuva e granizo, me sinto melhor do que com as tempestades emocionais decorrentes da solidão.
Pensei novamente em me jogar da plataforma superior do prédio que possuía altura suficiente para dar fim a toda essa angústia e solidão. Talvez fosse covarde o suficiente, e não cometeria tal loucura. Talvez fosse temente a Deus o suficiente para não cometar mais essa idiotice. De qualquer forma não queria viver para ver um novo dia amanhecer e não ter ninguém com quem compartilhar minhas ideias, problemas e frustrações.
_ Devo merecer tudo isso. Mas o que foi que eu fiz de tão errado? Se pelo menos eu soubesse para me retratar, para tentar consertar o meu erro.
_ Em certo sentido, é tarde para se retratar. Creio.
O restante do dia transcorreu dessa forma, sugerindo que o período chuvoso estava apenas começando. Uma mudança na estação estava ocorrendo. Podia sentir isso, pois tudo ocorria de maneira diferente. A chuva viera de outra direção, o vento soprava para outra direção. Os trovões pareciam caminhar pelo céu formando escadas até sumir no horizonte em direção definida.
_ Isso é possível?
_ Se é possível não sei, mas sinto que não é como antes. Bem... tomara que a tempestade leve em sua carruagem minha tristeza e minha solidão. Droga! Droga!
Resolvi ligar o MP3. As coisas pioraram, pois as músicas da seleção que encontrei primeiro me reportaram diretamente para os anos de minha juventude. O som estridente das guitarras feriram ainda mais meu peito. Os acordes compassados da guitarra solo, preenchidos pelo acompanhamento dos demais instrumentos eram como setas agudas e envenenadas que perfuravam minha alma e me levavam ao desespero. Avancei para a próxima faixa, e as baterias estonteantes dos anos setenta pareciam com os trovões rolando pelo céu do meu espírito. Avancei de novo e o contra baixo arrebentou com seus graves o fundo do meu coração. “Moon River” na voz suave e melodiosa de Johnny Mathis, que apesar de ser dos anos sessenta, me levou de encontro a minha esposa, e pude ver como num filme real, a cena de um dos nossos encontros na margem de um belo rio. Depois disso nosso casamento, ela toda de branco, cabeça coberta pelo véu da pureza, a cauda arrastando pelo tapete vermelho da igreja. Podia ver nitidamente o tapete carmesim entre fileiras de bancos de madeira, e ela vindo ao meu encontro. Os convidados, reconheci muitos deles e me lembrei da fisionomia de cada um. As alianças, as damas e cavalheiros de honra, os padrinhos.
_ Chega, chega de lembranças. Gritei com todas as forças. Isso não mais existe. Minhas lágrimas molharam minha face.
_ Quantas vezes dançamos juntos essas músicas! Apesar dos meus protestos, continuava a me lembrar. Caí de joelhos no piso frio do quarto onde estava, e não contive as lágrimas. Com a cabeça entre os joelhos, as mãos segurando e tentando tapar os ouvidos. Em vão, pois o som não saía do equipamento. Saía do meu coração. Estava não apenas na minha memória, mas impregnado nas minhas emoções. Não era da gaita que soava solene, mas as farpas que perfuravam minha alma vinham da minha solidão. De um salto, desliguei o aparelho, mas aquele som não saiu da minha cabeça o resto da tarde. Sem querer cantarolava uma ou outra melodia sem abrir a boca. Via com clareza o grupo que com grande estilo e poder de comunicação executava cada canção. Gritei por aquela que me fazia companhia nas horas difíceis dentro de casa. Gritei por minha filha que vira pela última vez aos sete anos. Gritei, e gritei com todas as minhas forças, mas não houve resposta a não ser do eco que se formou nos longos e retos corredores do prédio. A não ser o bater das asas de alguns pássaros que estavam pousados na grade da minha janela, e amedrontados saíram voando. Entrei em uma crise de choro e desespero. Não conseguia controlar.
_ Se pelo menos eu tivesse a companhia da Rita, para conversar. Ela poderia me ouvir mesmo que não respondesse nada. Até mesmo ela foi tirada de mim de maneira inexplicável.
_ Gostaria que a minha vida acabasse antes que eu enlouqueça. Mas parece que não sou dono de mim. Não posso fazer ou ter o que quero.
_ Quaaack.
Ouvi a voz da pata, e percebi que estava de pé na porta do quarto, pelo que parece a algum tempo. Mal levantei a cabeça do travesseiro quando já o sol estava se pondo, ao ouvi-la. A vi balançando a cabeça para a frente e para trás e ao mesmo tempo o rabo de um lado para o outro, como que me dizendo alguma coisa. Talvez quisesse mesmo me dizer algo como:
_ Sai dessa amigo. Você ainda tem muita história para viver e escrever.
_ Como é que você chegou até aqui?
_ Quack, quaaack.
_ A porta ficou aberta? Claro que ficou. Devo ter esquecido.
_ Quack! disse a pata. Sem perceber eu disse a ela.
_ Vai para sua cama cuidar dos seus filhotes. Saia daqui.
_ Quaaack, quack, quack!
_ Ah, me esqueci que seus filhotes cresceram e não estão mais com você. De qualquer maneira vê se não amola.
Apesar do meu grande temor não desci para conferir se a porta da garagem estava aberta ou fechada. Simplesmente não levantei da cama. Não sei se não conseguia ou se não queria.
_ Se estiver tudo aberto lá em baixo espero que um animal selvagem entre e me devore aqui mesmo. Assim acabo com essa agonia que assola a alma e me faz vegetar no meio de um mundo inóspito como esse.
Ouvi uma voz falando comigo de maneira áspera. Era a voz do meu subconsciente.
_ Levanta dessa cama rapaz, e vai conferir a porta. Até a pata está preocupada com você. Vá pelo menos ver o que está acontecendo lá em baixo. Você é um homem ou um projeto inconcluso?
_ Não sei mais o que sou, e nem o que quero saber. Por isso acho melhor calar essa minha voz interna e deixar que as coisas aconteçam. Será melhor assim, já que não tenho coragem para tirar minha vida, deixarei que alguma fera o faça por mim.
_ Quaaack! Disse a pata mais uma vez e silenciou.
Fechei os olhos, puxei o cobertor sobre a cabeça e adormeci sem saber o que estava acontecendo lá em baixo, ou mesmo debaixo do meu nariz.
Capítulo 15
Acordei no dia seguinte com mais disposição e com a ideia fixa de voltar à loja onde havia encontrado os manequins. Essas estátuas poderiam me fazer companhia pelo menos nas horas difíceis como as que passei no dia anterior. Não fiz mais planos durante a noite, pois o desespero tomou conta de minhas funções racionais e parece ter voltado somente na manhã do dia seguinte.
De tanto pensar e repensar na minha situação cheguei a conclusão de que havia permanecido muito mais de cinco anos na cápsula, até a extinção da humanidade, tempo suficiente para que novas tecnologias pudessem ser incorporadas ao programa. Lembrei que a cápsula onde adormeci era diferente da atual, em que havia acordado. Esta era mais moderna, com mais recursos tecnológicos e até o designer era mais anatômico. Os recursos de fisioterapia não existiam na outra. O prédio também não era o mesmo assim como a maioria dos equipamentos auxiliares. Se fui transferido de cápsula criogênica e de local, sabe-se lá o que ocorreu com o projeto depois que adormeci. Esse lapso de tempo permanece sem história para que eu possa revê-la. Permanece uma lacuna na minha vida. Não sei por quantos anos fiquei preso, antes nem depois da extinção, como, e nem porque tudo isso aconteceu.
_ Se continuar pensando neste assunto, acabo ficando louco.
Mas não adiantava meus protestos, eu continuava pensando e questionando.
_ Com certeza mudaram a linha básica da pesquisa e fui usado como cobaia. Estava adormecido e indefeso.
_ O que terá acontecido com minha família? Indaguei.
_ Fui mesmo um tolo acreditando.
_ E continuo sendo.
_ Como puderam me transferir mesmo sem meu consentimento. Isso não foi correto da parte deles. Pelo menos minha família deve ter concordado. Espero!
_ Bem isso não importa agora. Depois do que aconteceu, não tenho mais para quem apelar. Não tenho a quem recorrer. Seja o que for, minha situação agora é esta. Nela eu tenho que permanecer. Não há como voltar a traz.
_ Com certeza não me jogaram em um universo paralelo. Não existia tecnologia e nem mesmo alguma pesquisa a esse respeito. Pelo menos eu não tinha conhecimento.
_ Deixe isso para lá. Vamos pensar nos próximos dias. Nos próximos passos para essa vida solitária e desgraçada.
_ Vamos mudar de assunto. Temos algo mais importante para fazer nesta manhã.
_ Como a Rita tinha uma consistência mais perfeita do que os manequins das lojas, quando as conheci, quem sabe hoje existam até ciborgues domésticos que não foram afetados pela catástrofe que dizimou a humanidade. Me lembro de que existiam projetos e muitas pesquisas nesse sentido. Seria ótimo se eu encontrasse uma loja ou a linha de montagem deles. Tanto serviriam para me ajudar nas tarefas mais difíceis como para me fazer companhia. Com certeza teriam mais informações em especial como possibilidade de sobrevivência.
Enquanto me preparava para sair ficava matutando sobre as coisas que aconteceram ou as possibilidades futuras. Meus pensamentos fervilhavam de ideias, umas malucas e outras que até faziam sentido.
_ E se os ciborgues dominaram a terra e eu sobrei sozinho escondido nessa fortaleza?
_ Se isso fosse verdade, com certeza eles já teriam me encontrado. Depois de mais de um ano com luzes ligadas, sinais eletromagnéticos emitidos pelos equipamentos e toda a movimentação que faço, com certeza eu já teria sido descoberto. É melhor não pensar nisso agora.
_ De qualquer forma, não consigo parar de pensar. Posso estar até servindo de cobaia em uma experiência para eles neste momento.
_ Não quero nem pensar nessa possibilidade.
Por mais que eu policiasse meus pensamentos para não voltarem ao assunto, eles me atraiam.
_ Merda não consigo!
_ Quem sabe encontro uma ciborgue que possa me oferecer mais intimidade. Ciborgues ou bonecas?
_ Não se esqueça cara: são apenas conjecturas.
_ Claro, mas não consigo parar de pensar. Então que sejam pensamentos menos negativos.
A ideia me animou, mas os meus pensamentos divagavam mais do que o vento. E como ele, esses eu também não podia impedir.
Antes de sair voltei à plataforma de dados para ver se havia energia suficiente para que funcionasse e ela me fornecesse alguma possibilidade de consulta para encontrar as informações que precisava. Além dos seus circuitos extremamente amplos, existiam partes mecânicas que consumiam muita energia. Ainda necessitavam de sistema de refrigeração. Este sim, consumia mais energia do que todo restante do sistema. _ Com a rede que tenho, há gasto em equipamentos que não são úteis. Se pelo menos conseguisse eliminar essa parte do circuito, talvez a energia fosse suficiente.
_ Afinal, a base de processamento não é tão grande assim. É mais moderna do que a usada quando entrei na cápsula. Sendo assim, tem partes que eu não entendo muito bem e nesse caso os ciborgues com certeza me ajudarão de forma eficiente.
_ Bem. Não foi dessa vez que consegui as informações que preciso. A energia é insuficiente para a demanda.
Novamente meus planos para o momento foram frustrados.
_ Desta maneira, tenho que repassar os planos para hoje.
O dia já havia chegado, e as primeiras providências começaram a ser tomadas para sair do prédio. Todo aquele trabalho ajudava a esquecer meus devaneios. Preferia muitas atividades todos os dias, o dia todo.
_ Vou sair na pick-up e buscar outra Rita. Isso vai me animar enquanto não encontro algo mais tecnológico do que ela. Ou mais humano. O que sem dúvida eu prefiro.
A chuva reiniciou me impedindo novamente de sair da fortaleza. Balancei a cabeça negativamente e saí em direção ao mezanino. Não poderia arriscar com um veículo em local sem estradas e muito molhado pela constante chuva. Certamente ficaria atolado na primeira poça de de água.
Do alto da torre, novamente sentado em uma cadeira, sob a proteção de uma cobertura improvisada, fiquei olhando e admirando a cidade outrora movimentada. Pude ver os carros passando velozes nas ruas. Uns buzinavam outros aceleravam suas possantes motocicletas para se mostrarem presentes. Pedestres com sacolas nas mãos, cheias de compras feitas em uma liquidação ou em uma comemoração comercial qualquer. Outros apressados esbarravam o ombro nos menos atentos e ainda reclamavam. Alguns garotos, já grandinhos, com quase 18 anos retiravam da bolsa de uma senhora despercebida os seus últimos trocados. Um deles avançou sobre um jovem e tomou seu aparelho celular e seu par de tênis de marca. Um guarda despercebido nada via, ou não queria interceder. Parecia até virar os olhos para outro lado. Também eram tantos os problemas e ele não podia mudar sozinho o mundo. Afinal, dizem que “uma andorinha não faz verão”. Uma freada repentina e um veículo e ele bateu em outro que trafegava por sentido transversal. Xingamentos, reclamações, choros e até mesmo alguns empurrões. Carros da polícia com homens mal-humorados encarando feio as pessoas. Logo depois chegam homens e mulheres com trenas e pranchetas nas mãos, fotografando medindo e anotando dados em suas planilhas. Conversando com os envolvidos. Uma sirene intermitente cortou os céus com seu zunido triste, passou a toda velocidade rumo à casa de mais um enfartado. Somente assim pude chegar à conclusão de que era mesmo a cidade onde eu morei por tantos anos. Há tantos anos. Onde trabalhara. Convivia. Somente saí do meu transe quando de repente um bando de patos sobrevoou o mezanino, deu duas voltas ao prédio e passou para outro local.
_ É verdade que esse prédio não é o mesmo onde iniciei as pesquisas. Os equipamentos também não são os mesmos. Os propósitos... quem sabe?
_ Onde era mesmo o prédio antigo? Talvez lá eu encontre alguma resposta.
_ Certamente. Durante o coma, fui transferido para essa nova unidade com mais recursos tecnológicos. Instalações melhores. Aqui, estou eu agora.
Levei a mão direita no queixo e com a outra esfreguei um local onde os homens gostam de coçar.
_ Mas de que lado está minha casa?
Fiquei observando tudo tentando entender para que lado estava o prédio velho e a minha casa.
_ Bem! Pelo posicionamento dos prédios que consigo reconhecer agora, parece-me que esse novo fica a sul da primeira sede.
_ Bem, se a sede anterior fica a norte, minha casa deve estar a oeste deste lugar. E não está muito longe daqui. Talvez uns quatro ou cinco quilômetros. Se minha casa está nessa direção, a escola, o supermercado ficam para lá. Disse com os braços abertos e estendidos. Mão direita para o nascente e esquerda para o poente. Devo investigar melhor quando a chuva cessar.
_ Não me lembro da maioria dos equipamentos que estão aqui, e também não existiam projetos de reestruturação e melhorias nos que eu conheci e ajudei a projetar. Pesquisas custam muito dinheiro, e este não é fácil de ser angariado. Não posso deixar de pensar que nos cinco anos previstos, meus colegas conseguiram progressos além das minhas expectativas. Até esse ponto eu podia entender perfeitamente, mas passar do período previsto, e acordar décadas depois, não dava para assimilar. Era muito para minha racionalidade.
Passava pela minha cabeça que outra organização poderia ter se apoderado da pesquisa e resolveu me transferir como simples cobaia para o seu laboratório. _ Quem sabe a esquerda assumiu o Estado e os rumos do projeto?
_ A esquerda, ou uma organização marginal.
Isso talvez não importe agora, pois a humanidade não mais existe. Minha família não existe mais. Talvez eu também não exista a não ser nas ondas cerebrais do meu subconsciente. Pelo menos é o que parece. Quem sabe sou apenas um espírito no limbo.
_ Essa rua parece muito com a minha. Fachadas, arquitetura, tudo se confunde com a do meu tempo. As casas até que estão bem conservadas, mesmo depois de tanto tempo.
O local estava tão diferente que era difícil estabelecer com certeza, uma relação do agora com o de antigamente. A rua estava tomada pelo mato e escombros, além do mais eu havia escolhido uma época muito difícil para sair à procura de minha casa. Com as chuvas, a vegetação crescia a cada dia. As dificuldades eram muitas, mas a vontade de ver minha casa era tanta, que segui em frente.
_ Afinal, para que mesmo eu quero encontrar minha casa?
_ Somente para confirmar minha decepção, pois já sei o resultado.
_ De fato, lá está ela. Ainda reconheço. Mesmo depois de tantos anos e tamanha catástrofe.
A casa realmente estava nas mesma condição do restante da cidade. Telhado desabando, paredes com rachaduras e grande parte do reboco desprendido. Janelas e portas com vidros quebrados, a ferragem corroída pela ferrugem e a madeira roída por cupins. Teias de aranha por todo lado. A garagem cercada pela vegetação, trepadeiras tomando conta de quase todo telhado. Ainda tinha um veículo na garagem, todo enferrujado, mas percebi de imediato que não era o que deixei com minha esposa. Portão semiaberto e retorcido, solto na parte de cima. O que era de metal estava enferrujado. O que era de madeira, corroído pelos cupins e apodrecido pela chuva e pelo tempo. O que estava de pé virou pergolado para as trepadeiras. A calçada do lado externo do muro praticamente não existia, tomada pela vegetação. Dentro, o jardim virou um matagal cheio de ervas daninhas e, amontoado de materiais caídos do muros e da construção que existia ao lado. A porta estava fechada, mas caiu para dentro da sala ao primeiro toque, levantando poeira e arrebentando o emaranhado de teias de aranha que estava em sua projeção. Nesse momento foi como se minha esposa se assustasse com o barulho e levasse a mão à boca com uma exclamação de espanto. Pude ver seus olhos arregalados de pavor suplicando por misericórdia. Os móveis em estado deplorável. TV ainda sobre um pequeno móvel em uso na época em que vivia ali. Sofás, cadeiras e demais móveis, roídos, tombados e muito sujos. Teias e mais teias de aranha por todos os lados, além de muita sujeira. Ratos saíram correndo por causa do barulho e da minha movimentação. Ossos humanos caídos por onde eu andava. Não conseguia evitar que alguns estalassem sob minhas pisadas. Não sei se humanos ou de animais. As vezes eu não sabia se o que estalava eram ossos ou vidros quebrando.
_ Realmente não deveria ter vindo. Concluí desapontado.
Estatizado no limiar da porta comecei a soluçar e as lágrimas desceram pela minha face cansada e abatida. Por longos minutos não consegui sair do lugar imaginando cenas de um passado remoto que não existe mais.
Procurei por um instante, um lugar para sentar e tentar refazer algumas cenas do passado. Mas que nada, tudo estava impróprio e incapaz.
_ Será que consigo identificar minha esposa e minha filha? Preciso saber dos seus restos mortais. Fazer um sepultamento... Coisas do ser humano.
_ Não me lembro desse quadro na parede, desse móvel, desse relógio. um poster na parede, mas não era de minha esposa. Quem seria? Muitas coisas estão diferentes. Também pudera. Seja o que for que aconteceu, devem ter sofrido muito, principalmente na minha ausência.
_ Será mesmo que elas sabiam onde eu estava, e o que estava acontecendo com o projeto? Fiquei meditando, recostado no limiar do portal.
_ O quarto de minha filha não parece o mesmo. Há duas camas de solteiro. Estes móveis eu não conheço. O que terá acontecido?
_ Certamente ela já estava adulta quando tudo isto aconteceu. Talvez casada!
_ Será que minha esposa cansou de me esperar e se casou de novo antes da tragédia?
Duas carcaças de crianças de tamanhos quase iguais, uma sobre uma das camas e outra espalhada no piso perto de um espelho embaçado. Pelas aparências uma com mais ou menos doze anos e a outra um pouco maior, talvez com quatorze. Deduzi pelas roupas, e pertences das meninas. Roupas diferentes indicavam gostos diferentes, personalidades distintas. Dois restos de computadores portáteis e telefones celulares cobertos de detritos sobre os criados ao lado de cada cama. Um pequeno aparelho de som servindo de morada de abelhas. Livros escolares, cadernos e canetas, ou melhor, o que sobrou deles. Sobras do que imaginei serem maquiagem. Traças e cupins haviam devorado a maior parte do que não era metal ou plástico. Continuava olhando e chorando, mas já tinha aparecido mais uma dúvida. Passei ao quarto onde dormira por tantos anos com minha esposa. Ficava ao lado do quarto de nossa filha. Entrei, e me deparei com duas carcaças, o que deduzi serem de um casal, sobre a cama. Pelo estado é claro não dava para identificar muita coisa, apenas o sexo, e isso pelos restos das roupas. Um dos crânios deveria estar voltado para a parede, como a posição do que sobrou da coluna cervical, mas alguma coisa o removeu da posição original.
Deveria ter encontrado o corpo da minha mulher, mas encontro dois. Minhas ideias se perturbaram diante da cena e tudo agora parecia diferente e não conseguia reconhecer mais nada. Não pude reconhecer nenhum dos objetos como sendo dela. Não sabia realmente ao certo se era minha mulher.
_ Também pudera...se for minha mulher, depois de tanto tempo. Se ela se casou de novo é totalmente compreensível.
_ Mas a minha casa tinha apenas dois quartos e essa tem três. Tem alguma coisa errada.
No terceiro quarto não pude reconhecer nada a não ser que ele havia sido construído depois da minha partida. Era um anexo. Resolvi não entrar. Outras alterações me levaram a crer que aquela poderia ser a minha casa, mas não era a minha família. Procurei por documentos e minhas dúvidas acabaram quando encontrei cédulas de identidade de algumas pessoas, inclusive de uma mulher aparentando pela foto, ter cerca de trinta e cinco anos. As datas, a esta altura, não faziam sentido algum, pois não sabia em que ano estava e nem quando ela morreu. Por outro lado, data de nascimento, nome, nada coincidia com minha esposa. Confesso que fiquei aliviado.
_ Eu não os conheço.
Neste instante, eu senti que estava invadindo a privacidade de alguém, e saí da casa em estado pior do que quando entrei, porém com a certeza de que aquela não era a minha família.
_ Será que os encontro um dia? Mesmo que sejam os restos mortais?
_ Talvez seja melhor não.
No caminho para a loja de manequins, eu estava atento, não tanto à movimentação dos animais, e às condições da rua, mas às fachadas que ainda permitiam ler os letreiros e, às vezes as condições das casas outrora exuberantes. Rodava um pouco e parava para verificar, sabendo que agora estava mais protegido que da última vez quando sai a cavalo. Meu estado deplorável me dizia para voltar para casa, mas algo me empurrava para frente e acabei por achar que realmente seria melhor, pois assim esqueceria as cenas fortes que tinha visto. Olhava rapidamente para a rua, que mais parecia uma trilha, depois para a próxima fachada que me chamava a atenção. De repente minha imaginação voltava para o portão da casa, para o corpo sobre a cama e sentia um nó na garganta.
_ Com certeza aquela mulher da foto morreu em outro lugar fora de casa. Talvez no trabalho, em um shopping ou coisa parecida.
_ Droga, quase bati nessa enorme pedra. Também ela tinha que estar no meio da rua?
Na verdade era um bloco de concreto que desprendeu de uma construção e veio cair no meio da rua. Passei por outras ruas que permitiam o tráfego na tentativa de encontrar algo interessante. Procurava ler todas os outdoors que ainda existiam e que permitiam leitura. Em um deles eu ainda consegui ler “Igrej...” completei a palavra mas não a frase; Outro, “Emp... Fazendin...”; mas o que é isso? Depois de muito procurar encontrei um no qual estava escrito “Os melhores manequins personalizados”. “Promoção”. Leve três e pague dois. As literais não estavam totalmente legíveis mas pude completar o que faltava e assim ler todos os dizeres.
_ Mas o que é isso? Caramba, que coisa... preciso examinar melhor essa loja.
Procurei encostar ao máximo a pick-up no meio-fio, mas como havia lama e a água ainda aflorando na beira da calçada temi que o veículo atolasse e ficasse preso. Eu estaria em sérios apuros novamente. Como a profundidade da água era pouca, desci mesmo molhando os pés.
_ Cuidado, podem ter cobras nesse lugar.
_ Claro, estou de olho.
Mas não eram apenas as cobras peçonhentas que me assustavam e metiam medo. Tinha visto além de sucuris enormes enrolados em animais, trucidando-os até o ponto de engoli-los ainda quase vivos. Jacarés e outros predadores ferozes. O capim, as trepadeiras e demais formas vegetativas estavam amassadas e pisoteadas. A princípio não sabia por quem. Procurei por pegadas e por fezes até chegar à conclusão de que eram de cavalos, bois e outros animais menos traiçoeiros. Os excrementos deixados não eram tão recentes mas comprovavam. Cheguei bem perto da porta de vidro e vi que estava bastante firme. Estava presa pelas laterais e pelos trilhos que, desgastados pelo tempo e as intempéries, não me deixaram abri-la. Não conseguia ver direito o seu interior. Muita sujeira no vidro e no interior do imenso salão cheio de vitrines e outros móveis, caixas, muita teia de aranha além de dejetos de aves. Outras portas estavam emperradas do mesmo jeito. Pensei em arrombar uma delas com a própria pick-up, mas havia um desnível maior do que poderia transpor com ela.
_ Ainda bem, pensei depois em voz alta.
A arquitetura e a jardinagem impediam o acesso de veículos até o limite da área de exposição. Talvez pela porta de entrada de veículos para descarga. Não a encontrei, pois a vegetação era muito densa e alta. Como tinha comigo uma arma de fogo de calibre doze, protegi-me por trás do meu veículo e atirei numa das portes de vidro a qual se fragmentou em centenas de pedaços. Produziu um estrondo que certamente poderia ser ouvido a quarteirões de distância. Não sei se o estrondo da munição foi maior do que o do rompimento do vácuo criado no interior da loja. Pássaros voaram aos bandos e pude ver a vegetação balançar nas proximidades.
_ Será que algum animal estava me espreitando? Bem, o estrondo valeu a pena ainda que seja para espantar essas feras.
Aguardei alguns instantes antes de entrar, pois a loja ficava no térreo de um edifício e tive medo de que ele desabasse com a movimentação do ar e do vidro. Olhei para cima e para os lados. Estava a uma distância segura para o caso de desabamento.
_ Esse edifício parece muito seguro. Mas, acho melhor aguardar pelo menos uns vinte minutos. Assim a estática volta ao normal. Somente depois percebi a loucura que iria cometer batendo o veículo nele.
_ Ele poderia cair em cima de mim?
_ Sou mesmo um idiota. Ou não sou tão?
No seu interior, apesar de muita sujeira, também muitos materiais caídos. Não somente em função da movimentação de morcegos, calangos, talvez sapos, mas da deterioração de metais e materiais celulósicos que formavam as vitrines mesas e outros móveis.
_ Ainda usavam madeira quando construíram isso! Madeira foi sempre uma matéria nobre na confecção de móveis e utilitários domésticos, mesmo que seja em MDF.
Paletes e outros utilitários de sustentação, estavam corroídos pelos cupins e deitaram abaixo, mercadorias e partes ornamentais do local. Os metais estavam bastante oxidados em função da grande presença de excrementos de pássaros que conseguiam entrar no recinto. As embalagens que ainda estavam inteiras apresentavam em sua maioria, amassamentos e rompimentos e desgastes.
Os manequins, que me interessavam, e estavam expostos, apresentavam avarias de todas as formas. Mas deu para perceber que a maioria era de materiais nobres à semelhança de Rita. Uns caídos no piso da loja, outros dobrados ao meio, recostados em suportes. Alguns eram fixados apenas nos seus pés o que dava a impressão de estarem vivos quando em perfeito estado. Agora estavam dobrados feito um pneumático meio murcho. Tanto homens como mulheres e crianças, as que ainda apresentavam restos da vestimenta, estavam sujos de excrementos de morcegos e andorinhas, enquanto que o restante fora comido pelas traças e cupins.
_ Depois de tantos anos também, não é para menos.
_ Também pudera, o local não tem nenhum sistema de controle de umidade e de temperatura. Nada iria durar neste ambiente.
Tudo estava bastante úmido. Exalava um terrível mau cheiro proveniente da decomposição dos objetos e excrementos. Com o rompimento da porta o ar pode ser renovado com maior fluidez. Abri algumas caixas de papelão plastificadas mas o que tinha dentro não estava em boas condições como Rita quando a encontrei.
_ Também a embalagem dela era especial, talvez ainda preparada para o transporte.
Por fim, dentro de outro compartimento que estava bem fechado, encontrei com a ajuda de uma lanterna o que parecia ser um depósito. O interior estava bem mais limpo do que o outro. Bem mais seco e com temperatura próxima a do ambiente. Apesar dos equipamentos de controle estarem todos parados.
Tudo que pude encontrar dizia que o local era um depósito de manequins. Uns simples e outros de alta qualidade e performance. O mundo capitalista é assim mesmo. Alguns papéis que apresentavam leitura apontavam para esse negócio apenas e, não havia possibilidade de ter outros utilitários mais avançados em tecnologia digital. As datas de fabricação que traziam eram mais ou menos as mesmas de outros documentos. Sinalizavam para cerca de quinze anos depois de eu ter entrado na cápsula.
Procurei através da transparência de parte frontal da caixa, por uma bela senhorita de cabelos negros ou castanhos. Abri um caixa da que mais me agradou. Apalpei sua pele com delicadeza, apertei um pouco no seu braço, e seus seios, constatando uma elasticidade semelhante à da pele humana. Abri suas pálpebras para ver os olhos. Eram castanhos claros, e percebi que tudo funcionava muito bem. Quando soltei elas voltaram para a posição anterior. Seria bom ou ruim?
_ Tem olhos claros, muito belos; Ela é muito bonita, vou deixá-la de lado até que veja outras. Talvez uma criança.
_ Crianças são ótimas companhias. Essas então, não precisam trocar fraldas, não choram, não são teimosas. Brincadeira, adoro crianças.
_ Mas quem não gosta?
_ Somente um psicopata.
_ Um manequim de homem, para ficar do outro lado da mesa como um amigo, ou irmão, quem sabe.
Juntei o que desejava e na volta passei em uma loja de confecções e comprei roupas para a família. Outra Rita, um garoto e um amigo.
_ Família? Ainda não cheguei a esse nível de loucura, mas com essa solidão será um luxo ter uma família e um amigo. Mesmo que sejam manequins.
Lá está a igreja que vira antes. Apesar de estar em outra rua, desviei o caminho e passei em frente a ela. Não resisti e parei, apesar das dificuldades pela competição que sempre travava com a presença de ervas daninhas, gramíneas e entulho. Ainda por cima a presença de muita água estagnada por falta de meios para escoamento. Com muita dificuldade cheguei à porta depois de passar por uma passarela, um pequeno portão caído, e os restos de uma cobertura preliminar.
Cheguei bem perto da porta que estava fechada e encontrei ossos humanos em primeiro plano. Aliás, ossos humanos estavam por toda parte por onde eu andava. Quando empurrei a porta tentando abri-la ela simplesmente caiu para a frente levando as incontáveis teias de aranha que ligavam o teto ao piso e ao que sobrou dos primeiros bancos. Fui entrando em meio à sujeira, ossos e bancos corroídos e apodrecidos. No elevado do palco, o púlpito e as cadeiras estavam da mesma forma do restante da nave. De uma lado se encontravam instrumentos musicais, uns caídos, outros recostados. Um belo violão com o bojo aberto e retorcido. As cordas de uma guitarras arrebentadas e os captadores pendurados. Bateria com películas rasgadas e corroídas. Sobre o pedal da máquina de chimbal ainda estava um resto de sapato com alguns ossos dentro.
_ Não sei realmente como conseguiram parar nesse lugar.
Nas proximidades outros ossos.
O surdo da bateria tinha sobre o que sobrou do couro uma baqueta que ainda permitia ler sua marca de fabricação, Albany, em baixo relevo e douradas.
Não sei o que senti ao ver o cenário devastado desse santuário que um dia com certeza foi local de oração e adoração. Não pude deixar de perguntar a Ele o que teria acontecido.
_ Meu Deus, terá sido mesmo o fim do mundo?
_ Mas se foi o fim, como ainda estou vivo?
_ Ou não estou?
_ Estava em horário de culto, quando ocorreu o evento. A igreja está cheia de ossos. Talvez esperassem algum acontecimento a portas fechadas. Com certeza estavam em oração.
Outras perguntas que não deixam minha mente em paz. Por que estou vivo e sozinho? Porque os animais sobreviveram?
_ Com certeza fazem muitos anos que essa catástrofe se abateu sobre a raça humana. Ninguém escapou.
Dirigi ali mesmo uma oração ao Deus que “conhecera” desde a infância, e tentei cantarolar uma antiga canção gospel. Eu a ouvia sempre no meu aparelho MP3. Ela me acalmava nos momentos mais difíceis desses meus dias de solidão. Lembrei-me de um versículo da Bíblia que também passei a recitar.
Saí daquele local de cabeça baixa, pensativo, e senti novamente as lágrimas correrem pela minha face. Desta vez não ouve manifestação agressiva de minha parte nem palavras de desabafo. Somente perguntas que ficaram novamente sem respostas. Não percebi uma enorme cobra na porta do templo e quase a pisei. Ela saiu balançando a ponta do rabo com seu chocalho avisando.
_ Cuidado comigo, cuidado comigo.
Se foi olhando para trás e dizendo com a ponta do rabo.
_ Cuidado comigo, cuidado comigo.
Meu coração disparou quando o perigo já havia passado, mas logo se acalmou e segui até a camionete que estava parada a uns trinta metros da porta.
Apesar do desapontamento me senti confortado e até mesmo um tanto alegre depois dessa visita à igreja. Certamente foi um culto, uma adoração. Quando ia dizer Deus criador e destruidor, cortei propositalmente o pensamento ou as palavras, não sei, pois ultimamente eu expressava quase tudo em palavras, e não sabia ao certo quando pensava e quando falava a mim mesmo.
_ Devo voltar outras vezes a esta igreja. Esta visita me fez muito bem. No passado, pensei, não sentia nenhuma vontade de levar uma vida espiritual regular. Não frequentava igreja alguma e procurava de todas as formas evitar esse assunto por mais que meus familiares e alguns amigos insistissem.
_ Não sei por que agora de repente me sinto dessa forma.
_ Realmente aquela visita à igreja me fez bem.
_ Será que esse Jesus Cristo que os Cristãos tanto pregavam é realmente o filho de Deus? Será que Ele olhou para mim pelo menos agora? De qualquer forma estou um tanto aliviado de minhas lembranças e tristezas.
Em casa passei o resto do dia construindo uma antena externa para o rádio multi faixas que havia testado antes sem sucesso. Lembrei-me que com uma antena maior ele poderia captar sinais fracos, vindos de muito longe, enviados talvez por alguém com poucos recursos tecnológicos. Afinal, construir ou encontrar um pequeno rádio transmissor era muito fácil. Eu mesmo havia construído um nos meus tempos de escola, usando apenas materiais básicos e improvisados.
Com uma bobina de fio de cobre instalei em cada ponta, isoladores elétricos, e o estendi por cerca de cinquenta metros. No centro derivei outro fio para fazer a ligação com o rádio. Fiz isso na frente da garagem para que tivesse como estender a antena e cravar bem fundo uma haste de cobre para um aterramento eficiente. Feitas as devidas ligações, antena e terra, liguei o aparelho e aguardei alguns instantes. Um chiado contínuo era o que eu conseguia ouvir. Aumentei o volume ao máximo e ouvi a mesma coisa. Percorri todo o espectro do dial e nada que denunciasse algum sinal codificado. Parece que ouvia o aparelho dizer.
_ Decodificar o que?
Nenhum sinal de rádio. Passei dessa forma por todas as faixas que o rádio disponibilizava. Somente chiado. Estática, apenas estática. Fui novamente quase ao auge de minhas emoções em estado de fúria ou desespero. Com outros aparelhos que recolhera nas imediações, liguei alguns deles, cada um em um faixa específica, e os deixei ligados para ver se aparecia alguma coisa. Dias seguidos e o chiado era o mesmo. Talvez um aparelho de Radio Amador possa me ajudar. Ele tem mais recursos na busca de sinais.
Terminei o dia levando meus amigos para dentro de casa, lavando-os bem com água e sabão neutro de cheiro, vestindo-os adequadamente. Depois sentei-os em locais estratégicos para uma boa reunião de família onde eu conversaria com alguém mesmo que fossem três manequins de silicone para exposição de roupas e calçados.
_Minha vida continua tão vazia, quanto esses companheiros puderem preencher.
Nenhuma resposta deles. Nenhum som saía de suas bocas sempre fechadas. O Rádio, pelo menos emitia um zumbido contínuo em uma única frequência.
Amanhã será outro dia. Com certeza. Ainda estou vivo.
Capítulo 16
À noite antes de ir para a cama, estive conversando com meus companheiros e amigos manequins, quando senti algo me incomodando. Passei a mão pelo rosto e quase não encontrei pele. Apenas pelos. Estava aos poucos deixando hábitos saudáveis de higiene e cuidados pessoais, e me tornando um animal solitário no meio do mundo. Enquanto estava na cápsula, creio que meu metabolismo desacelerou tanto que meus pelos quase não cresciam. Agora, já não estou conseguindo acompanhar o seu crescimento. Nos anos todos depois que saí, fui me descuidando da aparência pessoal. Poucas vezes raspei a barba e cortei os cabelos da cabeça.
Olhei-me num espelho pela manhã e fiquei espantado com minha aparência. Cabelos enormes e, claro, mal cuidados. Barbas que alcançavam meus mamilos. Roupas sujas e rasgadas pois não me importava em tomar banho e trocá-las. Resolvi conferir também o local onde eu dormia e desisti de chamar de cama. Mais parecia o ninho da pata. Creio que se a colocasse em minha cama ela recusaria de tão suja que estava. Confesso que fiquei envergonhado. Claro que se os manequins falassem teriam me evitado ainda na loja, ou pelo menos me alertado para as minhas condições.
_ Realmente não estou importando nem um pouco comigo mesmo. Não posso continuar desse jeito, pois vou ficar doente de tanta sujeira. Mesmo sozinho preciso ter consciência de que higiene pessoal é uma questão de saúde. Minha nova família deve estar horrorizada com meus hábitos de higiene.
_ Família? Que família, cara?
_ Devo mesmo abandonar a ideia de família e muito menos de sociedade. Talvez esteja me cansando de conversar com esses manequins idiotas, não tendo respostas. Eles realmente, nem sequer me ouvem. Reclamei balbuciando para mim mesmo.
Mas eles eram minhas únicas companhias nas horas mais difíceis, quando dividia com eles minhas agruras e alegrias. Eles nunca conversavam e nem me avisavam de que meus pelos e minha higiene pessoal estavam tão deficientes. Reclamei com eles esse fato, mas mesmo assim nada disseram.
Depois de um bom banho e sessão de corte de cabelos e barba, vesti roupas limpas, calcei botinas novas. Até usei um perfume que encontrei ainda com sua fragrância ativa. Olhei novamente no espelho e senti orgulho de mim mesmo.
_ Apesar de minha idade cronológica, não estou tão envelhecido.
Foi então que ao passar perto da nova Rita resolvi num ataque de cinismo, fazer carícias passando as mãos delicadamente pelo seu corpo. Abracei-a por traz, abri sua blusa e acariciei seus seios; por baixo de suas vestes rocei com a mão as suas pernas, chegando a excitação. Estava certo de que ela poderia responder com calor humano e quem sabe, com sexo. Estava quase a ponto de beijá-la na boca mas não sentia nenhuma resposta no seu corpo. Não encontrei, é claro, nenhuma possibilidade. Nenhum calor. Ela não tinha genitais. Decepção. Saí de perto dela pisando forte no piso da sala onde estavam. Os outros manequins estavam totalmente alheios ao que se passou, e como estavam continuaram.
_ Não quero outra situação semelhante.
_ Nem me fala.
_ Era apenas uma manequim com lindos olhos, corpo estrutural, pele macia, seios belos e provocantes, nada mais. Não podia me dar prazer, conversar comigo compartilhar minhas agonias e meus devaneios.
Cobri o corpo dela com suas vestes mais tradicionais e um manto longo. A coloquei ao lado dos outros dois e disse a eles: sejam felizes.
Durante 9 anos, minha situação praticamente não mudou. Todos os dias eram a mesma coisa. Levantava pela manhã, providenciava meu desjejum, ordenhava minha vaca, às vezes as duas, que na maior parte do tempo me sustentavam com seu leite, queijo e coalhada. Às vezes fazia doce. Cheguei mesmo a ficar alguns meses sem leite algum, pois as duas pararam de produzir em função do cio. Cultivava as minhas hortaliças às vezes regando, às vezes replantando, removendo as ervas daninhas e os insetos foliares. Colocava adubo orgânico retirado do curral e de uma vala de compostagem. Depois subia ao terraço levando meu almoço e ficava horas e horas sentado em uma cadeira olhando com uma lente o cenário lá em baixo. Gostava e precisava ver se encontrava algo diferente. Tinha esperança de encontrar algo novo. Ainda tinha esperança de encontrar alguém. Esta esperança me alimentava, ou me enchia de ilusão.
Tudo era praticamente igual todos os dias, com exceção da presença de animais diferentes dos costumeiros. Aves diferentes fazendo arribação. Certo dia, para meu espanto, me deparei com uma manada de elefantes que passaram pela minhas lentes e sumiram no meio do mato. Aprendi a desenhar e classificar algumas espécies para tentar reconhecê-las quando voltassem. Não sabia os nomes da maioria delas.
Cheguei a fazer algumas excursões por lugares diferentes, alcançando cidades vizinhas, varias delas, constatando que a situação era a mesma. Abandono, escombros, ossos humanos e de animais, entulho e mais entulho dos prédios e casas tombadas. Algumas dessas viagens, foram feitas na pick-up levando dois cavalos num trailer adaptado para eles. Encontrei pontes que ainda podiam ser usadas e tantas outras inutilizadas totalmente. Casas e edifícios da mesma forma. Estradas cheias de buracos, erosões, poças de água, obstáculos e vegetação rasteira no leito. Voltava por outra estrada, quando possível, ou deixava o carro e continuava montado em um dos cavalos, levando o outro com a carga e servindo ao mesmo tempo de reserva. Com a ajuda de mapas localizava as estradas a partir de pontos determinados da cidade, ou o que sobrou dela, que a esse ponto conhecia muito bem. Me orientava pelo sol e por meio de uma bússola que colocava sobre o ponto do mapa onde julgava estar. Cheguei a cerca de setenta quilômetros de distância, viajando vários dias seguidos. Como não encontrava nada que me ajudasse a não ser a possibilidade de traçar rotas para uma eventual fuga, voltava sempre ao meu abrigo na fortaleza. Registrava sempre nos mapas, essas rotas, suas dificuldades e facilidades, para outras possíveis viagens posteriores.
Ano após ano, cultivei minha horta que produzia o suficiente para o meu sustento e dos animais que a esta altura. dependiam de mim, pois agora domesticados, alguns deles não sabiam procurar alimento. Plantei várias mudas de cana, de batata, de mandioca, vários tipos de vegetais que serviam de alimento além de servir de ração para os animais. Algumas espécies de frutíferas já produziam no meu quintal. Eu cuidava de uma manada de patos que nadava na lagoa próxima da garagem. Eu mesmo a fiz ampliando a pequena que já existia na parte anterior da fortaleza. Trabalhei com força bruta, enxadão, pá e carrinho de mão. Eu, que jamais havia trabalhado em atividade braçal pesada, agora estava dando o duro de forma espontânea, ou quase. A lagoa não tinha revestimento eficiente pois não encontrei materiais adequados e que funcionassem para sua impermeabilização, a não ser argamassa de argila. É claro que não tinha cem por cento de aprovação, mas apesar das condições, ela mantinha água o ano todo. Estava em um local onde o lençol freático era superficial e aflorava com facilidade. Diminuía muito nos meses de setembro até o inicio do período chuvoso, quando ficava barrenta e com aspecto ruim, mas para os animais era suficiente. Os cavalos e vacas dessedentavam nela juntamente com os patos, marrecos e gansos. Aves não domesticadas vinham sempre se refrescar e dessedentar ali. Alguns peixes se desenvolveram nessas águas, creio que vindo de alagamentos ocorridos no período chuvoso quando ocasionalmente ela abria canais até o curso d’água mais próximo. Havia nas proximidades, um pequeno riacho que transbordava a cada chuva mais expressiva. Também tive que perfurar sozinho uma cisterna para o meu uso doméstico. Uma bomba movimentada pelo vento tirava água limpa do fundo da mesma que não passava de quatro metros de profundidade. A maioria dos animais apesar de ter água limpa em um bebedouro de plástico feito de material reaproveitado, preferia beber no poço maior juntamente com os demais que pareciam adorar. Um jacaré fez morada nesse poço e foi preciso que eu o eliminasse antes que ele comesse todas as minhas aves de estimação. Sua carne com sabor de peixe me serviu de alimento por vários dias. Capivaras, pacas, macacos e até mesmo onças, sempre eram vistas nesse local. Muitas vezes percebi que elas me viam mas não se importavam muito com a minha presença. Creio que me consideravam um animal selvagem como elas. Eu serviria apenas para uma refeição, caso precisassem.
_ Eu é que não estou a fim de ser refeição para onça alguma.
_ Prefiro me conservar distante desses bichinhos.
Sempre que saía da minha toca, estava preparado. Tive que aprender a produzir pólvora, mesmo que fosse pólvora negra, a partir do salitre, enxofre e carvão, pois a munição que tinha estava ficando escassa e de difícil detonação. Em testes com a pólvora caseira tive também que modificar uma arma para facilitar a sua detonação sem espoleta caso precisasse. Estas, por enquanto, eu ainda tinha em grande quantidade e bem acondicionadas, para não perderem sua capacidade de inflamar-se mediante choque mecânico.
Me acompanhavam sempre, dois companheiros, os cães Fedegoso e Biloca, os quais consegui resgatar de uma ninhada nos primeiros dias de vida. Tudo aconteceu num dia quando passava por uma rua solitária e ouvi choro de filhotes. Tomando minhas devidas precauções procurei me aproximar da ninhada.
_ A mamãe cadela certamente saiu para procurar alimento.
_ Estão sozinhos e com fome. Fui andando sorrateiramente até que pude vê-los escondidos sob os restos de uma construção.
_ Aqui estão vocês seus danadinhos lindos. Vou levar enquanto estão com os olhinhos fechados, será mais fácil domá-los.
Lindos, na verdade, mas um tanto magros e esfomeados. Com cuidado adentrei no local. Era uma casa parcialmente destruída, com mau cheiro de carne em decomposição, talvez de ratos, misturado com mofo. Era muito forte e desagradável, mas consegui chegar até eles. Retirei um casal que rosnava nervoso para mim demonstrando coragem mesmo sem me ver. Eram os dois mais lindos que haviam. Um macho de duas cores e uma fêmea branca. Antes de sair do local peguei um pedaço de pano e esfreguei bem no ninho para pegar o cheiro da mãe e dos demais filhotes e levei comigo para forrar o ninho onde seria seu novo lar. Dizem que esse procedimento é importante para que os filhotes de cães se acostumem com mais facilidade ao novo lar. Deu certo, pois os dois que levei não deram trabalho algum. Cuidei desses dois novos membros da família com todo carinho. Adaptei uma mamadeira a qual eles aceitaram sem questionar, pois estavam realmente com muita fome. Como eram bem novos e o leite das vacas era muito forte, adicionava um pouco de água.
A pata, já bem idosa, cautelosa e meio desconfiada, aproximou-se um pouco deles saudando-os, assim que os coloquei no piso da garagem. Ainda não estavam tão espertos ao ponto de fugirem.
_ Quack, disse a pata para os novos moradores. Nada disseram em resposta.
_ Quaaack. Disse ela novamente movimentando a cabeça e a cauda. Eles rosnaram e se recolheram arredios.
Dentro de poucos dias alimentando-os com o leite e logo depois com comida normal eles cresceram e foram se tornando dóceis, mas um tanto arredios. Quando estavam com fome me procuravam, quando não, sumiam brincando com os patinhos que sempre tinha no quintal. Em poucos meses se tornaram espertos e atentos, e depois de destruírem tudo que encontravam pela frente, saíam escavando o quintal perseguindo os patos e outros animais. Latiam e alegravam o ambiente com suas peraltices. Se tornaram dois cães de guarda valentes e amigos, inseparáveis. Onde eu ia, eles iam comigo. Qualquer ameaça e eles estavam de guarda. Qualquer animal estranho que tentava invadir o nosso espaço e eles estavam a postos para persegui-los. De vez em quando cometiam alguma travessura, comendo um dos patos, por exemplo, mas o custo benefício era positivo.
As fontes de energia estavam a cada dia mais deficientes e não eram capazes de fornecer mais a potência suficiente para alimentar o computador. Assim ele foi aos poucos sendo deixado de lado. Tentei aproveitar as correntes eólicas instalando pequenos geradores em cataventos como os usados para tirar água de pequenos poços, mas como as pás muito pequenas não tinham força suficiente para fornecer uma quantidade razoável de energia. Meus recursos tecnológicos estavam se esgotando lentamente. Usava a bateria do carro para ligar o notebook, enquanto o motor da pick-up funcionava. Nenhum eletrodoméstico funcionava mais.
Nesse ponto não tinha mais geladeira, ventiladores e outros aparelhos elétricos que tanto facilitavam minha vida. Mudei definitivamente para a sala próxima à garagem onde o acesso era mais fácil. Tinha grandes janelas que permitiam a entrada de muita luz durante o dia. Ventilação abundante de maneira que era bastante arejada e suficiente para minha moradia. Por fim, dificilmente subia ao terraço a não ser quando precisava vistoriar os painéis que mal funcionavam para algumas lâmpadas, ou quando alguma coisa longe de casa chamava minha atenção. Também, sem iluminação, as escadas estavam sempre no escuro. Conferia com minha luneta e descia para onde concentravam minhas obrigações e atividades diárias.
Esqueci no interior do prédio os manequins que um dia me fizeram companhia e dificilmente os trazia para baixo. Quase nunca dirigia a palavra a eles e quando o fazia era sempre outra decepção.
Cada dia me tornava mais ligado aos animais e à própria terra com minhas plantações. A maioria dos equipamentos que tinha quando acordei não podiam mais me ajudar. A pick-up ainda funcionava muito bem mesmo porque tinha um estoque considerável de combustível e eu não a usava tanto. Não tinha aonde ir nos fins de semana, não saía para jantar ou comer uma pizza. Nunca saía à noite pois me faltava coragem. Só saía mesmo durante o dia quando tinha necessidade de alguma coisa. Depois que aprendi a usar os dois cavalos que domestiquei, e encontrei arreios para eles, passei a usá-los com mais frequência. Eram bons companheiros. Sentiam de longe a presença de predadores e me avisavam. Apreendi uma potrinha linda, malhada, que andava vagando longe de sua mãe. Aproveitei a primeira oportunidade e a prendi no curral juntamente com os demais animais. Aos poucos foi se acostumando comigo e os demais equinos.
_ Será uma boa reprodutora que certamente me dará animais mais fáceis de domar e ensinar.
_ Com certeza, meu chapa.
_ É. Você está ficando esperto neste mundo de uma só pessoa.
Devo ter aprendido a linguagem dos animais de tanta convivência, ou eles aprenderam a minha, pois eram meus confidentes e parceiros nas conversas o tempo todo.
Sempre que uma crise mais forte de depressão me acometia eles ficavam tristes e andavam de cabeça baixa assim como eu. Foi numa dessas crises que uma onça pintada me atacou um dia, pois tanto o cavalo branco como eu estávamos de cabeça baixa e desatentos. Os cães que sempre estavam comigo atacaram na hora, mesmo correndo o risco de serem devorados por ela. Minha arma disparou contra a fera e o cavalo nem sequer assustou. Esse episódio serviu pelo menos para me animar um pouco e levantar a cabeça. Nesse dia chegamos em casa rápido como nunca. Mal tive tempo de chamar os cães para me acompanharem. Eles não queriam abandonar a onça com tanta facilidade, mas desistiram pois sabiam que não podiam com ela. Chegaram em casa logo depois de eu ter apeado do cavalo. O animal branco disparou comigo no rumo de casa e somente parou quando adentramos à garagem. A fera já estava muito longe.
_ Acho que estava com filhotes pois elas muitas vezes já passaram perto de mim e nem me olharam.
Ninguém respondeu.
Quando elas estavam com a barriga cheia e não precisavam de minha carne para alimentar-se, eu era como outro animal qualquer.
_ Também, há tantos animais no bosque que elas não tinham muito trabalho para buscar seu alimento.
_ Eu que nunca gostei de predação tive que conviver com ela e também colocar em prática a cadeia alimentar. Abatia somente para me defender ou alimentar.
Lá pelo mês de setembro, de acordo com meu calendário, o calor era tanto que abri a ducha improvisada na parte externa da fortaleza e, estava tomando banho e tentando tirar a barba, ou pelo menos cortá-la com um tesoura meio cega. Estava me incomodando muito novamente. Nuvens se formavam entre o nordeste e o leste, porém pouco as via pois elas estavam escondidas por trás da mata e ainda muito distantes. O banho era demorado pois era o que mais aliviava o forte calor da tarde. A água que saía da ducha escorria longe pela declividade da calçada e chegava ao terreno ressecado e empoeirado da jardinagem do prédio. Ela ficava em uma calçada impermeabilizada com cerâmica onde a vegetação estava sob controle. O local era mantido limpo e agradável apesar da presença dos animais. A grama bem cuidada e verdinha, apenas nas proximidades dos locais servidos por água. Também os herbívoros mesmos cuidavam em podá-la para mim todos os dias. Fora dessa área, a vegetação não estava lá tão verde. A parte superior de alguns locais estratégicos era coberta de pedras roladas, que antes eram brancas, depositadas e mantidas na parte superior do solo dando ar de bem cuidado. Creio que já havia me esquecido dos jardins que costumava ver no passado distante. Hoje qualquer conjunto de formas vegetativas e obra de arquitetura para mim configura um jardim. A rampa de acesso à garagem, embora com o piso um tanto desgastado, eu procurava manter limpo e não permitia que os animais a sujassem muito.
_ Vocês tem a parte de você e eu tenho a minha. Dizia sempre para eles. Diz a eles sempre que tentavam invadir meu espaço.
Os patos às vezes não obedeciam minhas ordens e defecavam por todo lado, inclusive na rampa e no jardim. Sobre as pedras que antes eram brancas. Tinha que lavar tudo brigando com eles e chamando-os para ajudar na tarefa.
_ Seus porcalhões.
_ Vocês fazem a sujeira e eu tenho que limpar. Isso não é justo. Venham logo me ajudar. Amanhã se eu vir vocês aqui, vou partir para ignorância. Esfolo-os vivos pelo menos dois de vocês e, como no meu almoço. Risos.
_ Delícia de banho. Sussurrei.
_ Quack, quack. Respondiam os patos balançando a cabeça para a frente e para trás e o rabo para os lados alternadamente. Conversavam entre si animados. Os dois cães amigos estavam sempre por perto manifestando sua alegria com o rabo.
_ Quack! Quaaaack!
Saíram em fila para o lago que era de sua propriedade. Assim como entraram, saíram voando e saltando apavorados enquanto um deles batia fortemente as asas tentando se livrar de uma enorme sucuri. Os cachorros correram apavorados na direção da lagoa. Latiam feito loucos e saltaram na água.
_ Santo Deus!
Corri para o local onde havia deixado a arma de fogo, aliás, sempre perto de mim, e fui em direção ao lago. Lá estava a sucuri com uma das patas que mais gostava amarrada em seu corpo que se movimentava cada vez mais arrochando-se sobre o pobre animal. Ela se estrebuchava tentando se livrar, mas como, se a cobra tinha os dentes cravados no pescoço dela e pelo menos umas duas voltas em torno do seu corpo. Os cachorros atacavam mas ele não desistia.
_ Você não me escapa sua infeliz. Detono você em um segundo.
Atirei na cobra uns três disparos e aguardei que ela soltasse a pata. Lentamente ela foi soltando o nó e se contorcendo até abandonar por completo a pata, mas esta já não respondia. Corri para ela e a afastei da cobra, mas já estava sem vida. Sua penas brancas se soltavam onde a cobra mordeu e apertou o terrível nó.
_ Merda de cobra. Logo minha patinha branca. _ Não podia ter pego uma pata selvagem? Há tantas por toda parte, e você vem logo no meu quintal pegar minha pata. Droga. Droga. Mil vezes droga. Que merda.
A cobra se estrebuchava morrendo e mesmo assim eu ainda lhe apliquei várias pancadas na cabeça. Era realmente grande e demorou para morrer. Fiquei observando e odiando.
_ Bem que eu podia levar você para a panela. Daria carne para muitos dias, mas não preciso de você sua miserável.
_ Mas a minha vingança não será plena mesmo se eu a comer com sal e pimenta. Bem cozida ou de preferência assada em fogo bem quente.
_ Já sei. Vou fazer melhor com você.
Peguei a pick-up e amarrei bem a cobra na traseira e fui arrastando até o rio que não ficava longe e era infestado por piranhas. Ela ainda estava meio viva. Os dois cães foram atrás fazendo a festa.
_ Vou deixar você virar cardápio de piranhas sua infeliz. Fiquei rindo quando ela atingiu a água e as felinas piranhas atacaram. Agora você não vai mais atacar meus patos.
Quando cheguei em casa notei que havia esquecido o animal morto do lado de fora e não a encontrei a princípio. Logo percebi que um cão selvagem a comeu ali mesmo enquanto eu ria das piranhas que devoravam a cobra.
_ Ali estão as penas brancas.
Ainda vi o cão com parte da pata na boca e a cabeça levantada, caminhando em direção ao bosque. Não fui atrás dele pois sabia que não adiantava mais. Eu não comeria a carne dessa pata, nem que tivesse com muita fome e sem outra opção. Ela era minha pata de estimação desde que acordei e subi ao terraço do prédio.
_ Caramba, estou nu. Não tinha notado.
Também, ficar nu era comum para mim nessa situação, pois não tinha ninguém para despertar em mim qualquer tipo de pudor. Me vestia mais para garantir minha proteção contra espinhos, o sol quente, insetos e para me aquecer nas horas e dias frios. Quando passei em frente ao espelho notei que havia cortado apenas parte da barba.
_ Amanhã termino com isso, mas dá para perceber que fico melhor com ela pelo menos aparada. Preciso fazer isso com os cabelos também. Vou cuidar melhor do meu corpo.
De manhã voltei novamente para a frente do espelho e com os cabelos bem secos peguei a tesoura e aparei bem curtos os pelos da barba, depois passei para os cabelos da cabeça. Limpei os pelos cortados que caíram na minha roupa batendo com as mãos e depois com uma toalha. Olhei novamente para o espelho e levei um novo susto.
_ Há muito tempo não corto meus cabelos.
_ Quantos anos você tem companheiro? Perguntei e tal foi a surpresa.
_ Não sei, mas você está muito bem, apesar da idade.
Resolvi pegar aparelhos de barbear e raspei a barba toda e recortei bem curtos os cabelos. Peguei roupas novas e limpas e as vesti em seguida. Senti até um pouco de vaidade quando passei novamente pelo teste do espelho. Por um momento fiquei assustado, pois durante os anos que passei na fortaleza sozinho não havia pensado em idade. Olhei novamente, passei a mão sobre o queixo, sobre os zigomáticos, a testa. Alisei os cabelos mal aparados e procurei uma pose de meio perfil.
_ Quantos anos tenho mesmo?
Compenetrado comecei a fazer contas.
_ Bem, quando entrei na cápsula eu já tinha trinta e cinco anos. Não sei por quanto tempo fique dentro dela, mas de uma coisa tenho certeza: depois que acordei já havia acontecido toda essa transformação na terra. De acordo com os arquivos encontrados na loja de manequins fiquei cerca de doze anos adormecido até que houve a catástrofe que dizimou o ser humano. Considerando que estas árvores gastaram cerca de cinquenta anos para atingirem o estágio atual. Depois que acordei e comecei a contagem do tempo já se foram mais nove anos.
_ Mais de cem anos?
_ Se todas as considerações estiverem corretas, na verdade, cento e seis anos...
_ Não pode ser. Algo está errado. Eu tenho cerca de cento e seis anos.
_ Não. Definitivamente não pode ser. Não dá para acreditar.
Quando me dei conta dos números calculados, caí sentado em uma poltrona e meu coração disparou. Quase saiu pela minha boca. Não dava para crer.
_ Calma meu velho você está muito bem de saúde apesar da idade e dos percalços. Não precisa morrer de um ataque cardíaco agora, só porque descobriu que tem mais de cem anos de idade.
Fiquei boa parte da noite refletindo em mais esse questionamento. Era difícil acreditar.
_ Por que será que só agora me dei conta dessa questão?
_ Não entendo, por mais que pense no assunto.
_ Por que será que não envelheci de acordo com minha idade cronológica?
Uma pessoa com mais de cem anos de idade não tem a saúde, a energia e a agilidade que tenho para fazer o que tenho feito. Era mais uma pergunta a sem resposta.
Capítulo 17
Meditando no que havia descoberto diante do espelho, não pude deixar de ficar alegre, mas perplexo, pois além da questão de estar ao que parece, sozinho no mundo, não sabia o que tinha acontecido com a humanidade e também comigo durante tantos anos dentro de uma cápsula de criogenia. Além de tudo, avia descoberto que minha idade era bem avançada.
_ Não posso entender, pois o propósito da experiência inicial era apenas estudar os efeitos da animação suspensa sobre o corpo humano durante cinco anos.
_ É. Mas de repente acordo quarenta ou cinquenta anos depois. O mundo acabou, e eu estou sozinho e quase tão jovem como quando entrei na cápsula.
_ Realmente não dá para entender. Mas na verdade não sei se isso é bom ou ruim, pois quem irá se beneficiar dessa descoberta. Se é que pode ser chamada de descoberta.
Estávamos na verdade, desenvolvendo uma técnica de criogenia, a qual fora testada com outros voluntários por até três anos com sucesso. Quando eles acordavam e voltavam à vida normal, os anos passados dentro das bolhas pareciam não ter afetado a mente nem o corpo deles.
_ Lembro-me bem que entrei na câmara para ficar no máximo cinco anos, não mais. Pelas descobertas nos arquivos da loja de manequins as últimas datas registradas indicam cerca de doze anos após o início de minha hibernação. Essa deve ser a data aproximada da destruição da raça humana.
_ Acordo e o mundo é outro. Não posso entender esta drástica transformação. Não consigo encontrar estas respostas.
_ Eu não pareço o mesmo. Estou sempre confuso em relação à minha idade real e cada vez que tento chegar a uma conclusão a respeito das datas o resultado me assusta.
_ Cinco anos, doze ou cinquenta? Creio que nunca saberei ao certo. Nem mesmo os computadores conseguem me dar uma resposta precisa, pois tive que substituir as baterias internas da maioria deles para que acordassem. O único que funcionava quando acordei deu o último suspiro logo em seguida. Quando o reanimei as datas eram outras.
_ E se não configurei corretamente os dados?
_ Pode ser. Mas e a humanidade, onde foi parar?
_ Como essa cápsula foi tão eficiente durante tantos anos? Gostaria de saber.
_ Seria bom. Mas temo nunca saber exatamente a verdade.
O que mais me intrigava era o fato de acordar ligado a equipamentos que não conhecia totalmente. Praticamente automatizados, e num mundo sem ninguém. Ainda mais, depois de tantos anos.
_ No início do projeto os equipamentos não eram totalmente como os de agora, evidências de que profundas alterações foram introduzidas depois que dormi. Com certeza fui transferido sem meu consentimento.
_ Mas com que propósito? Qual o motivo dessa transferência?
_ Estou feliz com o sucesso do projeto, mas o fato de acordar sozinho me levará com certeza à loucura e certamente não terá nenhum proveito para a humanidade.
O que deveria ser usado para preservar mentes brilhantes e corpos perfeitos, até que pudessem ser curados de enfermidades ainda não dominadas, ou até mesmo alcançar a imortalidade, agora não serve para nada. Tempo precioso perdido, em que eu poderia ter ficado com minha família.
_ Aqui estou eu, praticamente jovem, com mais de cem anos de idade, mas preso a um mundo perdido e totalmente solitário. Para dar início novamente à raça humana teria que ter ficado uma mulher, pelo menos uma.
_ O que terá feito a humanidade para ter esse fim?
_ O que fizeram os burocratas e fabricantes de armas? Eu diria.
_ Temo nunca saber a resposta.
_ E quanto a mim? O que terei feito para merecer esse fim? Melhor seria ter morrido juntamente com os demais.
Em uma coisa eu acreditava. No meio de mais de sete bilhões de pessoas no mundo, assim como eu sobrevivi, outros também deveriam ter sobrevivido. Em algum lugar do mundo com certeza teria mais alguém na minha situação. Outras técnicas, outras situações deveriam ter preservado a vida de outras pessoas assim como a minha e dos animais. Havia muita pesquisa no sentido de possibilitar a sobrevivência humana a algum tipo de catástrofe.
_ Não houve luta, não houve explosões. Os vestígios apontam para isso. De acordo com meus conhecimentos, pelo menos por onde tenho andado, não encontrei ainda vestígios de explosões. Nem grandes nem pequenas.
_ Mas que tipo de arma teria destruído apenas a humanidade?
_ Armas químicas, com certeza.
_ Mas elas foram banidas segundo convenções divulgadas pela ONU há muito anos.
_ As evidências apontam para elas. Não existia nem projeto de outra arma para provocar esse efeito. Pelo menos eu não tinha conhecimento.
_ Bem, a maioria dos governos sempre assinaram outros tratados mas nunca os cumpriram. Deve ter acontecido o mesmo.
_ Com certeza, sim. Respondi com um certo tom de cinismo.
_ Mas, e os animais? Será que os seus sobreviventes aumentaram tanto nesse tempo? Por onde ando vejo tantos e de tantas espécies.
_ Com certeza. Não tem outra alternativa.
Cada vez que me sentava na poltrona das reflexões, na sala de vidro, eu acabava com mais uma crise de insônia e depressão, pois ao invés de encontrar resposta para uma indagação, aparecia mais uma. De tanto pensar e repensar o que havia pensado antes, era tomado por mais um acesso de loucura. As ideias que apareciam eram sempre impossíveis. Dificilmente aparecia uma hipótese, pelo menos, capaz de ser testada e comprovada.
_ Se pelo menos a TV ou o rádio funcionassem para dar notícias de qualquer parte do mundo... Mas, todos os meios de comunicação não funcionam. O que mais falta para eu tentar?
_ É, não tenho mais ideias.
Quanto mais eu pensasse em resposta, uma só coisa vinha à minha mente. Tinha que sair da minha comodidade e ir ao encontro delas e dos possíveis sobreviventes. Se é que eles existiam. Mesmo que tivesse de sair sem destino pelo mundo.
A minha conclusão foi drástica.
_ Mesmo que eu gaste o resto dos meus dias, vou sair viajando até encontrar pessoas, respostas ou mesmo a morte, num evento qualquer. Não tenho mais o que fazer aqui e, talvez em nenhum outro lugar. Mas devo procurar. Devo tentar.
Comecei a amadurecer essa ideia e me preparar para ela pesquisando, estudando traçando hipóteses e fazendo projetos.
Era preciso voltar a um passado remoto e lançar mão de recursos primitivos para essa busca. Papel, lápis, e outros recursos simples. Ou mesmo tábuas de argila se fosse necessário. Ainda tinha mapas e até imagens de satélites que foram impressos antes que os equipamentos chegassem ao fim. Agora tinha minha habilidade, e conhecimentos, mas não tinha os recursos tecnológicos de antes.
_ Farei como puder.
Um dos grande problemas da tecnologia é tê-la e não poder usar porque sempre uma depende de outra. Os recursos tecnológicos são sempre amarrados uns aos outros. No momento em que a cadeia é quebrada voltamos ao ponto zero. Sem energia elétrica não tinha computador e assim não tinha informações. Não tinha uma serie de recursos úteis. Por outro lado, com os anos que passei sozinho, aprendi a me defender e produzir meu sustento usando os recursos disponíveis e, até criado outros a partir dos conhecimentos trazidos e do que ainda era possível aproveitar.
_ Tenho certeza de que posso sair por aí com os recursos que tenho.
_ Querida, estou saindo para o trabalho. Que horas você vai sair hoje? Poderia deixar nossa filha na escola? Estou muito atrasado para uma reunião importante com os patrocinadores e membros do governo.
_ Sim querido. Pode deixar. Responde com voz sonolenta e distante.
Saindo de casa passei pelo primeiro vizinho que olhou para outro lado e não me cumprimentou. O segundo que encontrei me dirigiu um palavrão e se foi. Uma criança com quem trocava sempre um bom dia e um sorriso simpático, atirou uma pedra que quase me acertou. Quando entrei no veículo tive dificuldades em fazê-lo funcionar. A rua estava tão tumultuada em alguns trechos e isolada em outros de maneira que não conseguia avançar. Todos pareciam ir na mesma direção. O veículo parecia não ter força para me levar ao trabalho que por incrível que pareça, ficava no sentido contrário. A certa altura do percurso, lembrei-me que havia esquecido minha pasta com os documentos para serem analisados. Voltar como? Não conseguia pois não tinha como retornar. De repente a rua deixou de existir e eu não tinha como continuar, por mais que me esforçasse. O carro não mais existia e eu tentava avançar saltando sobre buracos, valas escuras, montes de terras e feras invisíveis que tentavam me atacar. Até mesmo um ser horripilante invencível, e imortal me perseguia, sem que eu soubesse o motivo. Eu estava apavorado com o que acontecia. Procurei me esconder por trás de uma construção abandonada, enquanto meu colega de trabalho se escondia em outro lugar. Um raio de luz muito forte foi lançado sobre mim e acordei molhado de suor. Saltei da cama para pegar a vela e o isqueiro que tinha sobre uma mesinha no quarto.
_ Meu Deus, o que foi isso? Que sonho horrível. Meu coração batia com tanta pressa e força que cheguei a pensar que seria o meu fim.
O dia passou sem que eu conseguisse pensar em outra coisa, e nem trabalhar no projeto que tinha em mente, tal era a minha preocupação com o sonho. As cenas eram tão reais que ainda as podia ver na minha frente. Arrepiava toda vez que pensava nos seres estranhos me perseguindo. Aliás, sempre sonhava coisas parecidas e por mais que procurava esquecer no dia seguinte não conseguia. Resolvi tomar nota desses sonhos, na esperança de que servissem para alguma coisa no futuro.
_ Dizem que os sonhos são reflexos do subconsciente. Do que já fizemos ou deixamos de fazer por algum motivo. Dos nossos traumas. Sendo assim eles mostrarão minhas angústias e me orientarão em algum sentido.
_ Espero que sim.
Fiz meu desjejum nessa manhã quando o sol já estava bastante alto no céu azul. Os animais faziam algazarra na porta da garagem, ignorando por completo minha situação. Outros, pelos céus na frente da janela. Possivelmente as feras predadoras estavam caçando seu alimento do dia, espreitando algum outro animal descuidado e inofensivo. A cadeia alimentar é assim mesmo, muito embora eu tenha pena de alguns menos capazes de se protegerem. Somente eu estava realmente sozinho com meus devaneios e perguntas. Minha mente era uma verdadeira pantomima de pensamentos e perguntas sem respostas.
Quando consegui me concentrar para fazer alguma coisa útil, o dia já declinava. Foi quando me levantei e saí da sala de vidro, onde eu gostava tanto.
_ Deixar essa sala e esse conforto, não vai ser fácil. Mas preciso fazer isso, ou então passarei o resto de minha vida acovardado pelas circunstâncias, dentro dessa fortaleza que agora só tem paredes, teto e piso.
_ E de dentro de meu ego amedrontado.
Com os mapas sobre uma mesa, passei novamente a verificar as cidades mais próximas e as dificuldades que possivelmente encontraria para chegar a elas. A mais próxima, com população substancial, fábricas, universidades e potenciais para pesquisas, ficava a mais de duzentos quilômetros de distância, com vários obstáculos pelo caminho. Previa a possibilidade de encontrar pontes caídas, estradas interrompidas por árvores, grandes pedras, deslizamentos e erosões.
_ Quedas de barrancos, e árvores crescidas no meio das estradas serão obstáculos comuns pelo que percebi até agora.
_ O que fazer para contornar esses e outros problemas?
_ Eu ainda não sei.
_ Se você não sabe que soluções deve tomar como é que vai sair de casa? Me perguntei.
_ Eu não sei, velho. Só sei que tenho que ir. De carro, em lombo de cavalos ou à pé, tenho que ir. E vou. Está decidido.
_ Já sei o que vou fazer hoje. Vou à igreja. Sempre que vou àquela igreja volto de lá com as ideias mais claras. Volto mais confortado e animado.
_ Já que serei apenas eu, não há um horário certo para a reunião. Sendo assim, vou a qualquer hora.
Logo depois do desjejum peguei os três manequins que tinha em casa, vestidos para passeio, os coloquei no carro e me dirigi à igreja, que a essa altura já tinha uma trilha traçada pelos pneus da pick-up. Já havia ido lá várias vezes seguidas. Mesmo antes de recolocar as portas, eu sempre a encontrava no mesmo estado, as coisas sempre no mesmo lugar.
Percorri vários quarteirões até chegar próximo, quando verifiquei que outro prédio havia desabado obstruindo a rua por onde deveria passar. Voltei um pouco e peguei outra via até chegar ao meu destino. Em outras visitas eu havia feito uma limpeza na parte externa e na nave principal. Retirei os bancos que haviam sido devorados pelos cupins e limpei os demais. Só restaram os que ainda tinham condições de acomodar alguém. Mantinha-os sempre limpos na medida do possível. Os instrumentos que ainda estavam inteiros, mesmo sem cordas, eu os havia colocado em suas estantes, bem organizados como se esperando pelos músicos. O púlpito foi restaurado por mim e devolvido para o seu devido lugar. Tudo parecia em ordem, pois restaurei também a porta principal e a mantinha fechada para evitar a entrada de aves e animais.
Coloquei os manequins na porta como guardas ou ajudantes do culto e adentrei solenemente. Assentei-me no último banco, nos fundos e cantarolei uma canção. Estava realmente sozinho dentro da nave cheia de bancos e instrumentos. Creio que a canção falava dos cuidados de Deus para com seus filhos.
_ Filhos? Pensei relutante.
Ainda tinha restrições em relação a algumas colocações feitas pela Bíblia, por meus pais e minha esposa. Mas enfim, cantarolei a canção como sabia, ajoelhei e dirigi palavras ao Deus que me deu a oportunidade de estar vivo, com saúde e de poder estar ali. Lembrei-me de agradecer pelos possíveis cento e seis anos de vida. Resolvi pedir que me ajudasse a encontrar outras pessoas e que fossem amistosas, diferentemente dos filmes e da literatura que havia visto no passado. Por mais que relutasse, fiz o meu pedido e saí do templo levando comigo meus companheiros manequins. Evitava olhar nos olhos de Rita quando a carregava até o veículo. Acompanhei a construção pelo retrovisor da pick-up e vi sua torre desabar como em câmera lenta atrás de mim. Parei o carro de supetão, desci e fiquei olhando a poeira levantar-se em coluna e depois dissipar aos poucos levada pelo vento. Como não era tão alta, quase não ouvi barulho. Não quis voltar para ver de perto, pois não encontrei forças para isso. Somente fiquei parado de cabeça abaixada, pensativo, não sei por quanto tempo. Mãos cobrindo o rosto, balancei a cabeça num gesto de dúvida, talvez de incredulidade. Pensei que não suportaria mais uma decepção. Penso que ouvi a voz de Rita me consolando e dizendo. “importa que meus adoradores me adorem em espírito e em verdade”. “Você não precisa de templo para adorar a Deus.” Disse o outro manequim.
Nunca mais voltei a esse lugar. Evitava passar por perto para não me revoltar ainda mais e questionar a Deus, também a este respeito.
_ Não sei se o que ocorreu com a humanidade foi obra de Deus ou consequência das atitudes dos homens. Acredito mais na segunda hipótese.
Era uma das ideias que insistiam em me incomodar o tempo todo.
De certa forma guardava um certo sinal de revolta e questionava Deus pelas coisas ocorridas, muito embora soubesse que era Ele, o único a quem me apegar nos momentos mais difíceis. Buscava Nele as respostas às minhas questões e inquietações.
_ Se Deus me responde ou respondeu a alguma de minhas questões fundamentais eu não consegui até agora entender o que Ele disse. Bem que Ele poderia falar no meu idioma.
_ Ora essa!
A questão não era bem assim, pois o meu nível de solidão era tão elevado e já havia se passado tanto tempo que mesmo aparecendo alguém da minha espécie eu não o reconheceria. Com certeza. Talvez não soubesse mais como era um ser humano em toda a sua essência.
_ É. Estou perdendo minha identidade. Aliás para que serve mesmo a identidade se sou único no mundo. Só sei que sou humano, porque ainda penso, mas não sou igual a ninguém mais.
_ De qualquer forma o princípio da identidade ainda continua. Sou igual a mim mesmo.
Não deixava de pensar como cientista e profissional das ciências exatas.
_ A situação é mesmo crítica meu velho.
_ E você ainda brinca?
_ Menos mal.
Pelo que parece, não há possibilidade de surgirem outros a menos que aconteça um milagre. Bom seria se isso acontecesse e eu pelo menos ganhasse uma companheira. Uma outra Eva.
_ Parece que o maior milagre até agora é eu me encontrar vivo. Sozinho, mas vivo. Velho mas com aparência de jovem.
_ É.
_ Se ficar louco serei eu mesmo. Se continuar sóbrio ainda serei eu. Com quem me comparar para definir uma coisa ou outra. Não tenho lei para transgredir, sendo assim não posso nem mesmo ser um assassino, ladrão, agressor, adúltero ou pederasta. Não tenho nem mesmo como ser um marginal. Até dessas coisas me sinto solitário.
_ Se eu coabitar com uma boneca serei adúltero?
_ Santo? Também não serei, pois não tenho leis morais ou espirituais para cumprir ou transgredir.
_ Ou posso? Bem, creio que pelo menos algumas leis espirituais poderei quebrar.
_ Filosofar? Para quem, ou para que? Se chegar à conclusão de que não existo devo acreditar em mim, mas não há árbitro algum. O que eu disser estará dito. O que eu fizer estará feito. Apesar das limitações do que posso fazer. Não há ninguém para me julgar. Não há ninguém para me seguir ou me contestar.
_ Ser soberano, déspota, bonachão, louco, sobre quem? Não há uma mulher para cortejar com meus predicados e conquistas.
_ Chega de bobagens meu velho. Suas ideias idiotas não o levarão a lugar algum.
_ Verdade, vou cuidar das minhas vacas, produzir mais queijos para a viagem. Vou viver apenas.
_ Devo voltar àquela loja de produtos de sobrevivência e ver se encontro fórmulas para conservar algum tipo de alimento por tempo prolongado, assim poderei levar víveres, até encontrar outros meios de sobrevivência.
_ Devo levar o que conseguir colocar no carro.
_ Mas se não levar vamos encontrar pelo caminho. Se vamos. Da mesma maneira que sobrevivo aqui, sobreviverei onde eu estiver.
_ Pelo menos isso é bom.
Capítulo 18
_ Posso até me arrepender de sair nessa aventura, como posso me arrepender se não sair. Então vou, mesmo se tiver que me arrepender. Dizem que é melhor se arrepender por fazer do que por não fazer.
_ Ficar nessa mesma condição todos os dias, ano após ano, e acima de tudo, lastimando algo sem retorno, não vai me levar a lugar algum. Disse em meus constantes monólogos enquanto estava no alto da torre sondando as possibilidades da viagem.
_ Uma coisa é certo: Se acontecer alguma impossibilidade no caminho, ainda tenho a opção de voltar pelo mesmo caminho. Com certeza a fortaleza estará no mesmo lugar, e creio, nas mesmas condições. Basta que ao sair, desligue tudo, feche as portas sem me despedir.
Não queria, de maneira alguma, trabalhar pensando na possibilidade de não dar certo. Queria pensar de maneira positiva e lutar para contornar os problemas que porventura surgissem.
Assim preparei o veículo para levar o máximo de alimento não perecível, aliás, esta deveria ser minha menor preocupação, pois até onde tinha ido antes, sempre encontrava animais para serem abatidos para servir de alimento. Plantas frutíferas em abundância por onde quer que ia. De qualquer forma não poderia deixar de levar carne seca para muitos dias sem estragar. Arroz, feijão, frutas desidratadas, sal, rapadura feita por mim mesmo, e ovos em quantidade suficiente para algum tempo. Todos esses produtos estando bem acondicionados podem durar anos. Queijo curado também pode durar muito.
_ Um dia tudo isto acabará de qualquer forma. Não tenho que me preocupar.
Pensei a princípio em levar uma das vacas, mas isso seria muita carga para a pick-up uma vez que só dispunha deste veículo e teria muita coisa para enchê-la. Ainda tinha que arrastar uma carreta com o trailer, onde estava minha cama e objetos pessoais, além de compartimento para os animais de carga. O cavalo Murici e a égua Maracujá.
O sol ainda não tinha aparecido no horizonte quando cerrei as portas da garagem, abri as porteiras do aprisco para dar liberdade aos animais domesticados, e iniciei a minha viagem.
_ Viagem. Pensei em voz alta.
_ Despedir? De quem mesmo. Até minha pata se foi um dia, então eu também poderei partir.
_ Sentir saudades?
_ De quem mesmo?
Da fortaleza, da segurança e o relativo conforto. As vacas leiteiras e alguns patos com sua carne fresca e seus ovos deliciosos. Os manequins e nada mais. De qualquer forma meu coração ficou apertado e condoído como se despedisse de um ente querido partindo para uma terra distante.
_ Porque será que o homem tem tanta dificuldade de romper com a situação presente? Seja ela boa ou ruim.
Levantei a cabeça, segurei o nó na garganta, prendi a língua no céu da boca e andei em direção ao veículo que já estava estacionado na frente do prédio. Quando já me encontrava a uma certa distância, olhei pelo retrovisor e vi a fortaleza ficando cada vez menor até sumir por trás das árvores. As vacas e os patos pareciam me acompanhar até a próxima esquina.
_ Droga, gostaria de não partir. Sempre tive dificuldades com esse momento. Agora não dá mais. Tenho outras lutas, e possivelmente outras conquistas.
A direção que escolhi foi para o leste, ou seja, no sentido da cidade mais próxima onde poderia encontrar as instalações de uma conceituada faculdade de onde saíram vários cientistas de renome. Lá, esperava encontrar alguma resposta pelo menos. A essa altura, não esperava tanto encontrar pessoas. Certamente me contentaria com respostas.
A rodovia, antes entulhada de veículos de vários modelos e tamanhos, sempre num frenesi nunca sonhado na idade média, agora não passava de uma trilha onde as sementes das árvores tiveram apenas mais dificuldade para germinar e se desenvolverem. Estava cheia de capins e pequenos arbustos. A não ser pela presença de troncos de árvores que cresceram nas marginais e depois caíram, além de outros obstáculos variados e poças de água. Mesmo assim, o veículo com pneus de silicone compacto avançava lentamente. Como não eram bem refrigerados, corriam o risco de super aquecimento quando submetidos a velocidades mais altas. Suportavam bem o peso e as desigualdades do terreno, porém ofereciam pouco conforto no que diz respeito à suspensão. Nos locais barrentos, eu incorporava a eles uma rede de correntes, e avançava com velocidade muito baixa. Sempre com muito cuidado para não me envolver em problemas mais sérios. Ao meio dia, quando a fome apertou, eu havia distanciado do ponto de origem cerca de vinte e dois quilômetros apenas. A maior parte dessa estrada já tinha sido usada em viagens de reconhecimento anteriores não oferecendo maiores riscos. Mesmo assim, mal havia saído dos limites da cidade.
_Bem, é hora de preparar uma refeição e dar algum descanso para Murici e Maracujá que não estão acostumados a ser transportados.
Mal parei o veículo e desliguei o motor e os animais de montaria ficaram tão impacientes, relinchando e tentando saltar. Apreensivo, fiquei atento para o que poderia estar acontecendo. Era difícil ver alguma coisa, pois a vegetação marginal do lado esquerdo era tão fechada que o dia parecia sem sol. A sombra das árvores favorecia o local onde estacionei, muito embora fosse meio dia. De um lado a sombra era favorável, do outro o perigo pela pouca visibilidade. Não me preocupei tanto, pois o local onde os animais estavam era bem fechado e nenhum predador ousaria atacá-los. Não teriam sucesso algum. Somente depois de alguns instantes percebi a presença de outros equinos, e lembrei que tinham senso de percepção bastante apurado, e podiam sentir a presença de outros animais e reconhecê-los à distância. Acontece que um dos meus animais era macho, e poderia haver fêmeas no cio por perto. Ele assim deve ter sido despertado pelo cheiro delas e exaltou-se. Com um disparo aleatório os animais se foram e os meus ficaram mais calmos me permitindo soltá-los parcialmente por uma hora. Amarrados por cordas compridas eles podiam pastar, beber e relaxar à vontade.
Tomando os cuidados necessários, passei para o trailer onde se encontravam as provisões emergências e um pequeno fogareiro à álcool. Aliás, aprendi a destilar álcool a partir de alguns tipos de grãos e mesmo do caldo de cana, que era muito usado, inclusive para produzir rapadura. Assim como aprendi a produzir a pólvora e outros utilitários. Levava uma pequena destilaria para suprir algumas emergências. Por precaução levava comigo uma porção pronta em uma embalagem bem segura. Levava também um fogareiro a lenha que servia nos momentos em que o álcool não funcionava muito bem. Minhas armas de fogo estavam sempre na mão ou na cintura presas a um coldre e um cinto adequado. Toda precaução me parecia pouca. Um bom facão também estava sempre na mão ou na cintura.
Os cães que viajavam na cabine da pick-up saíram para dar um passeio pelas redondezas. Foram domesticados mas não esqueceram a capacidade de buscar seu alimento entre os pequenos roedores, abundantes na vegetação baixa dos leitos das estradas. Livres como eram, adentraram na mata sempre latindo para algum animal que encontravam. Aprendi inclusive a reconhecer vários animais acuados por eles, em função do tom, da intensidade e constância dos latidos dos mesmos. A fêmea já havia parido duas vezes desde que a tomei, produzindo ninhadas de belos filhotes, mas deixava que crescessem livres de maneiras que preferiam se embrenhar na mata e acompanhar uma manada dos que não foram domesticados. Apenas os dois mais velhos eram fiéis a mim e me acompanhavam onde quer que eu ia. Um dia teria que domesticar outros, pois na falta de um dos velhos, eles os substituiriam.
Meu almoço foi rápido, mas tinha o hábito de descansar por alguns minutos após as refeições e o fiz num estrado que trazia preso sobre o trailer. Lá eu colocava um colchão de capim forrado com um lençol. A sombra das árvores proporcionava um ambiente muito agradável e como tudo era favorável, adormeci até que um raio de sol atravessou uma brecha na copa das árvores e aqueceu meu rosto.
_ Puxa vida, é hora de partir.
_ Mas para que a pressa. Tenho todo o tempo do mundo para ir não sei aonde, encontrar não sei o que, também sem propósito definido. Brinquei com minhas colocações e sorri não sei para quem.
Recolhi os animais de montaria ao trailer e chamei os cachorros para reiniciarmos a viagem.
Mal saímos do local, e o sol se escondeu por trás de densas nuvens fazendo uma sombra intensa e harmoniosa. Tornou-se um ambiente e momento de imensa paz no meu coração. A solidão que sempre me atormentava parecia ausente, e comecei a cantarolar algumas canções que gostava. Enquanto o veículo avançava lentamente, balançando por causa das imperfeições da estrada, eu cantava para os cachorros que, satisfeitos, demonstravam sua alegria fazendo algazarra e abanando as caudas. Eu acompanhava o ritmo das músicas com a cabeça. Estava em um verdadeiro transe que durou a tarde toda enquanto eu dirigia minha pick-up estrada a fora.
Pouco a pouco os pensamentos sobre as minhas questões começaram a invadir minha mente novamente. Enquanto o sol descambava por trás da vegetação, às vezes eu o via pelo retrovisor e ia matutando no que iria encontrar pela frente. Confesso que muitas vezes tive vontade de dar meia volta e retornar para a fortaleza, mas tinha um propósito e iria cumpri-lo de qualquer jeito.
_ Não importa o resultado dessa busca. Vou até onde for possível. Vou, e se não tiver sucesso não ficarei me reprovando por não haver tentado. Se tiver sucesso e encontrar pessoas ou pelo menos respostas, ficarei satisfeito. Pena que não tenho com quem discutir essa questão. Assim terei que tomar minhas decisões sem consultar quem quer que seja.
_ Quieto, Fedegoso, você está me atrapalhando. Você também, Biloca. O que vocês pensam que estão fazendo?
Eles olhavam na direção do vidro do carro do lado do passageiro e de tão agitados babavam nos bancos onde estavam.
_ Droga, o que está acontecendo com esses animais? Fiquem quietos, por favor.
Por mais que tentasse ver o que estava acontecendo do lado de fora do corro eu não conseguia. Tudo parecia normal, mas os cachorros estavam cada vez mais agitados. Avançávamos lentamente em função das condições da estrada, pois tive temor em parar para averiguar e enfrentar um mal maior.
_Por que será que os animais de montaria estão quietos? Se fosse algum predador eles certamente estariam agitados também.
_ Meu Deus, o que estará acontecendo?
A agitação era tanta que tive que parar o veículo. Eles só não saltaram e saíram correndo porque o vidro da porta estava fechado. Sempre tomando os cuidados necessários fiquei olhando para os lados, averiguando. Havia movimentação de pessoas por todos os lados. Pessoas totalmente indiferentes à minha apreensão. Indiferentes com o que estava acontecendo. Aviões de passageiros parecendo gaiolas de animais aterrissavam numa pista enorme e cheia de luzes estranhas. Outros se preparavam para levantar voo fazendo rufar suas poderosas turbinas. Muitas pessoas, inclusive minha esposa e filha, estavam na fila de embarque e eu tentava chegar onde elas estavam, mas alguma coisa me impedia de continuar. Uma força estranha me segurava e por mais que eu esforçasse não conseguia chegar perto delas. Alguém as arrastava pelos braços e eu nada podia fazer. Por mais desesperado que ficava e gritava o nome delas nada acontecia. Ainda estava do lado de fora de um muro de proteção do aeroporto, quando percebi uma estranha aeronave se aproximar a oeste. Tinha um aspecto ameaçador, se é que se pode falar assim a respeito de uma aeronave. Não via seus tripulantes mas sabia que estavam no seu interior. Não sabia quem oferecia maior perigo, se eles ou a própria nave. Outras vinham após essa, e não me pareciam nada amistosas. A impressão que eu tinha era de que vigiavam, a mim ou as outras pessoas. Procurei me esconder dentro de casa mas sentia que nada adiantaria pois elas me encontrariam. Uma era bastante grande e de repente perdeu o equilíbrio e iniciou uma queda livre em direção à casa de meus pais até que na sua inércia atravessou um bosque e caiu produzindo uma nuvem de fumaça avermelhada com pontos brilhantes que pareciam explodir no ar. As outras duas naves ainda me perseguiam dando voltas por sobre o local onde eu estava. Meu coração disparou e quando acordei estava molhado de suor, muito embora fizesse até um pouco de frio para os meus padrões de tolerância às mudanças de temperatura.
_ Caramba, por que será que sempre sonho com essas naves estranhas me perseguindo? Passei o resto da noite acordado, muito embora o silêncio fosse praticamente absoluto.
Somente ouvia algumas corujas, pássaro de hábitos noturnos, piando suas lamentações numa noite de luar radiante e cheio de ausência de outros seres humanos. Procuravam por roedores para se alimentarem. De vez em quando os animais de montaria assopravam pelas narinas como de costume balançado as cabeças. Os dois cães dormiam silenciosamente debaixo do trailer.
Muito embora a onda de medo me fizesse arrepiar os cabelos, fiquei mais calmo quando percebi o silêncio e verifiquei que tudo estava normal, inclusive os cachorros. As estrelas no céu anunciavam paz e, apesar de serem incontáveis pareciam solitárias em função das distâncias entre elas.
_ Quando cachorros dormem tranquilos é porque tudo está tranquilo. Disse tentando me acalmar.
_ Bem... no céu não há nenhum vestígio de nave espacial.
Mesmo assim não conseguia pegar no sono de novo. Por mais que a natureza demonstrasse, não sentia paz.
Sempre que parava por longas horas, seja para dormir ou fazer qualquer coisa que consumia mais tempo do que o costume, montava acampamento e um sistema de alarme que sempre trazia comigo. Constituía de dois fios de nylon transparente, tipo linha de pescar, formando um círculo a uma distância segura do ponto central onde o veículo ficava. Era sustentada por estacas de metal pontiagudas para facilitar serem cravadas no solo. Depois eram ligadas a um interruptor e este a uma sirene e algumas lâmpadas que me alertavam e assustavam os prováveis invasores. Durante o dia, é claro eu desligava as lâmpadas deixando apenas a sirene, que por sinal era bastante escandalosa. Seu som podia ser ouvido a quilômetros de distância. Dessa forma, se algum invasor encostasse em uma das linhas o alarme disparava. Quando desmontava o acampamento, recolhia tudo e guardava para a próxima necessidade. Por segurança eu dormia no trailer ou sobre ele nas noites muito quentes.
Não foi uma nem duas vezes que ouvi o som da sirene acionada por algum bicho mal intencionado tentando invadir meu território. Onças, cachorros do mato, lobos e outros. Muitas vezes algum animal desavisado se enroscava na linha aumentando o trabalho para desmontar o sistema. Mas o certo é que funcionava. Meus animais sempre ficavam dentro do perímetro e quando os cães saíam fora dele eu próprio me encarregava de desligar para que fossem procurar alimento. Sendo a área delimitada bastante ampla de acordo com as necessidades, tinha alimento suficiente para o cavalo e a égua. Eles pastavam amarrados para não saírem para longe.
Quando faltava carne para o meu alimento e dos cães, eu deixava de montar o sistema de alarme e simplesmente prendia os cachorros para ficarem quietos até que eu desse a ordem de ataque. Assim, eu ficava em uma cadeira estrategicamente colocada no teto do trailer à espreita de algum animal interessante. Eu vestia uma roupa camuflada e simplesmente esperava que algum cervo, coelho, pato ou outro animal de carne limpa aproximasse para que o abatesse com uma de minhas armas.
Pelo menos carne nunca me faltava. Proteínas, em abundância, pelo menos nessa região. Por outro lado, sempre encontrava frutas quando passava por algum pomar abandonado. Muito embora, pelo passar dos anos, as características de muitas frutas tivessem mudado um pouco, elas ainda eram abundantes no meio da vegetação nativa que de maneira espontânea ia recompondo o cenário. Agora, certamente as matas estavam recheadas de bananeiras, mangueiras, abacateiros, coqueiros e outras árvores frutíferas tão apreciadas. Sempre que avistava uma dessas com suas delícias, eu parava e com todo cuidado procurava por algumas que os animais e aves não tivessem atacado. Muitas vezes no descuido e vontade de colher algumas delas, fui picado por marimbondos ferozes que defendiam sua alimentação e sua casa que era construída numa das galhas. Encontrei muitas vezes, cobras venenosas que gostavam de ficar debaixo dessas frutíferas aguardando pequenos animais que vinham buscar seu alimento e acabavam se tornando vítimas. Encontrava várias delas e como já sabia que poderiam estar nesse cenário, eu andava com muito cuidado, sempre com uma vara na mão removendo a vegetação antes de dar o próximo passo. Ainda calçava botas de couro de canos bem altos. Dessa forma, até o presente, ainda não sido picado por nenhuma delas. E nem poderia pois não tinha soro contra seu veneno. Na verdade, aprendi enquanto tinha arquivos disponíveis, a produzir chás e vários medicamentos fitoterápicos para várias moléstias simples, dos quais poucas vezes precisei. Quanto a problemas mais sérios, apenas torcia para que não me surpreendessem, pois não tinha o mínimo recurso para enfrentá-los.
Na verdade essa viagem estava se tornando interessante, pois sempre surgiam novidades e desafios para me mostrar mais uma etapa do que me aguardava pela frente.
_ Até aqui estou indo bem. Espero que continue dessa maneira até que eu encontre o meu destino. Disse depois de uma vistoria em torno do veículo que se encontrava parado no alto de uma montanha. Era um lugar escarpado e limpo que me permitia uma bela visão de um vale muito verde, cortado por por um caudaloso rio pelo qual qual, certamente teria que passar.
_Quanto será que falta para a próxima cidade? Consultei o mapa rapidamente e continuei. Não muito.
_ Cidade?
Capítulo 19
Como indicavam os mapas, havia duas pontes na estrada por onde deveria passar para chegar ao meu primeiro destino. Não eram grandes pontes, porém passavam dos 50 metros de vão.
Os rios eram pequenos, porém com caixas bem expressivas apresentando barrancos muito altos, e um considerável volume de água. Vários córregos e vertentes também se tornariam empecilhos a minha continuação caso houvesse algum problema com os seus aterros e bueiros.
_ Talvez hajam problemas com as cabeças das pontes ou dos bueiros, defeito muito comum em rodovias e estradas desprovidas de manutenção constante.
_ Queira Deus que problemas como esses não venham se tornar empecilhos à minha passagem.
Cheguei a essas conclusões analisando os mapas e as imagens de satélite, e procurando estratégias para superar esses e outros obstáculos caso existissem. Também havia passado por essa estrada no passado, em outras circunstâncias. Lembrei-me disso muito embora vagamente.
_ Bem, devo deixar para pensar nos problemas quando eles surgirem, já que não tenho como prevê-los e nem como evitá-los. Mas enfrentar de frente cada um deles no momento na hora certa. Não quero criar problemas antes da hora.
_ O que acontecerá se algum trecho da rodovia estiver danificado por erosões, queda de barreiras e árvores muito grandes caídas na pista?
Por menos que quisesse, essas perguntas, vinham sempre à minha mente. Parecia inevitável.
_ Bem, tenho alguns recursos, mas devo contar com a sorte em muitas situações, já que eles são muito limitados. De qualquer forma, ainda existem os animais de montaria para auxiliarem. Quando não houver outro jeito devo apelar para eles. Foi para isso que treinei os mesmos a puxar o veículo em situações embaraçosas.
Não demorou para que chegasse perto de uma das elevações mais acentuadas do caminho. Era parte de uma serra onde a estrada serpenteava por entre morros e encostas. Depressões e cursos de rios profundos. Em situações normais, esses não seriam problemas para qualquer veículo moderno, mas na minha, exigia cuidados especiais. Estradas destruídas e veículo não muito adequado.
Antes de iniciar a subida da serra, tive que pernoitar mais uma vez.
_ A viagem não rende. Poderia estar mais adiantado, mas com essas condições devo me contentar com o possível.
_ Afinal, minha solidão me persegue em qualquer lugar que eu esteja. Eu já estava descansando sobre um colchonete depositado no teto do trailer.
Passei por trechos bem críticos, com vegetação bastante alta invadindo a pista ao ponto de ter que remover pedras que rolaram das encostas, troncos de árvores e até mesmo de roçar parte da vegetação para visualizar o que sobrou do asfalto. Em determinado aterro meu coração disparou quando percebi que dos 12 metros de pista só restaram pouco mais de três para passar com o veículo arrastando um trailer. O restante da estrada foi levada pela enxurrada, formando enormes erosões ladeira abaixo. Se olhasse muito para o problema tenho certeza de que desistiria. Coloquei pedras para tapar alguns dos maiores buracos e segui em frente após passar por esse trecho da estrada.
_ Afinal, aqui estou eu, minha pick-up e meus animais. Devo continuar.
_ Bem, amanhã cedo devo enfrentar esse aclive que parece normal, porém não sei o que vou encontrar depois de cada curva e cada elevação. Todo cuidado deve ser tomado.
A vegetação cobria a estrada de sorte que não conseguia ver o que era asfalto, além de dez metros em muitos trechos.
_ Seja o que Deus quiser.
Viajava sempre fora da temporada de chuvas para encontrar estradas mais secas e menos escorregadias. Com muita vegetação entre os pneus e o asfalto, ou o que restou dele, há sempre risco de que o veículo escorregue. Em especial pela manhã quando o sereno da noite deixa a vegetação mais úmida.
O acampamento foi montado novamente, mesmo porque antes de continuar a viagem, pretendia subir à cavalo pelo menos parte da estrada onde o aclive era mais acentuado. Teria que ver de perto as condições da pista antes de colocar a pick-up em movimento. Isso também daria tempo para que o orvalho da noite secasse com o sol e os ventos da manhã. Capins em si não constituíam problemas, mas molhados, sim. Seria como se tivesse chovido. Aprendi isso nas primeiras vezes que saí com o veículo.
_Para subir à cavalo até o topo da ladeira e depois descer, gastarei pelo menos duas horas, o suficiente para que o orvalho seque bem. É isto que vou fazer.
Em determinado ponto comecei a sentir vertigem quando olhei ribanceira abaixo. No fundo do vale as árvores pareciam arbustos vistos de cima. A cena era linda, mas assustadora. Restos de guardrails na margem da rodovia faziam no passado a proteção para os motoristas mais afoitos, ou os veículos em condições deficientes. Recostado neles em dado momento pensei ter visto uma casinha com currais e gado. Galinhas ciscando e bicando em busca de alimento para si e para os filhotes. Pessoas agitadas correndo de um lado para o outro arrebanhando a manada e tentando fazê-la entrar no curral maior. Uma tênue coluna de fumaça subia de uma pequena chaminé. Pude ver uma senhora com avental amarrado na cintura e um pedaço de pano cobrindo e segurando os cabelos, assoprando na boca do fogão de lenha para acender o fogo. Uma chaleira sobre a chapa pronta para passar o café da manhã para os trabalhadores. Um caldeirão de ferro preto no crivo de trás continha o feijão que passou a noite sobre as últimas ondas de calor da lenha que sobrou do dia anterior. Fiquei imóvel diante da cena, e foi sem querer que saí do transe e do lugar. Independente da visão, o local era realmente muito belo. Voltei para o mundo real e senti aquela solidão em face da amplitude do mesmo. Era como se eu não existisse de tão pequeno. A visão era muito ampla, pois estava quase no topo de um morro muito alto. Um vale verde cortado por um rio e pequenos cursos d'água, rodeado por montanhas que de tão distantes eram quase azuis. De lá minha visão era privilegiada, mas tinha que voltar para a estrada e continuar minha inspeção ou não poderia seguir viagem naquele dia.
_ Droga, gostaria de ficar aqui sonhando na esperança de nunca acordar, até fazer parte desse cenário monótono, mas real. E muito lindo.
No passado minha vida era puramente urbana e pouco entendia de vida rural e suas atividades. O que sabia então, sobre sobrevivência no mato foi aprendido nos arquivos digitais e por experiência pessoal nos últimos anos passados perto da fortaleza. Posso dizer que fui forçado a aprender. Agora queria a qualquer preço fazer parte de um cenário real, com pessoas reais, mesmo que fosse no meio da floresta.
_ Chega de sonhar, meu velho. Não adianta ficar macerando a dor da solidão, pois sua vida agora é real, mas é outra, e bem diferente.
_ Com certeza. Vamos embora.
Meu cavalo saiu trotando ladeira abaixo em direção ao acampamento.
Quando cheguei no alto do morro com a pick-up o dia já declinava. Os obstáculos foram vencidos com muito trabalho mas com sucesso. Tapei buracos, cortei árvores caídas e as removi. Retirei pedras para melhorar as condições de trechos da pista e as coloquei em buracos maiores. Muitas vezes as rolava com auxílio de uma alavanca. Outras vezes as carregava nos braços ou em um carrinho de mão.
_ Vou preparar um bom café da manhã antes de continuar minha viagem. Um novo dia ameaçava nascer.
Afinal, descer a montanha era no momento, tão complicado quanto subir. Iria descobrir em breve.
_ Acho bom mesmo preparar esse café. Estamos com fome. Disse o cão macho para a fêmea, expressando-se com uma lambida no focinho.
Estava tenso pelos acontecimentos, e faminto, tanto que me esqueci de armar o sistema de alarme. Também o local onde parei o veículo era bastante diferente. De um lado da rodovia, um corte na serra formava uma encosta de mais de vinte metros de altura. Do outro lado o abismo, sei lá com quantos metros de profundidade. Para a frente e para trás o que sobrou da estrada. Parte com o capim amassado pelas rodagens do veículo e parte ainda imponente teimava em colocar empecilhos à minha viagem.
_ Sou mesmo um teimoso. Um persistente para enfrentar essa situação.
_ É. Viver e sobreviver nessas condições, por si só já constitui teimosia. Mas o que fazer?
Sempre fui determinado, e pequenas coisas não me assustavam. Quando metia uma coisa na cabeça era difícil demover dela. Ia em frente até ver algum resultado. Positivo ou negativo. Se negativo, não chorava, nem desistia. Apenas mudava de tática ou de projeto. Quando me apresentei para entrar na cápsula todos foram contra. Meus pais, esposa, filha e alguns colegas de trabalho. Fui convincente ao ponto de aceitarem. Tinha argumentos prontos para todas as situações. Minha esposa e minha filha ficaram chorando juntamente com meu pai. Minha mãe parecia não ter mais lágrimas, ou me apoiava em silêncio.
Disse a eles que, de um jeito ou de outro eu me tornaria um herói, e estava pronto para isso. Poderia salvar a vida de muita gente. Dar esperanças à uma sociedade que perdia um cérebro genial e repleto de conhecimento a cada momento.
Afinal, o tudo que um gênio descobre e aprende, de uma forma ou de outra fica perdido quando morre. As experiências com a bolha, poderiam no futuro, quando aperfeiçoadas, preservar essas informações até o momento em que a própria ciência descobrisse uma maneira de reaproveitá-las melhor.
Cheguei a uns duzentos metros da primeira ponte. Já havia decidido que montaria acampamento nas suas proximidades para dar tempo de fazer uma exploração completa em suas estruturas. Teria que estudar bem suas condições antes de iniciar uma travessia. Não era muito tarde, e o sol ainda estava a um quarto do seu percurso pelo céu. Fazia muito calor pois o céu estava limpo e com um azul tão intenso que doía nos olhos. Os cachorros cansados com suas línguas para fora da boca, saltaram da cabine assim que abri a porta. Saíram rápido, abanando seus rabos e balançando freneticamente seus corpos peludos. Babas voaram de suas bocas e já saíram farejando algum animal pelo meio da vegetação que no local não era bastante alta.
_ Parece muito com o cerrado stricto sensu. Menos mal, pois a vegetação mais baixa oferece melhores condições de visibilidade.
_Muito embora já estejamos sobre a zona de influência do rio onde a vegetação é mais espessa e mais volumosa.
Montei o sistema de segurança, inclusive com as lâmpadas, e fiz os testes costumeiros para ver se estava ativa e eficiente. Soltei os animais de montaria para alimentarem e dei água para dessedentação. Os cães a essa altura estavam longe latindo e correndo atrás não sei do quê. Geralmente eles não demoravam muito e logo voltavam, às vezes trazendo algum animal pequeno de presente. Era sempre assim, quando saíam, mostravam toda sua alegria.
Como era o mês de junho, já faziam quase sessenta dias sem cair uma gota de chuva na região. Sendo assim a estrada estava bem seca nas partes mais altas. Somente nas áreas baixas é que se via alguma umidade.
_ Com toda essa vegetação rasteira cobrindo e fazendo sombra sobre o piso do asfalto, a umidade tende a se conservar por mais tempo. Pensei raspando o pé direito sobre a vegetação para ver o asfalto.
_ Isso há de ser nada. Venceremos mais essa etapa. Disse para os animais de montaria que nesse instante estavam na cocheira.
Do outro lado do rio havia casas, ou escombros de casas, e veículos abandonados no meio da estrada e das ruas, como em todos os lugares por onde eu passei. Carcaças de humanos e de animais. Como sempre, as árvores já haviam crescido cobrido a maior parte da tragédia e da paisagem. Ao longo da estrada um dos grandes problemas encontrados, eram os veículos abandonados de qualquer maneira. Uns queimados pelo sol, outros cobertos pela vegetação. Alguns em posições e estados sugestivos de terem se envolvido em acidentes violentos. Batidas, saídas de pista, tombamentos. Outros abandonados de qualquer maneira. Construções em ruínas e postes da rede de iluminação caídos no leito da pista. Postos de abastecimento de combustível em igual estado de abandono. Alguns que ainda preservavam a cobertura em estado razoável, permitiram que eu abrigasse sob eles, muito embora temendo um acidente.
Como sempre fazia, tinha uma bomba improvisada para tirar combustível dos depósitos e encher os meus galões. Depois, por descanso retirava a água que acumulava na parte inferior do combustível usando uma mangueira fina. Depois de vários procedimentos separava a borra que se formava no fundo e o combustível podia ser usado até mesmo no veículo. Às vezes com falhas na combustão, mas era assim que eu usava sempre.
Iniciei a inspeção na ponte, pela cabeça do lado em que montei o acampamento. Observei bem com a luneta a partir de um ponto estratégico em que podia ver o vão central, em busca de possíveis sinais de desgaste acentuado. Com uma foice bem afiada iniciei uma limpeza cortando a vegetação nas laterais para ver melhor as condições do concreto e da ferragem aparente. Algumas espécies de vegetação rasteira, sempre aproveitavam as trincas no concreto e iniciavam uma verdadeira colônia no local. Em muitos locais ela avançava por vários metros, apodrecendo o material da camada superior. Caminhei por ela com cuidado, removendo partes da vegetação e os detritos acumulados, socando o concreto com um peso de 6 quilos que havia preparado, e assim em poucas horas cheguei do outro lado do rio. Desci com muita dificuldade para a parte inferior verificando que a estrutura estava aparentemente boa. De acordo com um diagnóstico de leigo no assunto, estava em boas condições.
_ É claro que o concreto em muitos pontos está deteriorado a ponto de mostrar parte da ferragem no interior das estruturas.
_ Nada comprometedor. Pensei ao terminar a inspeção dos dois lados do rio e no vão central.
No meu ponto de vista, os pontos críticos eram as cabeças, quer dizer, as extremidades da ponte, onde o concreto encontra-se com o asfalto dos aterros. As juntas de dilatação eram outro problema. Permitiam infiltrações por estarem desprovidas de manutenção adequada, abrindo espaço para o nascimento e crescimento de arbustos. Nesse caso, as raízes desses arbustos lentamente romperam partes no concreto para avançar cada vez mais fundo em busca de umidade e nutrientes. Gastei o dia todo nessa inspeção, mas para a minha segurança eu ficaria mais dias fazendo isso caso julgasse necessário.
Na segunda ponte, o procedimento foi o mesmo e com praticamente os mesmos problemas. Apenas no aterro na margem oeste do rio, que era um pouco mais extenso, apresentaram alguns problemas extras. Tiveram de ser resolvidos até a extremidade da referida cabeça. Erosões em trechos relativamente longos. Nesta, gastei dois dias a mais, corrigindo os problemas citados. Tive que remover terra, pedras e troncos com a ajuda dos animais de montaria e demais recursos que tinha disponível. Muitos buracos tiveram que ser preenchidos para permitir a passagem da pick-up e do trailer.
A água do rio estava tão limpa, que do alto da ponte, eu via os peixes nadando por entre as pedras. Parecia não haver mais do que alguns decímetros de lençol d’água. Quando vi os peixes nadando e saltando, resolvi pescar alguns para o meu cardápio. Gostava muito de peixe e sempre que tinha oportunidade os pescava para um bom assado na chapa, no espeto ou mesmo, diretamente na brasa. Rica fonte de proteínas e de gordura, era um prato farto em qualquer curso d’água, agora que não havia mais pesca predatória. Às vezes retirava o filé do pescado e salgava bem, depois o expunha ao sol ou mesmo à fumaça para defumar e poder guardar por alguns dias. Quando morava com minha família, fazer isso em casa era anti-higiênico e geralmente as pessoas não gostavam. Preferiam comprar tudo pronto na loja de congelados.
_Agora eu mesmo aprendi a defumar, e confesso que o faço muito bem bem.
_Creio que se minha esposa, cheia de cuidados, visse isso, certamente reprovaria.
_ Minha filha não vai comer isso. De jeito nenhum. Diria ela.
As duas travessias nas pontes se deram de maneira normal e bem sucedida. Com algumas precauções, por exemplo, passava primeiro o veículo arrastando o trailer vazio, depois buscava os animais com algumas cargas nos lombos. Isso para não pesar tanto. Também procurava não uniformizar muito a marcha do motor, pois isso poderia, no meu entender, provocaria reverberações nas ondas de choque sobre a estrutura oca do concreto bastante danificado.
Com essa primeira etapa da estrada, os diversos problemas que enfrentei, estive observando tudo com cuidado e procurando tirar lições para as próximas etapas. Atravessar essas primeiras pontes extensas, foram de vital importância, pois aprendi a identificar uma série de problemas em estruturas de concreto.
_ Nas próximas pontes saberei identificar os problemas com maior facilidade.
Depois de trinta e seis dias na estrada, avistei algumas torres de energia elétrica com iluminarias retorcidas e caídas. Algumas de concreto, bem grossas, outras de metal, trançadas por hastes que iam se cruzando até a ponta. A maioria delas, estava também tocando o solo. Extensões de fios da rede, caídos no meio do mato, misturados com cipós de trepadeiras que alcançavam entrelaçados, até a parte mais alta das torres. Ao longe, algumas pontas de arranha-céus, tentavam se mostrar por cima da mata verde. Eu estava em uma elevação do terreno, por isso, um local privilegiado, conseguia ver a uma certa distância. Ainda de longe, via uma caixa d’água enorme, formando linhas parabólicas, sobressaindo a tudo. À medida que avançava ia percebendo as construções normais, baixas, que eu não conseguia ver à distância. O mato cobrira praticamente todas. Minha memória parece que foi ativada e pude relembrar delas pois praticamente eram as primeiras coisas que via quando me aproximava dessa cidade no passado. Quase tudo agora estava encravado no meio da mata. As sombras nas laterais das construções indicavam que eu estava entrando na cidade pela porta oeste.
_ Por onde sair dela depois de explorada?
_ Ainda não sei ao certo.
_ Isso faz alguma diferença?
_ Creio que não.
Sair por um lado, por outro, ficar por aqui, voltar...para mim tanto faz.
Capítulo 20
Não foi como entrar no perímetro urbano da cidade nos meus tempos de pesquisa. Quase nada lembrava aquele lugar cheio de cores, beleza e de movimento. Avenidas largas e espaçosas, pontes e viadutos com jardinagem muito bem cuidados. Casas, prédios e torres para iluminação pública. Todos bem enfileirados e simétricos. Veículos espremidos nos estacionamentos e nas pistas de rolamento, tanto em uma como em outra direção. Cruzavam nos faróis passando feito ondas bravias em um mar agitado, porém muito bem cadenciadas. Pedestres cruzavam nas faixas formando pequenas ondas transversais. Estacionamentos e revendas apinhados de todas as marcas, modelos e cores. Uns caríssimos, luxuosos e outros populares. Velhos e novos, de todas os estilos. Uns brilhando ao sol de tão limpos e polidos, outros sujos e remendados. A maioria deles transitava com apenas um ocupante: O motorista. Outros, coletivos, passavam velozes, tentando vomitar pessoas pelas portas e janelas. Não acreditava se conduziam pessoas ou toras de madeira colocadas de pé. No céu a cada cinco ou dez minutos, uma aeronave passava para pousar a pouco mais de quinze quilômetros do centro político. Agitação, noite e dia. Pessoas desconfiadas passavam umas pelas outras sem dizer um bom dia sequer. Uns de ternos pretos e gravatas vermelhas, sapatos brilhado, outros de jeans baratos e camisetas retorcidas, com sandálias baratas nos pés. No estômago não sei dizer o que tinham. Madames e domésticas, negras e loiras, não importava. Umas com sacolas, outras com saquinhos de supermercados, carregavam coisas baratas e coisas caras. Necessárias ou supérfluas. De primeira necessidade ou desnecessárias. Todas as pessoas indiferentes umas às outros. Cada uma por si. Preconceitos, só nas leis e nas cotas. Identidades, também não importavam. Hoje as coisas mudaram extremamente. Agora, não se via ninguém a não ser na minha memória inquieta e confusa.
_ Este lugar está totalmente diferente. Totalmente acabado. Também pudera, não tem ninguém para dar manutenção a nada.
_ Tudo está em ruínas. Ou então, eu que estou em ruínas.
_ Não seja tão derrotista. Ainda está vivo, bastante jovem e com saúde.
Era mesmo desesperador ver e viver naquela situação. Ainda mais sem explicação, sem resposta alguma. Sem mais ninguém para comentar coisa alguma. Nem mesmo para trocar confidências ou desabafar seus problemas.
Às vezes tinha a impressão de que meu coração ia estourar de tanta agonia olhando para o cenário macabro, devastado e inóspito entre a vegetação vitoriosa. A vegetação que um dia estava sendo vencida pela fúria humana, agora dominava silenciosa mas sobranceira sobre toda a superfície da terra. Os “verdes mares bravios de minha terra” estavam de volta. Mesmo solitários. Altaneiros.
Era uma cidade aonde eu ia sempre, seja para visitar familiares, ou para me reunir com outros pesquisadores da faculdade. A equipe do projeto tinha participantes mestres de um dos Campus daquele lugar. Também alguns ensaios eram realizados ali. Muitos detalhes vinham à minha mente a cada esquina e a cada edifício. Assim a cada monumento e detalhe acrescentavam recordações e sofrimento.
_ Não importa o quanto me dói esta situação. Tenho que ir em frente. Creio que estou ficando calejado ao ponto de não cair num novo estado de desespero. Espero concluir o que tenho que fazer aqui e sair para outros lugares o quanto antes, se for o caso.
_ E se encontrarmos alguma coisa importante. Pessoas, respostas? O que faço?
_ Tomara que pelo menos uma destas hipóteses se confirme. Mas estou com poucas esperanças.
_ Ao que parece, o homem foi mesmo pego de surpresa em todos os lugares. Até mesmo os que registravam a história da humanidade.
_ É. Nem mesmo registros em um jornal eu consigo encontrar. Parece que não houve tempo para a imprensa noticiar o ocorrido fatídico.
Estava quase certo de que o longo período dentro da cápsula trouxe algum efeito negativo sobre a minha memória, pois alguns detalhes desse trabalho e mesmo de meu passado eu tinha dificuldade em me lembrar. Alguns eu não lembrava. Tanto é que fiz todo o percurso da estrada sem me lembrar muito bem dela. Seguia mais os mapas impressos em papel do que a memória.
_ Também, pudera, tudo mudou extremamente. Pode ser por esse motivo.
_ Talvez alguma área da minha memória tenha sido afetada pelo impacto da primeira visão do cenário devastado quando cheguei ao mezanino da fortaleza.
_ Ou, quem sabe, estou vivendo em um tipo de universo paralelo.
Quando algo funcionava como gatilho na minha memória, os detalhes chegavam com perfeição. Caso contrário ficava sempre muito confuso.
Se tudo isso é consequência de minha permanência em animação suspensa por muitos anos, não faz mal algum. Muitos cientista sofreram as consequências de seu trabalho quando se tornaram suas próprias cobaias. O que me intrigava é o que tinha ocorrido com a população da terra. Se tivesse ocorrido uma consequência grave apenas comigo, seria compreensível, mas atingir o mundo todo e eu escapar ileso, é o que me deixava confuso, ou mesmo sem entender coisa alguma. Quase louco.
_ Com certeza, o que dizimou a raça humana não foi o nosso projeto, mas outro qualquer.
_Com certeza, a catástrofe que se abateu sobre o homem enquanto eu dormia, não me atingiu em função das condições favoráveis em que me encontrava. Inclusive da fortaleza, que fora construída de forma especial. Ela me protegeu de alguma forma.
_ Por que será que outras pessoas não sobreviveram?
_ Tantos grupos de pessoas se preparavam para uma catástrofe, e quando ela chegou os pegou desprevenidos como os demais.
_ Certamente que sim.
Há anos eu vinha tentando não me preocupar com estas questões, pelo menos mais do que o necessário, mas muitas vezes elas voltam à minha mente somente para me deixar mais inquieto. E quando afloravam eu quase ia a insanidade.
À medida que ia passando por ruas e edifícios, não deixava de me preocupar com os possíveis desabamentos de algumas construções, por causa da frequência do som do motor da pick-up, e os abalos provocados pelo impacto dos pneus nos remanescentes do asfalto. Não era um som muito forte, mas o local estava sob efeito da inércia não sei há quantos anos. Também, quando tinha que usar o moto serra sempre que encontrava troncos de árvores no meio da rua acabava por ficar temeroso. Certa vez vi quando um poste de concreto veio abaixo e o deslocamento de ar provocado pela sua queda foi suficiente para levar ao solo boa parte de um edifício nas proximidades. Andar nas ruas por si só era um risco continuado. Embaraçar-se nos fios que acabavam por tracionar um ou mais postes era inevitável.
Durante todos esses anos convivendo com escombros e uma fábrica deles, aprendi a tomar precauções em tudo o que fazia. Todo cuidado era pouco nesse mundo. Ainda mais se não tinha a quem recorrer nas emergências.
_ Olha ali! Uma loja de materiais para sobrevivência. Exclamei. Preciso visitá-la mesmo que não seja agora. Deve haver nela alguma coisa útil para a mim.
Marquei o local no meu mapa e continuei, depois de presenciar a debandada de uma manada de cervos assustados com o barulho do motor, num momento em que precisei acelerá-lo para o carro ganhar potência em mais um obstáculo no meu caminho.
_ Não tenho visto animais ferozes há dias. Será que eles não existem por aqui?
_Duvido. Quando tudo está muito quieto algo pode acontecer a qualquer momento.
Sempre existiam cobras peçonhentas, onças, lobos, jacarés, manadas de porcos selvagens. Um dia fui perseguido por uma manada de vacas e touros que me cercaram em uma área desprovida de construções e minha saída foi subir em uma árvore e ficar de castigo em cima dela até que a manada desistisse horas depois.
_ Perigo é o que não falta por toda parte. Ainda bem que nessa região não há ursos, leões e outros predadores grandes e ferozes.
_ A não ser alguns que conseguiram escapar de algum cativeiro e conseguiram procriar.
Ossos humanos e de animais sempre me enchiam de medo, aliás, sempre tive muito medo dessas coisas. Agora como não tinha opção, o jeito era enfrentar meus temores e conviver com eles. Estava quase me acostumando com carcaças, quando uma se mexeu perto de mim, por causa de alguns ratos que saíram de dentro dela. Meu coração disparou e quase saiu pela boca. Fiquei paralisado diante da cena mesmo depois de perceber o que aconteceu.
_ Merda. Foi a única palavra que conseguiu sair da minha boca naquele momento.
Como a topografia local era muito disforme com morros e vertentes bastante acentuados, as ruas estavam muito erodidas e a maioria delas sem condições de tráfego. Sempre que encontrava um local muito danificado, voltava e procura outra opção. Por isso, gastei vários dias para chegar ao Campus. Dentro desse, os prédios até que estavam em boas condições. Muitos blocos visivelmente apresentavam sinais de haverem sido construídos em data mais recente em comparação com os demais. Ainda tinham preservadas muitas das vidraças das janelas. Também na época de suas construções usava-se muito vidro temperado em janelas, portas e paredes. Eram vidros muito grossos e de muito boa qualidade. Muito embora nas soleiras, locais onde os pássaros pousavam e construíam seus ninhos, tenham nascido e crescido diversas espécies de trepadeiras e gramíneas dando ao local, um aspecto de abandono. A maioria das portas estavam fechadas, não travadas, mesmo assim encontrei várias delas abertas, assim como muitas janelas. Sempre que entrava em uma sala aberta em um bloco qualquer, os morcegos e andorinhas voavam aos bandos me assustando e fazendo meu coração bater descompassadamente. Animais de várias espécies repousavam no interior delas, transformando-as em baias cheias de dejetos onde as plantas, por isso eram mais abundantes.
_ Cara, o que é isso? Saí correndo do local quando vários marimbondos me atacaram ao abrir uma porta.
Eram muito ferozes e cheguei a tomar umas duas picadas que me incomodaram o restante do dia. Ainda bem que não sofria nenhuma reação alérgica a esse tipo de inseto. Não tinha anti alérgicos nem analgésicos por isso arranquei os ferrões que ficaram cravados na pele, desinfetei com álcool e coloquei um pouco de mel de abelha sobre os locais. Depois fiz um chá de limão e tomei.
_ Pode não dar resultado, mas pelo menos é um delicioso chá.
_ Está mesmo delicioso adoçado com mel.
_ Foi providencial encontrar frascos de mel bem embalados e conservados durante tanto tempo. Depois de aquecido em banho-maria eles ficaram novinhos em folha.
Os cães, sempre que eu tinha algum tipo de ferimento, lambiam o local, e por incrível que pareça, dava bons resultados. A saliva tanto do homem como dos animais possui propriedades antissépticas. O resto do dia procurei ficar no acampamento, que aliás, havia montado, dessa vez dentro de um quiosque na área comercial do Campus.
Quiosques eram construções ideais para acampar, mesmo que fossem por vários dias. Ofereciam boa visibilidade das redondezas e a noite eu podia dormir em um de seus banheiros ou na despensa.
Usei uma dessas, depois de efetuar uma profunda limpeza colocando para fora o entulho, depois varrendo e lavando as paredes, teto e piso. Os cachorros dormiam na área livre. Os animais de montaria ficavam em uma área fechada por alambrados. Lá, eles ficavam em segurança, mas mesmo assim montei o sistema de alarme dentro do perímetro delimitado pelo alambrado que já não apresentava confiabilidade.
_ Uma boa fogueira sempre ajuda a suportar o frio nestas noites de outono. Ou de inverno. Sei lá.
_ Já tenho lenha o bastante para manter o fogo aceso a noite toda.
_ Vou assar umas batatas nesse fogo para ver se ficam saborosas.
Todos os dias, além das pesquisas, tinha que ajuntar lenha suficiente para a noite toda. Mantinha o fogo aceso até que o sono me dominava.
Nas noites de lua com o céu limpo, dessas duas estações, eu às vezes ficava até tarde contemplando a beleza do céu, isto porque o ambiente estava desprovido de iluminação artificial, permitindo a demonstração total da beleza noturna. Nas noites sem luar, o espetáculo era deslumbrante. Sempre fui facinado pelo céu e sua população. Agora, não cansava de admirar as incontáveis estrelas galáxias e constelações. Na falta de iluminação artificial o número delas era assustadoramente grande e apresentavam luminosidade impressionante. Cada uma com um brilho e uma cor diferentes. Apesar da solidão, eu tinha a companhia dessa beleza. Só para mim. Consegui uma cadeira que reclinava a cabeceira me permitindo ficar praticamente deitado, com os olhos voltados para essa contemplação. Muitas vezes adormecia nessa posição. Um cobertor me aquecia enquanto os dois cães deitavam ao meu lado e davam o alarme sempre que desconfiavam da aproximação de algum intruso. Saíam em disparada latindo e babando.
_ Esse viaduto me parece confiável.
_ É. Parece mesmo.
Quando fiz a curva numa das tesourinhas parei na parte alta do mesmo para contemplar melhor o cenário e talvez escolher o caminho para onde seguir. Fiquei na dúvida se seguia pelo eixo central, constituído de pistas duplas, providas de quatro faixas para cada sentido de tráfego. Esta era a que apresentava melhor trafegabilidade. Pelo menos era o que parecia. Só tinha dúvida se ela me levaria ao meu destino.
_ De longe toda serra é lisa e sem buracos.
_ Onde mesmo eu li essa frase?
_ Creio que em lugar algum.
_ Mas algo parecido, tenho certeza que li.
A situação era sempre a mesma em qualquer local. Pistas cheias de veículos em decomposição, escombros de construções, árvores em locais improváveis, carcaças de pessoas e animais. Por mais que procurasse não encontrava vestígios de que tivesse havido explosão ou rompimentos bruscos de obstáculos sugestivos de uso de projéteis ou bólidos.
Minha busca por todos os pontos de interesse do Campus não me rendeu nada de útil, a não ser a confirmação de que a minha situação seria a mesma em qualquer lugar que fosse. Nenhum sinal do ser humano vivo. Ou que conseguisse deixar algum registro do que ocorreu. Nada.
_ Não é possível que não encontre nada que me dê uma resposta pelo menos. Encontrar pessoas, eu já desisti. Somente por um milagre, como foi o da minha sobrevivência. Aliás, o milagre do esquecimento. Esse não é milagre, mas sim, um castigo.
Passei então, a procurar pelos grandes estabelecimentos comerciais como hipermercados ou atacadistas, onde antes existiam multidões em busca de alimentos e produtos de consumo diversos. Se na cidade tivessem pessoas, certamente voltariam a esses centros comerciais para procurar coisas úteis. A situação era sempre a mesma em qualquer local. Nenhum sinal de vida humana. Nenhum sinal de que alguém tivesse marcado presença ali depois da catástrofe.
_ Já passei por vários estabelecimentos comerciais, shoppings, e distribuidores, e, nada. Campus e locais públicos, prédios do governo e sedes de imprensas, como jornais, rádios e redes de TV.
_ Por onde ando, só confirmo meu pesadelo.
Uma piscina enorme em um centro esportivo me chamou a atenção. Caminhei lentamente em torno dela, amassando para os lados as touceiras de capins e arbustos, sempre tomando cuidado com cobras e escorpiões. A água estava limpa, mas no fundo havia muitas algas e plantas aquáticas que dificultavam ver claramente o que nela havia de verdade. De repente a água começou a expelir muitas bolhas de ar. Preocupado, eu me afastei um pouco mais da borda. Lentamente apareceu um enorme jacaré, que chegou a colocar a cabeça para fora, enquanto uma ariranha saiu em disparada para fora da piscina. Como tinha muita carne estocada não quis abater nenhum dos animais. Era meu lema. Não importa a abundância. Somente abatia um animal quando ameaçado por ele ou pela minha fome.
_ Como é que esses bichos vieram parar aqui?
_ Há peixes também. Veja.
Não quis saber de onde vinha a água que alimentava o poço e nem de onde vieram os animais que encontrei nele.
Tive vontade de saltar na água para refrescar o calor, mas contive diante do que vi.
_ Espero encontrar uma dessas em melhores condições para me refrescar.
Enquanto isso meu banho se resumia a tirar água de um dos reservatórios com um balde e jogar sobre a cabeça. Era mais seguro. Por mais que tivesse vontade de pular dentro eu jamais fazia, pois na maioria delas não conseguia ver direito todo o seu interior.
_ A sobrevivência me diz para tomar cuidado.
_ Aliás, o medo sempre foi o melhor aliado da sobrevivência.
Dentro de três meses, com todas as dificuldades, já havia percorrido os pontos de interesse e os que me despertaram curiosidade. Já pensava em iniciar outra etapa da viagem antes do inicio do período chuvoso. _ Nesse lugar eu não encontrei até agora, algo que me servisse de fato.
_ Ainda tenho o mês de setembro e possivelmente outubro para alcançar outra localidade onde passar o período chuvoso.
De acordo com os mapas, havia uma cidade que no passado não passava de duzentos mil habitantes. Sua economia básica eram algumas indústrias pequenas, agricultura e pecuária. Depois dela há mais de um mil quilômetros, estava outra bem maior, onde possivelmente encontraria mais coisas interessantes.
Embora não tenha tido sucesso, aquele local serviu para tirar dúvidas e descansar uns dias. Por ali minhas buscas cessaram. Também o local onde me encontrava instalado não oferecia boas condições de sobrevivência, principalmente nos meses chuvosos. Com uma topografia muito plana e baixa esse lugar apresentava vegetação sugestiva de que poderia ficar alagado com a chegada das chuvas. Se demorasse muito para sair dali corria o risco de ficar preso em um local inóspito.
_ Ainda devem existir lojas de produtos de sobrevivência para suprir algumas necessidades, mas é apenas isso. Nada mais.
_ Geralmente elas ficam próximas umas das outras. Portanto se encontrar uma, encontro outras. Mas, onde procurar? Os guias impressos que encontrei até o momento não ofereciam condições de leitura.
_ Temos no mapa a localização da loja que vimos no dia de nossa chegada. Creio que disse para os cães.
Saí pela manhã à procura da loja. Preparei o cavalo e parti. A égua não estava em condições pois sua barriga estava muito grande e poderia parir a qualquer momento. Os dois cachorros, amigos inseparáveis, foram comigo. Levei barraca, armas, água e matula para no mínimo quatro dias. Pretendia voltar o quanto antes mas sempre andava preparado para emergências. Não gostava de passar a noite em qualquer lugar, principalmente sem meu sistema de segurança. Desta vez não havia alternativa, teria que fazê-lo.
Cavalguei devagar, ora seguido ora seguindo meus cães, para ter oportunidade de observar os letreiros e painéis das fachadas por onde passava. Eram lojas de confecções, calçados, móveis e eletrodomésticos; restaurantes, farmácias, clínicas, hospitais e prédios públicos. Casas de prestação de serviços diversos. Concessionárias de automóveis e de máquinas pesadas, além de escritórios diversos. Uma riqueza de ofertas para nenhum comprador. Isso me fez lembrar que se houvesse qualquer tipo de guerra as lojas de alimento em especial deveriam estar com os estoques roubados para reservas. Pelo contrário, as prateleiras estavam abarrotadas de produtos, estragados, é claro. Por onde quer que eu andasse a situação era a mesma. As pessoas caíram onde estavam, sem tempo para qualquer reação. Todos ao mesmo tempo.
_ O que terá mesmo acontecido, pois por onde ando vejo que não deu tempo para ninguém esboçar qualquer tipo de defesa. Foi algo fulminante.
Eu teria de encontrar um modo de saber se isso aconteceu da mesma maneira no mundo todo. Uma coisa era certa. Num mundo globalizado o que aconteceu aqui, aconteceu em todos os lugares. O que aconteceu lá, aconteceu aqui. Com poucas variações, é claro.
O sol já estava no meio do céu quando resolvi parar na sombra de uma bela e frondosa árvore para tomar água e comer alguma coisa.
_ Café?
_ Me esqueci de trazer o café que tanto gosto e que me excita bastante. Não faz mal, tomo água pura. Havia aprendido como colher, torrar, moer e preparar essa bebida saborosa. Sempre que encontrava algum pé de café, ou alguma sobra de lavoura, fazia uma colheita para durar muitos dias, ou até mesmo um ano inteiro.
Uma palmeira me chamou a atenção, pois sua copa estava repleta de cachos cheios de frutos prontos para serem consumidos. Sua água era muito apreciada e nutritiva. Aproveitei bastante a sombra e os frutos.
Cheguei por fim ao setor comercial já identificado. Sempre deixava por onde andava, sinais em alguns pontos estratégicos para facilitar o retorno e não correr o risco de me perder. Deixava pedaços de tecido, ou cortava galhas de árvores ou arbustos. Nesta loja havia um sinal que reconheci ter sido deixado por mim.
Quando encontrei a primeira loja o sol já declinava pelo céu caminhando no período da tarde. O local era muito estranho em função das condições das construções. Ao que parece era uma região ou setor da cidade onde as construções eram muito antigas e não eram tão resistentes.
_ Essas construções praticamente em estilo Art déco datam do inicio do século XX, creio eu, aproximadamente. São construções muito antigas.
Era uma loja pequena demais para ter coisas de interesse, mas procurei adentrar assim mesmo. A vegetação, como sempre, cobria praticamente tudo. As paredes e parte da fachada guardavam remanescentes do estilo da época. Suas portas foram alteradas e trocadas por vidro temperado, mas o restante lembrava o estilo. Essas eram de boa qualidade tanto que duraram até aquele momento. Dentro da loja tinham, além da sujeira de todos os lugares, roupas especiais, calçados, armas brancas e de fogo. Barracas para acampamento, leves e resistentes. Escolhi uma barraca e tentei montá-la para ver suas condições e se era mesmo eficiente e notei que ainda estava perfeita. Eram feitas de material muito resistente, leve e durável. Repelentes, artigos para fazer fogo, cobertores térmicos, ferramentas e tantos outros itens. Fui adentrando por entre prateleiras que formavam estreitos corredores até os fundo, onde funcionava uma pequena fábrica e oficina para conserto. O local era bastante tétrico e sujo, mas estava acostumado a ambientes soturnos. Recolhi alguns itens que mais me interessaram e tratei de sair do dali, pois o cheiro não era muito agradável. Realizei testes de funcionamento em todos os itens que escolhi. Uma tenda tipo militar para proporcionar um abrigo por vários meses em épocas difíceis. Aproveitei para levar bons arcos e uma boa quantidade de flechas, além de um bom kit de pesca. Como não conhecia esse equipamento, fiquei em dúvida entre o arco e a balestra, porém o arco me apresentou mais simpático após treinar alguns arremessos. Também para caça me pareciam mais eficientes.
_ Esse arco me será bastante útil depois que treinar bastante com ele.
Não me esqueci de um purificador de água, item de sobrevivência, um kit de luz química, dentre outros. Não podia levar muita coisa pois a distância era considerável, e meu cavalo podia não suportar tanto.
Um livro sobre técnicas de sobrevivência ainda apresentava partes com boas condições, passou a ser meu companheiro de todos os instantes. Depois que o consultei, aprendi muitas técnicas interessantes a respeito de várias situações difíceis.
Meu retorno para o acampamento, apesar das marcas deixadas pelo caminho, não foi tão fácil quanto pensava. Perdi-me em um trecho do percurso, e como o sol se pôs pela segunda vez antes que eu chegasse, a noite não permitiu que eu continuasse. Tive que pernoitar novamente sem proteção do meu sistema de segurança. Minha saída foi montar a tenda em um local, o mais limpo possível, acender uma fogueira do lado de fora, a qual durou apenas até pouco depois da meia noite. Experimentei também o colchão térmico, aprovado com louvor. Se mostrou muito útil e confortável. Por sorte meus dois cachorros estavam comigo e montaram guarda na porta da tenda. Eu tinha armas e munição. Mas de que adiantaria armas depois que eu dormisse? A tenda tinha boa proteção contra pequenos animais, cobras e escorpiões. Mas se aparecesse um predador de grande porte, ela certamente não suportaria. Os cães me alertariam, mas não poderiam me dar proteção total. Foi uma noite difícil e longa, ouvindo bufos de touros, gemidos de corujas misturados com esturros de onças. Me arrepiava e tremia quando ouvia, e tudo parecia que estava bem perto de mim. Não sei se tremia de medo ou de frio. Apesar de estar usando o cobertor térmico. Era pura impressão provocada pelo medo, pois os cachorros dormiam tranquilos do lado de fora da tenda. O cavalo, amarrado a um poste da antiga rede de energia elétrica, pastava e as vezes rifava. Até que em fim as aves matinais começaram a fazer algazarra na mata, e nos escombros e, o céu começou a ficar avermelhado antes de o sol se mostrar totalmente.
Desmontei e embalei novamente a tenda, preparei o cavalo e as coisas que teria de levar.
_ Gostaria de não passar por outra experiência destas nunca mais.
_ Mas com certeza outras virão. Com certeza.
_ É.
Os cães estavam impacientes e tomaram a dianteira. Creio que sabiam melhor do que eu, o caminho de volta.
_Essa cidade parece não ter igrejas. Também ela possui uma arquitetura diferenciada. Difícil de identificar isto ou aquilo.
_ Tudo bem. Tenho que ir.
Capítulo 21
Mudei de direção seguindo para o sul através de uma estrada escolhida nos meus mapas, antes usada por um grande número de veículos. Comecei relativamente bem no primeiro dia, apesar das dificuldades naturais do perímetro urbano, mas até certo ponto já estava familiarizado com as vias de escoamento e pude sair dos seus limites no primeiro dia de viagem. A seguir, passei a trafegar pela dita rodovia, a qual era dotada de pistas duplas, e com pavimentação relativamente bem conservada. Segui pela pista esquerda da rodovia, por admitir que estaria menos deteriorada. Não teria nenhum problema de ordem fiscal por trafegar na contra-mão de direção.
_ Esta rodovia era privatizada, por isso estava sempre em melhores condições. Pensei com meus botões. Ainda hoje está melhor do que as demais.
Desde o inicio a pista apresentou melhores condições de uso, por isso segui por ela passando por incontáveis veículos de todos os tamanhos e modelos. Estavam sempre olhando para mim. Estado de conservação? Todos deformados pelo tempo, e as intempéries, abandonados de qualquer maneira. Alguns apresentavam sinais de fogo, porém dava para perceber que este havia ocorrido depois de anos de abandono no mesmo lugar. Apesar de haver vegetação nas laterais da pista, o centro, na maior parte se encontrava praticamente conservado. Apenas obstruído por veículos, pedras e troncos de árvores caídas em vários pontos. Aliás, esse era um cenário encontrado onde quer que eu fosse. Como já estava acostumado com esses obstáculos, tinha meus truques para desobstruir e seguir em frente. Tudo porém com paciência e prudência. Quando era preciso, ficava vários dias no mesmo local fazendo reparos, até que tivesse condições seguras de seguir viagem.
Não demorou para que eu encontrasse um grande caminhão atravessado na pista obstruindo as duas faixas de rolamento e o acostamento. Por esta causa tive que literalmente construir um desvio carregando troncos, pedras e terra. Apenas para arrastar obstáculos pesados muitas vezes conseguia usar a catraca que ficava no para choques dianteiro da pick-up. Um carrinho de mão que eu trazia pendurado por falta de espaço passou a ser uma das ferramentas mais usadas nesses momentos. Ele me ajudou muito nessa tarefa difícil. Posso dizer que se não fosse ele teria gastado incomparavelmente mais tempo e muito mais energia. Nesse local fiquei quase uma semana trabalhando para que o desvio ficasse usável. Quando percebi tamanha dificuldade, montei acampamento com os alarmes e abasteci a despensa com frutas e carne de animais.
_ Não adiante ter pressa. Não marquei horário com ninguém. Fico aqui o quanto for preciso. Apenas precisava encontrar um local seguro para passar os meses que viriam. Eram meses de muita chuva e capim alto por toda parte.
Naquelas circunstâncias, muita chuva, significava seguramente muita inundação e condições muito desfavoráveis. Além do mais, passar meses sem ter o que fazer seria muito mais tedioso.
O trabalho, o esforço físico, e a má alimentação estavam me fazendo perder peso. Para não atrasar tanto, eu muitas vezes não parava para cozinhar meu alimento comendo qualquer coisa do modo como estava. Carne seca crua, frutas não muito maduras, e pouca ingestão de água. Como tinha boa saúde não me preocupei a princípio.
Superada esta dificuldade, continuei rodando até que cheguei a uma pequena cidade.
_Bem, creio que isso era uma cidade. São várias casas no meio da mata regenerada.
_Lugar incrível esse. Mata fechada. Árvores muito altas com cipós gigantescos até a copa. Buritis e outras palmeiras ribeirinhas.
A princípio me pareceu realmente pequena, mas à medida em que fui adentrando não chegava ao seu final. Casas e mais casas, praças, galpões grandes e até prédios de vários pavimentos. No passado como nas viagens mais distantes preferia mais as vias aéreas, por isso não cheguei a reconhecer o local.
_ Puxa, realmente era uma cidade de uma população numerosa. Vestígios de gente? Nenhum.
Sempre que parava em um local, examinava os vestígios para ver se encontrava sinais característicos da presença de vida. Animal ou humana.
Li num letreiro de parede: casa de saú... S...nt... não consegui ler o restante, e nem precisava. Teatro municipal, hipermercado, prefeitura, fórum, estádio... A maioria faltando letras e até palavras inteiras.
_ Bem, se continuar lendo corro o risco de cair em algum buraco ou bater em um tronco, sair da estrada ou coisa parecida.
_ Acidente é o que não quero.
Percorrendo pela rodovia percebi que várias de suas ruas e avenidas que não cruzavam a rodovia, mas partiam de uma pista lateral, algumas até bem conservadas, notei um grande número de construções caídas totalmente com os escombros sempre do mesmo lado. Não via melhor, pois a vegetação arbustiva e árvores diversas nasceram e cresceram por todos os lados impedindo ou dificultando a visão. Em alguns pontos, construções que permaneciam de pé e estavam visíveis, tive a curiosidade de chegar mais perto e pude ver que havia marcas de água de dois até três metros de altura em suas paredes. Nas proximidades, a vegetação era bem mais expressiva.
_ Parece vegetação ribeirinha.
_ Mas o que é isso? São marcas de enchente. Como pode neste local uma enchente atingir nível tão alto!
_ Não vi nenhum rio grande por perto.
Logo mais adiante descobri o porquê. As casas ficavam na margem de um rio caudaloso, com calha pouco expressiva.
_ Realmente, agora me lembro; desci um declive de vários quilômetros, mas como a mata era bastante fechada não tinha percebido.
_ Parece que os mapas não registraram esse rio.
Somente quando cheguei bem perto, vi suas águas cristalinas, correndo lentamente na direção dos escombros das casas.
_ Com certeza, quando as águas sobem ganham velocidade e fazem muitos estragos.
_ Não posso estar por aqui quando as chuvas chegarem. E não quero.
Por falar em chuva, enquanto observava, ouvi um trovão ribombar muito longe. Parecia estar muito além do horizonte. Meu coração disparou só de ouvir e pensar no que poderia acontecer se permanecesse naquele lugar. Não sei se de preocupação ou de melancolia, mas o certo é que senti um grande desconforto. Melancolia, saudade, estado depressivo, era o que sempre sentia quando ouvia esses trovões distantes. Pareciam sair de dentro de minha alma. Agora com o silêncio que vinha convivendo desde que acordei, meus ouvidos pareciam mais aguçados que no passado. _O silêncio realmente faz bem para os ouvidos. Mas ele também cansa.
A princípio pensei em voltar e procurar um local alto para montar o acampamento, pois até o momento presente, por onde tinha passado, não havia encontrado nenhum local bom para isso. Depois me veio a ideia. Se tem uma ponte preciso ver suas condições, e se possível, devo passar para o outro lado, pois ela pode estar com os dias contados. Quando passar esses meses de chuva, pode não estar mais no lugar.
_ Se é que ainda está.
_ Vamos ver como está agora mesmo.
Segui em frente até as proximidades e parei o veículo. As casas que ainda existiam estavam totalmente sufocadas pelas enormes árvores da mata ciliar e as moitas de capim. Os postes da rede de energia elétrica com sua fiação rompida, dificultavam a identificação tanto destes como da fiação; também não dava para distinguir se eram fios ou cipós. A vegetação era realmente fechada. Quando olhava para o seu interior tinha medo, pois era muito sombrio e não conseguia ver mais de uns poucos metros além do meu nariz. Passei a mão pelos cabelos, depois pela barba num gesto de preocupação.
_ Tenho realmente que descer deste veículo?
_ Tem sim, meu velho.
_ E as onças ...?
_ É, mas não tem outro jeito. Você tem que enfrentar mais esta situação. Afinal, você quis sair da fortaleza para essa aventura. Não vai entregar os pontos agora.
_ Com certeza não. Todo homem tem o seu dia de morrer. Por ataque de onças, de cães selvagens, cobras ou queixadas.
_ Se pelo menos tivesse trazido um dos manequins poderia deixá-lo como isca.
_ Apesar de trágico, ele não era humano.
Soltei os cachorros na frente, e desci com minha pistola em uma das mãos e o facão na cintura. Pendurada no ombro uma espingarda calibre 12.
_ Mas para que tudo isso?
Pensei melhor e acabei deixando a espingarda dentro da cabina.
_ Tanta coisa só vai me atrapalhar.
Apesar dos trovões que ouvira antes, não choveu ainda. Talvez fossem os primeiros sinais que aparecem no mês de setembro.
Fiz a vistoria na ponte que se mostrou como a rodovia, em bom estado de conservação, me permitindo passar com segurança. Apesar de uma ponte bastante extensa, gastei pouco tempo para a vistoria, pois ela estava realmente com boa presença. Era feita de concreto bruto com duas faixas de rolamento mais uma passagem de pedestre para cada sentido de tráfego.
Do outro lado do rio havia uma ladeira com um forte aclive indicando que ele estava ficando lá em baixo. A cidade continuava com casas e prédios, galpões e... _uma igreja! Exclamei com certa alegria, pois ainda não tinha visto nenhuma outra semelhante, desde o dia em que vi a minha sendo derrubada pelo tempo.
Era uma igreja e não importava mais que linha doutrinária ela seguia no passado. Agora era apenas uma construção como as demais.
Montei o acampamento em um local alto e plano onde a vegetação se encontrava mais rala e com árvores mais baixas. Parte dele ocupava o leito da rodovia, pois o asfalto no local estava totalmente exposto, permitindo executar várias atividades livre de lama nos dias de chuva.
Por enquanto as diversas espécies de gramíneas que se misturavam sob as sombras das árvores e em torno das construções, também não eram tão expressivas, e se encontravam muito secas em face dos vários meses sem chuva. Apenas nas margens do rio essa vegetação continuava verde. Essa era uma dificuldade para alimentar os animais. Tinha muitas vezes que buscar capim verde onde os encontrava, ou levar os animais a eles e ficar vigiando até que se fartassem.
_ Como demoram esses animais.
_ Eles comem demais mesmo.
Meu veículo tinha um depósito de água que se bem administrada, durava alguns dias. Mesmo compartilhando com os animais.
_ Espero que chova logo para que o capim brote com vigor, assim eu não preciso buscar ração para os animais. Eles precisam recuperar o peso gasto na viagem.
_ Claro. Levar os animais para fora da área protegida tem se tornado um risco para eles e para mim.
_ Pelo menos temos uma ocupação a mais.
_ É. Passar meses nesse acampamento não me parece uma boa opção.
_ Verdade. Estamos mal acomodados nesse pequeno trailer. E correndo riscos. Precisamos de algo mais seguro e confortável.
_ Creio que consigo encontrar uma construção em condições de me abrigar durante esses meses. Enquanto isso o acampamento é a melhor solução.
Durante a viagem havia procurado por um veículo maior e mais possante para que pudesse levar mais coisas. Me acomodar melhor. E é claro, em condições de uso. Todos os que havia encontrado necessitavam de reformas profundas.
Por outro lado, por mais que eu procurasse não conseguia encontrar nenhuma construção que me oferecesse segurança para ficar durante os vários meses de chuva. Precisava encontrar uma solução alternativa o mais rápido possível.
Depois de um temporal que durou mais da metade de um dia, pude comprovar as dificuldades previstas. Cheguei à conclusão de que realmente seria penoso passar os meses de chuva no atual acampamento. E olha que estava nesse local a pouco mais de uma semana. Os vários meses seriam penosos.
_ Não dá mais. Vou sair e procurar outra coisa. Depois de procurar nas imediações concluí que realmente as construções não ofereciam segurança. Poderiam desabar a qualquer momento. Esse era o problema. Lembrei-me de que do outro lado do rio, havia passado por uma série de galpões enormes, onde haviam ônibus, caminhões e trailers mais espaçosos do que o meu. Foi assim que pensei em rebocar algum que me fosse útil para pelo menos passar a temporada.
Voltei ao local onde vira os veículos abandonados. No caminho martelava em minha mente o que poderia encontrar, e o que deveria fazer para trazer de volta, talvez um trailer, para servir de abrigo pelo menos nos seis meses de chuva que estavam chegando. Enquanto cavalgava ia observando atentamente a estrada com suas deformações, possibilidades e impossibilidades. Cavalgando eu podia ver melhor a situação e quando precisava, apeava para melhor investigar. Os dois cachorros iam comigo sempre farejando e correndo atrás de algum animal. Minha preocupação era com os grandes predadores e cobras venenosas.
_ Engraçado, parece que as águas do rio aumentaram depois que passei.
_ Mas fazem apenas dez dias e não houve chuva suficiente para alterar o volume de água de um rio. Deve ter chovido mais na região das nascentes.
O rio pertencia a uma vasta bacia hidrográfica e era alimentado por uma grande rede de afluentes situados a montante. Com certeza havia chovido muito nessa grande região. As águas estavam turvas e carregavam troncos de árvores e folhagens.
O local era ermo e solitário por natureza. A rodovia ficava a leste de uma serie de galpões enormes, alguns já em ruínas, outros parcialmente. Ficavam em uma área plana, e de esparsa arborização nativa e incorporada. Portanto era caracterizada por uma vasta área marginal à rodovia, cercada por enormes árvores de diversas espécies. Certamente constitui a mata ciliar, com espécies nativas características de áreas bem drenadas porém de lençol freático não muito profundo. A margem oeste da rodovia estava praticamente na sombra de árvores gigantescas cujas galhas já avançavam sobre boa parte do leito da rodovia.
Um dos galpões possuía um pátio cercado por alambrados nas laterais e um muro na parte da frente. Um portão enorme se encontrava aberto, enferrujado, retorcido e tomado pela vegetação rasteira. Havia visto esse local quando passei por ali há alguns dias, e me chamou a atenção a presença de trailers, ônibus e caminhões de vários modelos. O problema era rebocar um trailer com as rodagens travadas pela ferrugem. Os veículos estavam todos muito deteriorados e não ofereciam condições sequer para serem reparados. Em especial o motor, o câmbio e outras partes móveis.
Já fazia alguns dias que eu trabalhava num trailer para deixá-lo em condições de ser rebocado pela pick-up. Era um veículo espaçoso, mas leve o suficiente para ser rebocado até o local do acampamento. Dentre os que vi, esse era o que apresentava melhores condições. Um ônibus seria ótimo. Tiraria os bancos e faria dele uma bela casa, mas nenhum dos que encontrei oferecia condições de funcionamento. Baús, containers e outras opções, todas sem condições de uso, e de ser rebocado. O que escolhesse para ser usado, teria que ser rebocado, pois onde estava as enchentes subiam no mínimo até a metade da altura de qualquer um deles.
_ Com certeza a parte mecânica desses, nunca mais funcionará.
_ Bem, esse trailer... se eu conseguir destravar as rodas e limpar o peso do seu interior será mais fácil rebocar e suficiente para ser transformado em quarto de dormir.
Apesar de algumas chuvas me pegarem de surpresa eu continuava trabalhando para deixar o trailer em condições de ser rebocado e usado.
_Tudo indica que isso aqui pode virar um mar de água suja e corrente assim que as chuvas caírem de vez.
_ Daqui até a outra margem constam nada menos que três quilômetros. Não tenho canoa ou outro meio de transporte hídrico. Portanto, tenho que me apressar em atravessar para a outra margem antes que as águas subam.
O dia amanheceu nublado, mas não o bastante para me preocupar. Mesmo porque tinha urgência, e possivelmente dentro de mais um dia eu poderia descer com a pick-up para rebocar minha nova casa. Troca de pneus, lavagem e limpeza interna, remoção da ferrugem dos freios, das rodagens e suspensão. Tive que fazer todo o serviço de maneira improvisada com ferramentas inadequadas e com muito medo de ser surpreendido por feras.
No dia seguinte, passava pouco do meio dia, eu ainda trabalhava no sentido de concluir o serviço e buscar a pick-up para rebocar o novo lar. Meu estômago roía de fome, mas só pararia quando terminasse tudo. Chovia fino desde a manhã desse dia, mas não indicava qualquer ameaça.
_ Cara o que é isso mesmo? Água?
_ Sim mas de onde vem tanta água?
Olhei para um lado e havia água. Para o outro, do mesmo jeito. Não sei de onde saiu tanta água em tão pouco tempo. Pensei em sair rapidamente mas vi que não dava mais, pois o local onde me encontrava estava sobre um aterro de forma que em volta o terreno era visivelmente mais baixo. Agora com a enchente, certamente a profundidade da água no meu entorno não me permitiria sair dali. Estava ilhado.
_ E agora? Perguntei para mim mesmo.
Realmente havia chovido bastante enquanto eu trabalhava no interior do veículo, mas fiquei tão envolvido que não percebi o quanto a precipitação foi intensa. Certamente havia chovido em toda a região da bacia geográfica. Enquanto eu dava os últimos retoques não percebi que a água estava invadindo o pátio do estacionamento.
_ Não se parece com água pluvial, pois sua coloração está diferente.
_ Não se parece mesmo.
_ Estou ilhado dentro de um trailer, mas não acredito que ela chegue tão alto.
_ Bem. Deve ser algo passageiro.
Apesar de preocupado estava certo de que tudo acabaria bem. Acreditava que até o fim do dia o nível das águas do rio estaria de volta ao normal e poderia voltar ao acampamento do outro lado.
_ Sem dúvida, logo poderei rebocar o trailer.
_ E o meu cavalo! Não acredito que me esqueci dele. E agora?
Havia deixado o animal amarrado a uma árvore com uma corda comprida para que ele pudesse pastar a grama verde das imediações. Os cachorros com a chuva se refugiaram dentro do trailer e estavam bem quietos há algum tempo.
_ Bem que eu desconfiei, em determinado momento eles pareciam alarmados. Estavam prevendo alguma anormalidade. Meu cavalo há essas horas deve ter se livrado da corda.
_ Será mesmo?
_ Tomara.
As águas continuaram subindo em ritmo acelerado. Em poucas horas invadiram o interior do veículo, passando do seu assoalho. Do interior, passei através da abertura de ventilação que havia no teto e procurei me acomodar com os dois cachorros em cima dele. A água foi invadindo rapidamente e não parava de subir. O mar de água doce e barrenta parecia não ter fim. Olhava por entre as árvores e o que não era verde, era água barrenta. Não tinha fim também, o meu temor de que as coisas piorassem.
_ Será esse o meu fim? Não acredito.
_ Que vacilo, em velho?
_ É colega, por essa eu não esperava mesmo.
_ Quero ver o que vai fazer agora.
_ Nem me fale. Fedegoso, me dê uma ideia.
Fedegoso era o cão macho, que muitas vezes parecia adivinhar o que eu sentia. Como ele não respondeu, pelo contrário, permaneceu parado, apenas tremia de frio, eu me preocupei ainda mais. A chuva continuava a cair e a água a subir, já quase pelo meio do trailer. Apesar de fina ela não parava de cair desde a manhã do dia anterior. Não sabia na realidade a hora, pois o relógio havia ficado sobre um dos móveis do veículo. Só sabia que já fazia um bom tempo que estava sobre o teto do mesmo.
_O sol não deu as caras desde cedo. Agora parece que já está ficando escuro.
_ O que fazer agora?
_ Terei mesmo de passar a noite desprotegido nesse teto? É o meu trágico fim. Creio.
Por sorte o veículo estava amarrado com correntes a uma das colunas da construção. Não sabia até então porque estava amarrado. Por sorte deixei para soltá-lo depois de terminada a reforma. Sorte.
_ Agora eu sei.
Olhei para uma das construções próximas e percebi os sinais da última enchente do rio. Agora a água estava chegando bem próximo dela.
_ Se subir mais um pouco não terei para onde ir.
O interior do veículo estava totalmente tomado pela água que cobria quase tudo. Não dava para permanecer nele, de sorte que tive que passar a noite sobre o teto juntamente com os cães, sentindo a chuva cair sobre minha roupa encharcada. Não tinha como me deitar e também sentado era difícil ficar por muito tempo. Se parasse também ficaria congelado, apesar de estar em uma região e mês de temperatura alta. Procurei me aconchegar com os dois cães para nos aquecermos.
A noite foi mais longa do que eu pensava. Apesar da situação, ainda tinha que conviver com o escuro absoluto. Mal podia ver as bordas do teto do veículo. Se via algum sinal era por causa da diferença de tonalidade entre o teto e a água, que possuía grande diferença de textura e poder de refletir a pouca luz existente. Diversas vezes meus cachorros latiam pressentindo alguma anormalidade. Jamais soube qual o motivo da inquietação deles, pois realmente não via nada. Alias, para não dizer nada, por vezes eu via pontos brilhantes na água, que passavam de um lado ou do outro do veículo. Seriam olhos de jacarés? Ou de outros animais talvez tentando fugir das águas?
_ Talvez procurando alimento. Engoli a seco apesar de tanta água.
Revezava entre estar agachado com os braços cruzados, com os braços segurando os joelhos e outras posições pouco confortáveis e alguns exercícios físicos de pouca movimentação. Quando não estava recostado nos cães. Isso para manter a temperatura do corpo em um nível pelo menos aceitável.
_ Essa droga de chuva não para nunca. Merda.
Quando o dia chegou eu estava exausto, com frio, com fome e com sede. Minha comida e água potável tinham se perdido.
_ Talvez quando a água baixar eu encontre minha garrafa. Pelo menos posso hidratar meu corpo.
Meus companheiros estavam firmes ao meu lado.
_ Creio eu, esses dois amigos foram meus anjos da guarda por mais esta noite. Graças a Deus ainda estou vivo.
O mar de água me cercava por todos os lados. Nada podia fazer para mudar aquela situação. Se eu conseguisse nadar, certamente chegaria a algum telhado que ameaçava desabar a qualquer momento pelo excesso de umidade nas paredes. A copa de alguma árvore mais alta, pensei rapidamente.
_ Mas o que fazer no teto de uma casa ou na copa de uma árvore?
_ Que diferença fará? Realmente nada poderia fazer, a não ser esperar.
Nadar até o outro lado do rio? Não poderia de maneira alguma. Nunca fui bom nadador. Ainda mais em águas desconhecidas, lamacentas e violentas. Com certeza as correntes desse rio aumentaram a velocidade por causa do aumento do seu volume. Nem pensar numa idiotice desta.
_ Não me resta nada mais a não ser esperar a morte ou o retorno do rio à sua caixa normal.
Três dias depois, o mar de água praticamente desapareceu. A chuva deu uma trégua e o sol até apareceu, porém discreto. Já havia descido do teto e voltado para o interior do trailer, que apesar da umidade e da lama, pelo menos o vento que tornava o ar mais frio, havia diminuído bastante. Agora podia me sentar em algum lugar. Os cachorros procuravam melhores acomodações. Encontrei meu suprimento de água, mas a comida realmente tinha desaparecido. Mesmo que a encontrasse, estaria estragada. Retirei a lama de uma velha poltrona que havia no seu interior e procurei me acomodar nela apesar de estar encharcada.
Quando consegui sair, mais dois dias depois, ainda com a água pelos joelhos em alguns lugares, o fiz porque a fome era muito grande. Meu corpo tremia de frio e de fraqueza, pois estava há dias sem comer qualquer coisa. Quando o estoque de água acabou o recurso era recolher e esperar que a água lamacenta do rio decantasse a sujeira para usar a parte limpa, mesmo correndo o risco de contrair alguma bactéria.
Procurei por meu cavalo no local onde o deixei, mas somente encontrei a corda ainda amarrada ao tronco da árvore. Na outra ponta a laçada que prendia o animal.
_ Não acredito que perdi meu cavalo. Realmente um amigo que me acompanhou e me serviu por tanto tempo. Fui mesmo muito imbecil.
_ Pode ter se soltado e conseguido escapar.
A primeira coisa que vi e que podia me servir de alimento foi uma moita de cana-de-açúcar. Esse capim possui gomos macios e adocicados os quais podem ser comidos ou mastigados para sugar a sua garapa. Temi a princípio, mas não tinha outra alternativa. Comecei a cortar os gomos e descascar com meu facão, mastigar os pedaços e sugar o delicioso caldo.
_ Delicioso, bastante doce. Poderá me servir de alimento pois é rico em açúcar e hidratante ao mesmo tempo.
Fui comedido com a quantidade, temendo algum efeito anormal.
_ Preciso esperar algum tempo para ver se aparece algum efeito ruim.
Por sorte senti-me revigorado e depois de alguns minutos continuei com mais alguns bons pedaços. Meus cachorros saíram nadando onde havia água e andando onde havia terra ou troncos caídos. Não demorou para que eu ouvisse o latido frenético deles.
_Certamente encontraram alguma coisa para comer. Espero que não seja alguma serpente peçonhenta e os ataque. Espero também que seja algum animal e que eles o repartam comigo. Ainda estou sentindo meu estômago arder e meu corpo tremer por falta de proteína.
Nosso, digo nosso, meu e dos cachorros, primeiro prato à base de proteína foi uma tartaruga que comemos quase crua. O fogo que conseguimos fazer era pequeno pois a lenha se encontrava muito molhada. Além disso a fome não nos deixava cozinhar a carne até o ponto certo. Esta tartaruga foi cercada pelos dois cães e quando corri para o local com o facão numa mão e um bom pedaço de madeira na outra eles a estavam vigiando dentro de seu casulo. Nunca havia feito isso, quer dizer, abatido um animal desses, mas a fome havia tirado todo o meu zelo e pudor. Encontrei forças e jeito para fazê-lo.
_ Está uma delícia, mesmo sem sal.
Comemos cobras, outras tartarugas, coelhos e peixes durante mais de vinte dias. Ilhados nas proximidades do pátio onde estava o trailer, fiquei esperando que a onda de chuva parasse ou diminuísse ao ponto de permitir que o rio retornasse para sua caixa normal. Era impossível sair daquele local por enquanto, muito embora com todo desconforto e risco, não havia outra solução. Vivi com os cães da forma mais primitiva possível, abrigados pelo trailer, temendo mais chuva e nova inundação a qualquer momento. Sonhava com minha estreita cama de campanha, o limitado conforto de minha barraca militar ou o interior do pequeno trailer que usava até então.
_ Mas sem outra enchente.
Capítulo 22
Depois de quase vinte dias, pude voltar para o acampamento do outro lado do rio. A estrada ainda estava lamacenta e cheia de água, além de outros obstáculos carreados pela enchente, tornando a caminhada mais difícil, agora sem o cavalo Murici. Ainda teria que atravessar a ponte e caminhar por uma boa distância até chegar ao local onde estava o acampamento e ver se estava como deixei quando desci para a margem do rio.
Levava na mão direita o meu facão, pois a pistola não era mais confiável. A munição ficou toda molhada e certamente não iria detonar a carga. A espingarda eu havia testado e não funcionou. Talvez quando a pólvora secasse bem ao sol ou fosse trocada.
_ Estou mesmo no mato sem cachorro, como dizia o velho ditado.
_ Ainda bem que é apenas um dito popular, pois meus dois fiéis cães estão sempre comigo aonde quer que eu vá.
Depois de tantas dificuldades e imprevistos, havia adquirido uma boa dose de coragem e estratégia para enfrentar cada uma delas. Sendo assim, adaptei para a mão esquerda uma haste de mais ou menos dois metros de comprimento com duas pontas afiadas em uma das extremidades. Para isso havia escolhido uma madeira bem reta e resistente de guatambu com uma forquilha bem simétrica de uns vinte centímetros em cada galho. Afiei bem as duas pontas usando o facão. Aprendi que depois de bem apontadas elas deveriam passar pelo fogo para adquirir mais resistência. Pensei em amarrar duas pontas metálicas, mas para isso minhas ferramentas não eram adequadas e nem suficientes. A haste tinha uma espessura suficiente para ser alçada pela mão esquerda e segura com firmeza.
Li certa vez em um romance que os caçadores de onça, no passado, usavam um instrumento desses para que quando o bicho atacasse, ele sempre aprumava sobre as patas traseiras, então o caçador o suportava com a haste firmando com a mão esquerda. As duas pontas além de sustentar e cercar as garras do animal no ar o feriam com o seu próprio peso. Uma vez que a outra extremidade da haste estava apoiada no solo o esforço da mão esquerda era apenas para equilibrar a fera. Enquanto isso, com um instrumento cortante na mão direita, poderia furar o abdome da fera por baixo. Era, pelo menos em teoria; o trio, caçador, haste e facão, muito eficientes. Os cães davam sem dúvida a contribuição distraindo o predador e dilacerando-o com os dentes afiados.
_ Somos cinco contra um. Eu, a zagaia, o facão e os dois cães. Não pode dar errado.
_ É. Pode ser, mas eu não quero testar.
Pensado nessa estratégia fui andando desviando dos obstáculos, escolhendo o melhor caminho entre as poças de lama e água. Afinal tinha dois amigos inseparáveis que tinham faro e audição apuradíssimos. A quantidade de água suja havia feito muitos estragos na rodovia dessa vez. Em alguns pontos, não sabia se a cor escura era da lama ou do asfalto.
_ Talvez há anos não acontece uma chuva dessa forma. Essa sem dúvida foi o golpe fatal em boa parte da estrada.
_ Se aqui está dessa forma, quero ver na ponte. _ Espero que não esteja danificada ao ponto de me impedir de passar.
Parei de repente quando uma enorme cascavel passou na minha frente assustando inclusive os cachorros, que optaram por não persegui-la.
O trailer a essa altura teria que ser esquecido. Se tudo estivesse bem na ponte, somente depois de muitos dias de sol, sem chuvas, poderia voltar para limpá-lo novamente e tentar rebocá-lo com a minha pick-up.
Pulava uma vala, uma pedra, um tronco. Desviava de outros, afundava o pé na lama aqui e testava com a zagaia improvisada a profundidade da água. Mal andei uns dois quilômetros e já tinha a metade das calças molhadas e as botas cheias de água. Sentei-me em uma pedra no meio da rodovia para descansar um pouco e ao mesmo tempo tirar uma bota e depois a outra, para esvaziar a água enlameada de dentro. Incomodava muito meus pés que estavam brancos de tanto ficarem molhados.
_ Desse jeito não consigo andar por muito tempo.
Teria que me secar um pouco para não piorar as coisas. Se pelo menos conseguisse andar descalço seria melhor, mas havia pontas de vegetação, de pedras e formigas prontas para atacar. Jamais vi tantas formigas como naquele lugar. Tinha verdadeiro pavor delas. Certa vez tive febre e até vertigem com as picadas de algumas. Depois disso passei a ter mais cuidado com elas.
Fiquei recostado por algum tempo esperando meus pés melhorarem para calçar as botas e seguir a caminhada que seria de poucos quilômetros mas cheios de obstáculos e imprevistos. Enquanto isso, as botas ficaram com as bocas para baixo para deixar a água escorrer do seu interior.
_ O rio e a ponte estão logo à frente. Disse para os cães que andavam com a língua para fora e a cabeça abaixada.
_ Caramba, a água ainda beira o vão maior da ponte. O encabeçamento ainda está sob as águas. O que devo fazer agora?
_ Não parece profundo, mas é de temer pois não dá para saber se o aterro cedeu com a força da água ou não.
A ponte não era muito longa, mas o vão central era mais alto do que as extremidades, de forma que não conseguia ver as condições do outro lado. Fiquei parado por alguns minutos pensando numa saída.
Não poderia voltar, pois as condições não eram boas onde estava. Comida escassa, muita umidade, falta de água potável. Passar mais uma noite ao relento, e em especial naquele local era muito arriscado. Já havia ingerido água do rio, depois de deixá-la decantar a sujeira por alguns minutos enquanto descansava.
_ Bem, a velocidade da água não é muito alta. É muito perigoso, mas tenho que tentar.
Com a extremidade de minha zagaia comecei a bater no piso da estrada e sentia que estava firme. Batia com mais força no mesmo lugar. Fui alterando o ponto onde batia e sempre estava firme. Bati mais à frente.
_ Firme.
_ Creio que dá.
Pisei sobre a água que não era profunda. Até certa distância podia ver as pontas das gramíneas que nasceram nas fendas do asfalto. Fui avançando com cuidado até chegar na extremidade da ponte que estava seca.
_ Que alívio. Exclamei com voz alta. Graças a Deus.
Meus cães já estavam me esperando. Com certeza eram mais corajosos do eu.
Até então estavam receosos, mas cobraram o ânimo e avançaram assim que coloquei o pé na água. A ponte estava tremendo pela força da água que salpicava na sua barriga. Enquanto caminhava meio zonzo ao ver a força da enchente no leito do rio, eu dizia para mim:
_ Sou mesmo louco. Estar sobre uma ponte nestas condições é muito arriscado.
Evitei olhar para as ondas que se formavam ao esguichar por baixo da ponte à jusante. Juntamente, espumas eram lançadas longe. Senti um tremor maior ainda quando um tronco enorme de uma árvore já sem galhos colidiu com uma das pilastras.
_ É o meu fim. Agora vou mesmo. Só não queria morrer desse jeito.
_ Pai nosso que está no céu...esqueci o restante de tanto temor.
Só quem já viu de perto a força de um rio cheio com águas vermelhas, ondulantes, rodopiando e expelindo espumas, arrastando tudo que encontrava pela frente, sabe do que estou falando.
Alguns animais grandes, vacas, cavalos eram arrastados pelas correntes, uns ainda vivos, tentando se salvar, somente com os focinhos do lado de fora, outros já sem vida eram levados ao léu.
_ Medo não. Pavor.
Era isto que eu estava sentido naquele momento, mas não havia como voltar.
Havia pedido a morte tantas vezes nos momentos de desespero, agora estava morrendo de medo. Quase sujei as calças, pois sentia toda a estrutura tremer sob os meus pés. Às vezes cambaleava ao sentir a ponte tremer. Quando olhava para a força da água corrente ficava tonto ao ver ela se aproximando do lado de cima, parecendo querer me engolir, e se afastando do lado de baixo sorrindo do meu pavor.
_ Não tenho para onde correr, mas posso apressar o passo e sair logo do outro lado. Só assim ficarei livre desse pesadelo.
Quando cheguei ao meio dela pude ver o seu final e o que me aguardava. Um mar de água maior ainda do que do lado que iniciei. Pior ainda, havia movimentação nas proximidades da água.
_Mas o que será isso agora, meu Deus?
Eram cachorros que se tornaram selvagens ao longo dos anos sem a presença de pessoas para mantê-los domesticados. Eram tão agressivos que não era possível enfrentá-los sem estar muito bem preparado. Até mesmo meus dois cães evitavam essas feras. Já havia visto matilhas deles outras vezes e a melhor alternativa era subir em árvores a uma altura que não me alcançavam. Seus caninos eram longos e ameaçadores. Babas eram lançadas de suas bocas quando rosnavam e latiam ameaçando o que viam pela frente. Eu na verdade tinha verdadeiro pavor dessas feras. Talvez mais do que das onças pintadas. Mesmo os que eram domesticados eu mantinha o devido respeito.
_ E agora, José? Usei a expressão do poema de Carlos Drummond de Andrade para ver se refletia numa solução.
_ Voltar? Não dá. Não tem outro jeito.
Estava a quase cem metros dessas feras. Voltar são outros tantos. Se quiserem poderiam me alcançar. Na verdade estavam tão apavorados quanto eu. Quando me viram foram se ajuntando em um grupo e se acotovelando. Uns adentravam na manada, outros saíam e tornavam adentrar.
Foi quando outro tronco enorme descia o rio arrastado pela forte correnteza do rio, bateu contra a ponte fazendo-a estremecer mais uma vez sob os meus pés.
_Desta vez foi bem mais forte. Temos que apressar o passo.
A ponte tremia toda enquanto uma sequência de troncos e galhos de outras árvores se chocavam repetidamente contra ela. Senti que se não saíssemos dali o quanto antes seria o nosso final. Os cães do outro lado tremiam, não se de medo ou de frio.
_ Será que estão com medo também? Parece que sim.
Meus dois não rosnaram nem se intimidaram, mas ficaram firmes ao meu lado. Um à direita e outro à esquerda como que montando guarda. Sabiam que não tínhamos alternativa a não ser aproximar-se de cabeça erguida e mostrar coragem.
_ Dizem que os cachorros sentem o cheiro do medo. Portanto, se a gente não demonstrar nenhuma forma de covardia eles se intimidam.
_ Será mesmo?
_ Veremos.
Foi o que fizemos. Caminhei rápido para o lado de onde vinha a água e eles se ajuntaram do outro lado. Como a ponte era bem larga, o suficiente para quatro pistas mais passeios para pedestres, e ainda com uma parte mais alta no meio, ficamos mais ou menos isolados uns dos outros. Num instante eles pararam todos com as caras voltadas para o nosso lado, cabeças abaixadas e rabos entre as pernas. Sinal de submissão. Iniciamos rapidamente a travessia usando a mesma técnica feita do outro lado do rio. As águas desse lado eram mais violentas e formavam uma pequena cascata no final do aterro sugerindo que este estava intacto, ou pelo menos resistindo até o momento. Apesar do indicativo, essa cascata forçava ainda mais e aumentava a velocidade da água, obrigando a mim e os cães, a tomar cuidados redobrados para não sermos arrastados pela correnteza. Os cães selvagens não quiseram nos enfrentar. Pelo menos desta vez.
_ Devem estar ilhados nesse ponto há dias.
Mesmo com fome, não ousaram nos atacar. Assim, chegamos do outro lado com certa dificuldade enquanto a água rufava no leito e nas margens externas do rio. Espumas voavam, de vez em quando saltando para fora da água. Mal olhei para trás para ver a cena. Não sei se vi mais a violência das águas, ou a atitude dos cães selvagens.
Depois de certa distância, vi quando um dos cães selvagens adentrou na água e conseguiu sair do outro lado. Um a um os demais foram saindo molhados. Abanaram o rabo e o pelo uma vez, às vezes duas cada um deles. E seguiram como nós o seu caminho. Meu coração demorou algum tempo para voltar ao ritmo normal. Cheguei a correr um pouco para ganhar distância.
_ Creio que a natureza é tão severa com os animais quanto está sendo comigo.
Meu Deus! Exclamei ao olhar novamente para traz e ver a ponte aos poucos ser tombada e arrastada, até submergir totalmente no oceano de água lamacenta e violenta. Um redemoinho se formou de uma até a outra margem, com o movimento confuso da ponte que se partiu primeiramente ao meio pela força das águas, e se afundou no meio da correnteza. Espumas elevaram-se e depois caíram novamente na confusa movimentação da água, dos restos da ponte e de vários troncos de árvores. Meu estômago revirou no meu abdome e só não caí no asfalto lavado pela chuva, porque me apoiei no meu bastão.
_ Santo Deus! Fomos salvos por pouco. Acho que deveria me ajoelhar e agradecer.
_ Creio que os cães estavam prevendo uma catástrofe por isso não nos perseguiram como de outras vezes. Disse olhando para os dois que me seguiam.
Por segurança, aguardei alguns minutos ao pé de uma árvore para ter certeza de que tinham tomado outro rumo.
Nunca soube exatamente porque eles não me atacaram e nem me perseguiram desta vez.
A fome apertava cada vez mais enquanto eu caminhava. As provisões para essa caminhada foram insuficientes e o dia já declinava. Havia perdido muito tempo na travessia do rio. Apesar de ser uma distância relativamente pequena, para poucas horas, gastei quase o dia.
_ Ô, ô. Uma cobra, e das grandes.
_ Cuidado aí, Fedegoso.
Os cães saltaram para trás e latiram impacientes. Não ousaram chegar muito perto.
_ Calma, Fedegoso. Afasta-se, Biloca, deixa isso comigo.
Eu já estava perito em caçar cobras para alimento. Afinal, era uma boa fonte de proteínas e por onde ia, encontrava alguma, de uma ou de outra espécie. Essa afinal era bem grande, mas não era peçonhenta. E se tornou nosso alimento naquele e no dia seguinte. Apesar da fome apertada, deixei para terminar de prepará-la no acampamento.
_ Se é que o acampamento ainda existe. Pensei. Cortei fora a cabeça e prendi bem na galha de uma árvore para evitar que os cães a mordessem e se ferissem nos sues dentes. Um bom pedaço para cada cão e a outra parte levei comigo. Vocês podem comer crua mesmo. Depois com mais tempo hei de fazer uma boa fogueira para cozinhar o restante.
Até o acampamento ainda encontrei mais uma, desta vez bem perigosa, a qual deixei passar, pois ela rapidamente adentrou na vegetação e se escondeu. Os cachorros também não ligaram muito. Estavam exaustos para perder tempo com ela.
_ Pegadas de onça. Farejaram e latiram avisando, mas desistiram de perseguir.
As pegadas eram recentes e profundas. Não eram tão grandes, mas tudo indicava que o animal carregava alguma coisa na boca.
_ Se assim for, não corro tanto perigo, pois, ou está saciada ou preocupada em matar a fome dos filhotes.
Outra movimentação à minha frente. Era uma manada de porcos do mato que passava fazendo sua procissão em busca de alimento.
_ Por sorte não me viram. Também são muito agressivos quando se sentem ameaçados e estão em bando. Acalmei os cães para que não latissem e assim despertassem a atenção da manada.
Quando chegamos ao acampamento, o sol já beirava a linha do horizonte colorindo de vermelho as nuvens no poente. Sinal de chuva para o dia seguinte. Alarmes armados, sinal de que está tudo bem. A égua pastando com seu potrinho esperto. O meu temor era que esse pequeno, que era prato preferido das onças pintadas e sussuaranas, se tornasse a refeição de alguma enquanto eu estava ausente.
_Por Deus. Ainda bem que estão vivos e saudáveis.
Minhas acomodações estavam secas, roupa limpa e chinelo para aliviar os pés.
_ Essas barracas são mesmo eficientes. Ainda bem que trouxe esta da última aquisição. Está sequinha e o colchão ainda inflado. Obrigado, Deus.
_ Preciso tomar um banho, antes de tudo mais.
Com um pouco de lenha seca que tinha ajuntado com antecedência e outros troncos ainda meio molhados, acendi uma fogueira com a ajuda de uma porção de álcool que fora produzido no meu destilador nos dias em que estava ausente. Tinha um fogareiro que encontrei na loja de sobrevivência o qual possibilitava usar lenha ou carvão de um lado e álcool em outro. Era portátil, muito leve e fácil de levar. Cabia em qualquer canto do transporte.
_ Um pouco de lenha seca sempre ajuda a secar os pedaços molhados. Logo, logo, tudo pegava fogo.
Com o corpo e em especial os pés lavados e aquecidos, roupa limpa, preparei uma refeição rápida. A esta altura eu não sentia mais o cheiro de mofo da roupa mal lavada e mal secada. Não demorei em ir para a cama, que estava seca e confortável. Adormeci dentro da tenda ao lado de meus dois cães amigos. Sonhei com a primeira Rita sorrindo e acenando com as duas mãos para mim enquanto desaparecia misteriosamente por trás de uma nuvem de luz branca.
_ Besteira de sonho. Era apenas um manequim. Estávamos preparados para o novo dia com suas novidades. Eu e os dois cães amigos.
_ Pai nosso que está no céu, santificado seja o Senhor, .... como é mesmo, e o resto? Bem, obrigado pelo novo dia. Novas lutas.
Capítulo 23
Quando eu passeava por uma região tipicamente comercial, abandonada como as demais, vi um grande supermercado e então resolvi procurar por produtos que porventura pudessem ter alguma utilidade. Sempre que via um estabelecimento comercial de grande porte, procurava também por evidências da visitação de pessoas, porventura em busca de alimentos.
É claro que dificilmente encontrava alguma coisa boa, mas via de regra, o sal, rapadura e alguns tipos de grãos embalados à vácuo e acondicionados adequadamente, estavam em condições de uso. Essa procura era terrível, pois muitas vezes não tinha como identificar o que era bom e o que não era. A procura ficava na maioria das vezes infrutífera. _ Que produto poderia durar tantos anos? Mas a verdade é que raramente encontrava alguns em embalagens especiais, em prateleiras especiais, ambientes adequados onde estocavam e vendiam produtos para sobrevivência a possíveis catástrofes. Encontrei vários desses ao longo dos meus dias de sobrevivente solitário. Já ouvia falar muito nesse tipo de comércio, pois alguns visionários, em tempos de militância, pesquisavam e desenvolviam ferramentas, equipamentos, alimentos e mesmo casas para esse fim. Era mais uma filosofia ou modo de vida. Vi um documentário em que uma família dentro de uma pequena propriedade vivia quase que exclusivamente de sua produção. Energia renovável, água reciclada, alimentos e até parte do oxigênio que consumiam era produzido no recinto.
É claro que, naqueles tempos, os preços desses produtos eram com certeza, elevadíssimos.
_ Cidades pequenas dificilmente tem empórios que vendem produtos alimentícios para esse fim, mas vale a pena tentar.
Muitos alimentos eram desenvolvidos para durarem décadas fora de geladeiras. De tanto observar e experimentar pequenas porções já havia aprendido a identificar alguns deles e os locais onde encontrá-los.
Enquanto esperava a estação seca, saía às vezes cavalgando a égua, às vezes na pick-up, a qual na verdade eu estava poupando, pois as próximas cidades programadas eram muito distantes. A mais próxima ficava a mais de mil quilômetros. Caso a camioneta não estivesse em condições, não sei o que seria de mim. Para uma viagem dessas em montarias, eu teria que domar e ensinar vários animais, buscando-os na natureza o que era demasiadamente difícil. O potrinho da minha égua ainda estava com poucos meses de vida e demoraria no mínimo dois anos para ser adestrado e montado. A égua logo estaria no cio novamente e teria que deixá-la com os animais soltos para cruzar e me dar outro filhote. Assim teria que esperar muito tempo. Esperar que eles crescessem enquanto eu estivesse viajando seria uma solução, porém teria que ter pelo menos uns dois para montar e outros para conduzir a carga.
_ Impossível.
_ Ou quase. Impossível para mim é aquilo que nunca foi tentado. Dizia sempre para mim.
Um trailer que pudesse ser puxado por animais seria outra solução, mas da mesma forma, precisaria de pelo menos dois para puxar e no mínimo outros dois para descansar e revezar. Teria que prever a possibilidade dos imprevistos. Seja montado ou puxando trailers, eram mais confiáveis e mais adaptáveis do que veículos motores, mas também com suas falhas. _ Por enquanto eu só posso contar com a pick-up, pelo menos enquanto ela aguentar.
_ O veículo é melhor para maiores velocidades. Fiquei matutando até tarde da noite.
_ Mas o que é mesmo aquilo? Uma caverna gigantesca, fechada por enormes muros e portões. Será um abrigo nuclear?
_ Nesse lugar? Estranho. Mas previsível.
_ Bem, como estamos ainda próximos de uma grande cidade onde outrora viviam e governavam, os políticos desse país... é compreensível. Vou explorar mais de perto.
Pude ver esse local quando estava vasculhando com uma luneta do alto de uma torre ainda de pé, e dei de frente para uma montanha que ficava não muito próxima da cidade. Depois a curiosidade me chamou a atenção para uma área plana na encosta da serra.
Enquanto percorria as proximidades do local, fui margeando um enorme muro que se estendia em parte sobre uma colina e em parte delimitando uma área no seu sopé. Comecei por um local onde havia um galpão relativamente simples, porém construído com materiais resistentes para os padrões da cidade. Pouco a pouco fui percebendo que se constituía de uma grande área delimitada por enormes blocos de concreto formando um alto e resistente muro disfarçando um condomínio residencial.
_Esses blocos são de concreto maciço, mas se parecem com materiais comuns. Estratégica de proteção?
_ O que será que se esconde por trás desse muro?
_ A curiosidade não deixou por menos. Fui verificar bem de perto.
No interior, pude ver de imediato por uma abertura no muro, que havia muitas árvores, ruas, casas residenciais, galpões diversos, mas o que me chamou a atenção foi uma grande construção com paredões de pedra, numa extremidade do condomínio, recostado ao morro. Parecia ser a entrada para algo muito bem protegido.
_ Por que o muro da aldeia delimita parte do morro? Bem, não interessa muito agora.
Certamente existia algum segredo para fecharem o local a sete chaves. Deduzi isso depois de explorar as cercanias e constatar a presença de três enormes portões, voltado para o norte cardeal aproximado. Todos protegidos por enormes coberturas. O maior deles abria passagem sobre uma via asfaltada nas laterais e concretada no centro longitudinal. Possuía um comprimento considerável abrindo uma passagem de largura suficiente para grandes aviões. Deduzi que era uma pista de pouso e servia para aeronaves de grande porte. Elas se escondiam dentro da área murada. Outro portão menor, porém grande o suficiente para a passagem de quatro veículos ao mesmo tempo. Ficava no alinhamento de uma via de acesso também de porte considerável, e paralela até certo ponto à pista de pouso. O terceiro portão era menor, mas suficiente para passar dois veículos, um entrando e outro saindo. Na primeira tentativa para abri-lo, notei que estava destravado. Puxei e com pouco esforço abriu parcialmente, deslizando sobre rolamentos que rangiam quebrando as crostas de ferrugem. Depois de certo ponto somente abriu com o uso de uma alavanca e muito trabalho. Era muita ferrugem, pedregulhos e trepadeiras atrapalhando por todo lado.
_ Por esse portão podem entrar e sair veículos, um de cada vez. Essas cancelas servem para controlar a entrada e saída. Com certeza.
_ Hoje não servem para nada mais.
_ Sempre fomos cidadãos, pagamos impostos, votamos, mas não sabíamos de muita coisa que acontece no nosso país. Muitas vezes debaixo do nosso próprio nariz.
Nas guaritas fortificadas na entrada dos portões notei a presença de remanescentes de câmeras de vídeo e de armas pesadas; umas recostadas nas paredes e outras caídas nas proximidades. Todas cobertas por muita poeira, fezes de aves, ferrugem e teias de aranha. Além de, é claro, carcaças humanas por todo lado. Depois dos portões, para dentro, a continuidade das pistas levava aos galpões e outros destinos. Pelas construções e os demais aparatos, dava para perceber que poderia oferecer um rígido esquema de segurança. Não apenas para veículos, mas também para pedestres.
Quando o portão menor se abriu, foi como se uma outra cidade existisse. Fiquei parado por alguns minutos contemplando a grandiosidade do local, apesar do estado de abandono. Primeiramente uma série de galpões, uns com paredes e outros abertos; coberturas galvanizadas com camadas de isopor por baixo. Mesmo desgastados dava para perceber o material usado. No interior deles, veículos e mais veículos, aviões de guerra, pequenos jatos, aviões comerciais e cargueiros. Guindastes, gruas e containers de vários tamanhos. Oficinas e depósitos, escritórios e postos de abastecimentos. Veículos militares especiais que eu ainda não conhecia. Fiquei de queixo caído quando vi tudo aquilo, escondido por trás de muros e fortificações.
Em primeiro plano um conjunto formado por hangares diversos, oficinas e grandes depósitos para variadas utilidades. A seguir, construções menores e uniformizadas sugeriam mesmo uma vila militar. Eram casas enfileiradas, ao nível do solo, e sobrados em dois e três pavimentos, grandes e pequenos. Blocos de apartamentos, todos separados por ordem de projetos. No centro, um parque, ou o que se podia deduzir de um, com muita ornamentação e jardinagem. Uma nascente bem no meio do condomínio, de onde iniciava um curso d'água que eu não consegui identificar do lado de fora.
_ Certamente esse carrego foi drenado até seu lançamento em um ribeirão mais próximo.
_ Até essa pista de pouso para grandes aviões!
_ Quem diria! Nesse lugar. Hoje totalmente abandonada.
_ Ser patriota é uma coisa, e ser palhaço do governo é outra.
_ Se todo esse arsenal era para a defesa da pátria, não houve tempo para serem utilizados. A catástrofe chegou e pegou todo o aparato do governo desprevenido.
À medida que fui avançando no interior do condomínio tive a impressão de que a cidade adentrava ao chão por baixo da montanha por meio de túneis, urbanizados. Os grandes túneis formavam avenidas e ruas que derivavam para a esquerda e para a direita. Entradas laterais ao nível do solo e outras que penetravam para níveis inferiores, como enormes sumidouros. Às vezes para cima. Era uma arquitetura tão exótica, que nunca havia visto antes. Janelas e sacadas, escadas e portas, cavadas e cravadas nos paredões de rocha bruta. Tudo ia sumindo na escuridão à medida que os túneis se aprofundavam.
_ Preciso buscar uma boa fonte de iluminação para melhor explorar esse local. Pode ser ideal para viver em segurança contra animais ferozes.
_ Até parece uma cidade cenográfica de filme futurista.
Já havia visto até leões, ursos, tigres e outros animais não nativos nessas terras. Certamente saíram dos zoológicos e conseguiram procriar e aumentar. Uma proeza da natureza que os biólogos de outros tempos tinham muita dificuldade em conseguir.
_ Deveria haver recursos tecnológicos, que eu não conhecia, aptos a funcionar, é claro. Quem sabe uma extensão do nosso projeto tenha caminhado nesta direção.
_ Tolice.
Uma praça, ao que parece, no final de um túnel no interior da caverna, dava para ver até onde a pouca luz do farol permitia. O grande antro acomodava um grande número de equipamentos, armas e veículos de guerra. Em uma ala lateral, talvez um sistemas de telecomunicações, com uma central de computadores de grande porte. Pude distinguir no facho de luz do farol, vários terminais com cabines enfileiradas. Vários grandes monitores formando um biombo ao fundo. Mais à frente, em um elevado, uma espécie de anfiteatro para centenas de pessoas. Pelo menos até onde pude ver com os faróis do carro. O local no escuro era apavorante como cenas de filmes de terror, pois além do escuro e aspecto de abandono, muita sujeira e teias de aranha. Até onde minha coragem permitiu eu adentrei para verificar. Apesar de ser como uma praça de exposições, na verdade era um enorme salão, tendo como cobertura o próprio teto da caverna que no local era muito alto.
_ Assustador.
_ Vou sair desse local. Estou tendo calafrios.
Mesmo assim, em outras visitas, cheguei a locais diversos, com grandes possibilidades de sobrevivência.
_ Como é que mantinham esse local com todos esses equipamentos, veículos e até aviões, longe da imprensa?
_ Ou longe dos meus olhos.
_ Também, ele pode ter sido construído depois do meu ingresso na cápsula.
_ Verdade. Dei de ombros.
_ Não tínhamos ideia desse lugar antes.
_ Quem sabe o governo estava prevendo uma catástrofe como a que ocorreu. Só que foi pego de surpresa.
_ Eu que não acreditava que os projetos de sobrevivência fossem necessários. Mas até o governo acreditava nessa possibilidade e pelo que vejo trabalhava em projetos afins.
Minha busca se concentrou em produtos alimentícios que certamente existiriam. Remédios? Minha sobrevivência dependia muito de vários tipos de alimento para complementar o que conseguia. Lá fora estava cada vez mais difícil, principalmente depois que minha munição molhou. Eu que nunca fui bom de pontaria, ainda mais com armas deficientes, agora tinha que me virar como podia.
_ Mas isso aqui é um biodigestor! Está embalado como item de sobrevivência para quando se fizer necessário. De tamanho compatível com minhas necessidades e possibilidades de transporte.
Entendi pelo rótulo que trazia aderido na lateral, embora meio apagado. Seria capaz de gerar uma boa quantidade de gás, desde que tivesse material orgânico disponível para fermentar e decompor. Disponibilizei-o para ser transportado com a pick-up para o acampamento, pois a princípio não estava disposto a permanecer naquele lugar tenebroso. Como não encontrava alimentos em condições de uso, resgatei mais armas de fogo leves, e boa quantidade de munição. Estas uma vez testadas, as amostras mostraram-se eficientes na sua grande parte.
Estavam muito bem acondicionadas à semelhança das anteriores no sistema à vácuo recheada de gelatina. É claro que, no caso de munição, esta se encontrava dentro de invólucros plásticos à vácuo depois a gelatina e por fora outra camada de plástico.
_ Os militares sabiam muito bem lidar com armas e munições. Para os civis, é claro, tinham um prazo de validade bem pequeno, mas essas aqui, certamente não foram produzidas para civis.
Cada vez que encontrava algo protegido por esse tipo de embalagem fazia os procedimentos recomendados na própria embalagem para desfazê-la e o resultado era sempre muito bom. Não era perfeito, mas apresentava sempre no mínimo sessenta por cento de positividade. Os alimentos que encontrei, não tive coragem de experimentar. Também, o aspecto da maioria deles era nada agradável. Com isso preferia deixar de usá-los e ficar com o que era possível. Recolhi apenas alguns exemplares de sementes para o plantio, as quais foram aprovadas nos testes realizados.
_ Quando seguir viagem, vou levar dessas sementes para que, quando fixar residência, se isso acontecer, formar novamente minha plantação.
_Silicone? Sim. Silicone.
_ Muito útil.
Havia tambores cheios desse produto. Ele se mostrou tão útil nos pneumáticos ainda na fortaleza. Quem sabe encontro algum veículo mais apropriado e em boas condições para seguir viagem.
_ Faço as adaptações, mesmo que leve alguns anos. Afinal posso me estabelecer por aqui pelo tempo que precisar. Só preciso me acostumar com a escuridão dos seus inúmeros túneis e pistas subterrâneas. Ferramentas não faltam por aqui. É só fazê-las funcionar.
_ Conserto um grupo gerador para fornecer energia elétrica e pronto, as máquinas podem funcionar normalmente.
_ Esse local pelo que vi até agora apresenta maiores possibilidades de sobrevivência.
Visitei o local, varias vezes com a pick-up, mantendo os faróis ligados. Percorri mais de sessenta quilômetros de túneis com ruas, formando uma verdadeira cidade no subsolo da montanha. Casas para residência, hospitais, depósitos de medicamentos, mercados, grandes depósitos de alimento e um colossal depósito de água. Tudo que era perecível se encontrava embalado de maneira especial. _ Até quadras de exportes tem aqui. Era, sem dúvida alguma, uma cidade escavada no subsolo da montanha. Descobri aos poucos, vários níveis que sumiam dentro da rocha bruta. Até onde calculei daria para abrigar mais de cem mil pessoas comodamente. Em alguns lugares as formações residenciais escavadas na rocha se elevavam por paredões como se fosse uma colmeia. Ruas, viadutos, escadas, elevadores, tanto horizontais como verticais, e passarelas interligavam os conjuntos reisidenciais. Nunca consegui visitar o local todo, mesmo passando apenas pelas ruas e praças. Também não ousaria entrar em nenhuma dessas residências desprovidas de energia elétrica para uma boa iluminação.
Numa espécie de laboratório ou oficina, encontrei uma grande quantidade de equipamentos mecânicos e eletrônicos, vidrarias, destiladores e grande quantidade de equipamentos e sistemas para laboratório. Um depósito de combustível com quantidade suficiente para muitos anos.
_ Certamente o governo mantinha esse lugar como abrigo estratégico prevendo tempos de guerra ou catástrofe natural.
_ Terá ele usado esse local por algum tempo?
_ Até agora não encontrei indícios, muito embora esteja cheio de ossos.
_ Se até o governo foi pego de surpresa, sem dúvida o que ocorreu foi algo realmente sem precedentes na história da humanidade. Foi minha conclusão, mesmo sem uma investigação mais profunda.
_ Também, para o tipo de arma que presumo ter sido usada, nem mesmo essa fortaleza seria suficiente para salvar quem quer que fosse.
_ Nem mesmo as Forças Armadas foram suficientes seque para prever o que ocorreu.
Abastecia manualmente o meu veículo e sempre que possível continuava explorando os incontáveis túneis e algumas casas mais acessíveis. A ação do tempo, mesmo desprovido de manutenção foi menos austera nesse local. Tudo estava muito bem conservado. Apenas o acumulo de fezes de aves e insetos que conseguiam adentrar e conviver com a escuridão. Os temíveis morcegos. Morcegos de várias espécies. Sempre que eu passava por um local próximo ao teto eles voavam aos bandos, incontáveis.
_ Com certeza o governo esperava e se preparou para uma catástrofe. Sendo assim devo encontrar respostas para meus questionamentos.
A intenção, com certeza, era abrigar alguns escolhidos ou apenas o governo e familiares. Pelo visto, poderia abrigar milhares de pessoas por vários meses, ou até anos, sem contacto com o mundo exterior.
_ Como havia muitos ossos, entendi que as pessoas foram pegas de surpresa. Do pondo de vista humano, creio que aqui eles duraram tanto quanto os que estavam do lado de fora.
_ Mas, com certeza, os membros do governo não estavam neste local. Não há indícios das suas presenças.
_ Quem sabe, tudo começou aqui mesmo.
_ Não acredito. Não era a filosofia do nosso governo.
_ Conjecturas podem indicar o caminho das repostas. É só buscar a possível comprovação.
No início me assustava com facilidade com qualquer barulho das aves. Com o passar dos dias e meses, fui me acostumando. Certa vez os faróis do veículo falharam enquanto eu estava em um dos pontos mais profundos do subsolo. A escuridão foi absoluta. Jamais me encontrei em tal escuridão. Nunca me esquecerei desse episódio. Foi muito tétrico e deprimente, pois não dava para ver absolutamente nada. Perdi os sentidos por completo, pois não encontrei nenhum referencial para me orientar. Senti uma angústia muito grande e parece que a realidade desapareceu de diante de mim. Até que, tateando pelos compartimentos do veículo, encontrei uma das lanternas que sempre tinha comigo. Parece que depois de uma eternidade. Puxa, que alívio. Jamais havia sequer imaginado uma escuridão desse nível.
_ Parece que eu previ um problema desse tipo. Ainda bem que estou preparado.
As lanternas não eram tão eficientes naquele lugar, mas ajudaram até que eu consertasse os faróis. A partir daquele dia instalei luzes de emergência de grande potência as quais encontrei no almoxarifado do laboratório de física. No momento da escuridão um frio arrebatador batia nas minhas costas, me fazendo tremer a qualquer barulho ou pensamento ciclotímico. A partir de então, não mais me esqueci de levar recursos extras, pois se realmente houvesse um problema mais sério de iluminação não seria possível sair do local.
_ Morrer sozinho nessa escuridão deve ser a pior forma de ter os dias findos.
_ Não quero passar por outra situação dessas.
_ O inferno deve ser como essa situação.
Se perdesse em determinados locais seria impossível chegar à porta, mesmo ela se encontrando aberta. A luz que entrava por ela era insuficiente para tanto espaço e não alcançava de maneira alguma os pontos mais profundos.
Ainda não havia descoberto a fonte de oxigênio para suprir o local, mas era perceptível que ela existia. Certamente ele vinha mesmo da parte externa por meio de túneis e grandes exaustores que permitem ou fariam a renovação do ar a partir do alto da montanha.
_ Com certeza, se o ar ficar contaminado aqui dentro não tem como renová-lo rapidamente sem um enorme sistema de exaustão. Como não há energia, com certeza eles não estão funcionando. Portanto é melhor ficar sempre nas proximidades da porta de acesso. Onde o vento circula com mais rapidez. Deduzi.
_ Seria bom se eu conseguisse fazer funcionar um grupo gerador para iluminar principalmente os locais de interesse. Mas como fazê-los funcionar? E como reduzir a demanda para a capacidade dele?
A princípio, passei vários dias cultivando a dúvida se me instalaria dentro desse abrigo ainda que fosse nas proximidades da porta para melhor aproveitar a luz e o ar. Com certeza estaria mais seguro do que no acampamento.
Por fim, consegui instalar e fazer funcionar um grupo gerador em uma construção bem próxima do portão. Ali instalei também minha oficina. Sempre que necessário removia para o local tudo que precisava.
Algumas horas por dia, eu procurava os arquivos e pesquisava buscando as respostas que tanto me atormentavam. Outras tantas horas eu caçava animais e fazia outras atividades. Aliás, o que mais me prendeu nesse lugar foi a possibilidade de encontrar respostas.
_ Minhas armadilhas para apanhar animais não estão funcionando direito. Preciso saber o que está acontecendo com elas.
_ Creio que estou me envolvendo muito com o trabalho e me esquecendo de que preciso me alimentar.
_ Não pretendo plantar nenhuma semente, pois não quero passar muito tempo nesse lugar. Sendo assim preciso encontrar alimentos ricos em proteínas e gordura.
Decidi ir até o rio pescar alguns peixes e salgá-los para serem conservados por mais tempo. São além de deliciosos, ricos em recursos alimentares. Quem sabe não encontro também algum animal comestível.
O certo é que não adiantava ter muita carne sem os recursos adequados para conservá-la. O local tinha geladeiras e freesers mas não funcionavam. Não gelavam. Os recursos disponíveis eram o sal, a fumaça e o sol. Por vezes encontrava ninhos de aves e recolhia os ovos. O leite que eu tanto saboreava na fortaleza agora não estava disponível.
_ Se pelo menos eu conseguisse domesticar uma cabra. Ela produz leite suficiente para mim e os cães. É pequena para o transporte e come pouco.
_ Ou uma mini vaca.
Minha vida se resumiu nos últimos meses de chuva a trabalhar na adaptação de um novo veículo, e enquanto descansava do trabalho braçal, eu pesquisava nos arquivos buscando alguma resposta. Pelo rótulo da embalagem acabei por descobrir um carro militar com grandes possibilidades de uso no meu deslocamento. Não era tão grande, nem muito pequeno como o que utilizei até agora. Era potente e adaptado para estradas de terra.
Uma indicação no rótulo dizia para retirar a camada protetora externa e aguardar alguns dias para que o gel escorresse. Comecei, então, a retirá-la e enquanto o gel ia escorrendo pelo piso eu tomava outras providências. Como não tinha água com pressão suficiente para lavar o gel, aguardei por oito dias até que tudo ficou degelado.
Dentre outros itens importantes, o veículo dispunha de um sistema de lâmina na parte dianteira para funcionar como trator e terraplanar estradas, e, uma vez utilizada, podia ser recolhida hidrostaticamente para a parte superior da cabine. Um depósito de combustível grande o suficiente para rodar centenas de quilômetros.
Mas o veículo não rodaria confortavelmente por muito tempo com os pneumáticos normais. Tive então de reforçar por dentro com outras camadas de borracha e preencher com silicone, a exemplo do que havia feito para a pick-up. Como encontrei uma bomba hidráulica manual que produzia uma grande pressão, injetei o silicone por um bico improvisado até adquirir uma consistência aceitável. Como eram seis pneus mais alguns de reserva, gastei vários dias envolvido com eles. Acabei por gastar mais tempo do que pretendia, mas valeu a pena.
_ Os animais, a égua e o potrinho, vão no mesmo reboque que já estava adaptado. Tinha espaço suficiente para outros dois, uma vez que o cavalo desapareceu e retirei meu dormitório da companhia deles.
_ São tantos itens que tenho que levar, não posso me esquecer de nada. Interior, bagageiros e teto do veículo entraram no projeto para a adaptação. Afinal são mais de mil quilômetros de estradas em condições adversas. Não sei o que vou encontrar pela frente. Tenho que sair daqui bem guarnecido.
_ Bem, de qualquer forma, onde ele parar, se parar, montarei acampamento até resolver o problema.
_ Ou encontrar outra solução. É claro.
_ Como veículo militar esse deve ser muito resistente.
_ Vai dar certo.
Nessa expectativa, trabalhei por meses sem parar para descanso até o dia da partida, sabendo que não estava levando tudo que precisava. Mas levava o possível e o suficiente para chegar onde pretendia. Assim, o veículo foi totalmente adaptado para minhas necessidades e possibilidades das estradas que iria encontrar pela frente. Imprevistos? Certamente apareceriam a partir do primeiro dia da viagem. Mas de certa forma eu já havia me acostumado com eles. Os novos desafios eu teria sempre que conviver com eles ou aprender a superá-los um a um na media em que fossem aparecendo.
_ Minha vida nesses anos de solidão tem sido mesmo de imprevistos e improvisos. Sozinho e com poucos recursos devo partir e ver no que vai dar.
_ Sempre fui entusiasmado e hoje creio que sou um homem de fé. De qualquer forma, ainda acredito no poder da inteligência e da força de vontade.
_ Também tenho a fé que me remove da estagnação.
_ Não vou desistir tão facilmente. Ainda creio que o impossível é aquilo que ainda não foi tentado. Portanto continuarei tentando.
_ Só tenho que fazer vários testes com o veículo, bem como, com os equipamentos que pretendo levar comigo.
Capítulo 24
Quando percebi que estava preparado para continuar, já era novamente o mês de agosto. Havia perdido muito tempo. Perdido ou ganhado, pois numa aventura todos os possíveis e impossíveis devem ser bem calculados. Gastei muito tempo para adaptar o novo trailer. Mecânica, suspensão, freios, pneus e mobiliário.
_ Respostas?
_ Até agora nenhuma resposta satisfatória.
_ Se até esta fortaleza com todo o aparato tecnológico e militar foi pega de surpresa, quem dirá os cidadãos civis.
_ Até o governo, com sua rede de informantes, foi surpreendido, os civis com certeza não chegaram a saber do que morreram. Melhor assim.
_ Por outro lado, nos preparativos fui bem sucedido e todos os itens funcionaram muito bem nos testes. Só resta mesmo o teste definitivo. A viagem.
Sabia que valeria a pena sair mesmo na certeza de que havia pouco tempo sem chuva. Por outro lado, neste período as estradas deveriam estar secas e eu poderia aproveitar pelo menos uns setenta dias para viajar e alcançar uma dessas cidades, mesmo que pequenas para passar outro período chuvoso.
_ Mas que idiotice minha, ficar pensando em cidade. Nelas tenho encontrado o mesmo que encontro fora delas. Aliás, não existe cidade sem habitantes. O que existe na verdade são casas em ruínas e escombros. Ruas e praças transformadas em matagal.
_ A não ser a possibilidade de encontrar algum veículo em melhores condições, como esse, combustível e coisas que ainda podem me ser úteis. De qualquer maneira, tenho o suficiente para enfrentar grandes aventuras.
_ O que me falta não posso mesmo ter.
_ O que mais quero é encontrar pessoas e respostas. Vou em frente.
O clima estava quente e abafado, com a vegetação sem vida e ressecada. O céu quase sempre estava coberto por uma camada de névoa seca e durante o dia o sol queimava a pele e doía nos olhos. Qualquer aventura exposta a ele fazia a pele arder e em poucas horas ela ficava avermelhada e logo em seguida escurecida. Trabalhar somente na sombra de um abrigo. Viajar naquele clima tinha suas vantagens, mas a temperatura era extremamente elevada. Até mesmo para um veículo produzido para trabalhar em marcha lenta tinha que ser monitorado com frequência por causa da elevação da temperatura do motor.
Se é que se pode falar em sexto sentido ou intuição, era isso que me indicava o sul, onde havia uma das maiores cidades do mundo. A não ser a lógica de encontrar um dos maiores parques industriais e comerciais do país. Antes de entrar na cápsula era uma metrópole com mais de 12 milhões de pessoas que se comprimiam em pequenas e grandes casas. Apartamentos luxuosos e pequenos quitinetes. Em condomínios fechados e em favelas construídas com sobras de materiais, pedaços de madeira, plástico e metal. Qualquer tipo de material servia para ser usado nessas construções. Tudo dependia da necessidade e da imaginação. Barracos espremidos, tais quais seus moradores, em morros e margens de cursos d’água fedorentos. Se locomoviam em veículos apinhados, em ruas estreitas e sobrecarregadas. Em ônibus sempre atrasados, velhos e fumacentos. Em metrôs onde sobravam pessoas e faltavam vagões. Gente de toda idade e condição social. Uns iam de bicicletas, de motocicletas, de carona ou mesmo à pé. Iam para o trabalho, para casa, para o hospital, para o supermercado, para o dentista, ao parque ou à igreja.
Sempre morei em uma cidade de porte médio por preferência e nunca me submeti a esse acanhamento e correria.
_ Agora estou indo para lá. Destino?
_ Não tracei isso para mim.
_ Não mesmo.
_ Bem, pode ser um amontoado de prédios, casas e escombros, mas com certeza não tem pessoas. Não tem gente como eu para fazer barulho. Para fazer a pantomima da vida.
Nesta megalópole, a maioria das pessoas gastava em média três horas por dia somente dentro de transportes para ir e vir do trabalho. Eu, em minha pequena cidade, como diziam eles, gastava menos de meia hora e às vezes reclamava do tempo perdido. Já pensava em uma alternativa para ganhar tempo.
Na minha imaginação, nessa cidade encontraria alguém ou algum recurso para dar resposta a algumas de minhas indagações.
_ Possivelmente no meio de tanta gente pelo menos alguns sobreviveram. Hei de encontrá-las caso ainda estejam vivas.
Durante a minha permanência dentro da caverna, fiz algumas descobertas que não tinha feito na fortaleza. Eram recursos tecnológicos que muito me ajudaram dali em diante na minha viagem rumo ao sul. Uma dessas descobertas foi um simples cabo adaptador e fonte para alimentar o notebook a partir da bateria do carro. Não havia pensado nem encontrado algo semelhante. Tão simples e funcional. Foi de uma ajuda importantíssima que colocou novamente em minhas mãos várias enciclopédias para me ensinar ou, me fazer lembrar do havia esquecido. Alguns dos meus recursos de mídia, mesmo velhos e cansados, ainda rodavam e me serviam. Um pequeno grupo gerador bicombustível, placas solares, embaladas a vácuo total, e outras inovações que instalei no veículo, permitiram a sobrevivência de equipamentos e objetos, e mesmo de alguns alimentos, até os meus dias, em perfeito estado. Todos estes, encontrados no interior da caverna.
_ Pelo menos de informações e de energia estarei suprido durante a viagem ou até encontrar outros para substituir.
- Ou até que eles travem de vez.
Esperava encontrar pelo caminho, depósitos de combustível em condições de uso. A maioria dos que havia encontrado até agora estava adulterado com muita água provinda de umidade e do tempo transcorrido. De qualquer forma, eu tinha agora, além de uma destilaria um biodigestor que eram pequenos e geravam pouco combustível, mas para minhas necessidades básicas, eram suficientes. O veículo que adaptei tinha um depósito de óleo diesel com capacidade para cerca de mil e duzentos litros. O suficiente para uma longa viagem em condições normais.
_ É claro que rodando somente com marcha forte, o veículo gasta muito combustível. Além do mais, o peso extra do óleo, mais água potável e o restante da carga.
Tinha muita coisa para levar, mas não havia outra forma. O veículo não era tão pequeno, nem tão grande. Digamos de porte médio, com um motor possante para o seu tamanho. Não muito pesado. O ideal para minhas necessidades e as condições das estradas ou trilhas que iria encontrar. Optei por levar não o necessário, mas o indispensável.
Como sempre gostava de sair ainda de madrugada, o fiz também dessa vez. Todos os pertences que seriam levados já estavam acomodados nos bagageiros, e nas gavetas. A égua e o potrinho passaram a noite amarrados para facilitar o embarque na hora da saída. Ensaios anteriores os ensinaram a entrar e sair do trailer rapidamente e sem problemas. Os cães não eram problemas, pois gostam de viajar dentro de um veículo. Era só ligar o motor e abrir a porta, eles pulavam para dentro na maior alegria. Tomei um chá quente, feito na hora, e comi parte da carne frita que havia preparado no dia anterior para a viagem. A carne de sol frita era um tipo de alimento ideal, pois além de nutritivo, não estragava com facilidade, durando vários dias em perfeito estado, podendo ser consumido com segurança.
Quando saí do local o sol dava sinais de claridade, avermelhando o horizonte com seus raios matinais. Perdi o sono de tanta ansiedade antes da partida. Por isso saí muito cedo, porém, não antes de poder ver claramente a estrada. O cenário era de rara beleza. Aliás, gostava de ficar em locais estratégicos para assistir o sol nascer ou se pôr. Na caverna isso era impossível. Somente pude ver a beleza desse cenário divino quando já me encontrava na estrada, fora dos domínios do abrigo. Em dado momento no alto de um morro, não contive e parei o veículo para apreciar a beleza do cenário. Agradecer por estar vivo e poder contemplar algo tão maravilhoso. O silêncio que um dia, aos poucos me matava de tédio, agora me fazia sentir bem comigo mesmo. Desliguei o motor do veículo para sentir aquela paz. Somente ouvia o cantar dos pássaros, dos grilos e de outros bichos que anunciavam o amanhecer. Nada mais. Às vezes, o silêncio era tão profundo que eu sentia um princípio de vertigem.
_ Vamos embora, não podemos ficar parados tanto tempo. A viagem é longa e com certeza teremos outras oportunidades de contemplar muitos outros amanheceres e ocasos. Disse comigo mesmo.
_ Com certeza. Obrigado, Deus.
A continuação da viagem trouxe percalços, tropeços e barrancos. Pontes caídas, parcialmente destruídas. Estradas interrompidas por obstáculos e desmoronamentos, por erosões, por inundações e manadas de animais no que restava da pista.
Não conseguia avançar muito por causa desses problemas, mas com os recursos que trazia, lentamente ia superando cada um deles. Às vezes demorava dias para contornar alguns deles. Muitas vezes tinha que pegar a motocicleta e sair pelo meio da vegetação com todo o cuidado procurando por um desvio alternativo. Também, a minha égua Maracujá era outro recurso. Sempre que saía do trailer meus cães iam comigo, me protegendo e perseguindo pequenos animais.
Com o carrinho de mão, a pá, e muita disposição removia verdadeiras quantidades de solo e pedras para tapar buracos. Com a catraca ou com a égua removia troncos e pedras maiores, e até pequenos veículos. Os que eram possíveis. Roçava a vegetação pequena, cortava as maiores com o machado ou a motossera. Quando necessário, usava a lâmina do próprio veículo. Quando dava, ia em frente na hora. Quando não dava, montava acampamento até que a situação fosse contornada. Cheguei a passar quase um mês no mesmo local construindo pequenos desvios pelas marginais da via. Em alguns rios gastei outros tantos dias cortando madeira e fazendo reparos e até pequenas pontes. Para os locais muito úmidos usava o sistema de correntes abraçadas aos pneus que tracionavam o veículo para aumentar o atrito entre eles e o solo encharcado e coberto de gramíneas. Usava a imaginação, o pouco conhecimento e as informações contidas nos HDs dos cansados computadores de mão que trazia comigo.
Os três primeiros meses depois da minha partida da caverna passaram rápidos e a viagem até que rendeu, pois consegui alcançar mais da metade do percurso programado. Tudo indicava que o restante seria feito pela mesma rodovia, caso não perdesse a sua sequência. Isso era comum, pois ao percorrer em perímetros urbanos de várias cidades, muitas vezes tinha a sensação de que esta era interrompida pela urbanização. Me perdia, perdendo tempo precioso.
Trevos sem sinalização, e muitas vezes eu seguia por caminhos indesejados até que me dava conta de que estava errado. Tinha que voltar, muitas vezes perdendo meio dia ou mais. Por outro lado, os diversos postos de pedágio, outrora interrompendo o transito e atrasando viagens, agora eram locais de descanso e não de preocupação.
_ Não posso sair dessa rodovia, pois as alternativas tanto podem me levar para outras localidades como para estradas mal conservadas.
_ Isso seria horrível. Nada pior do que mais uma frustração.
Sempre que chegava a um trevo ou viaduto, tinha que parar para analisar bem antes de seguir. Sempre foram para mim locais traumáticos, pois tinha alguns sintomas de labirintite, e com isso me perdia com facilidade.
_ Parece que esses trevos foram feitos para enganar os motoristas menos avisados. Ainda mais hoje, que não existe mais qualquer tipo de sinalização.
_ Vamos procurar por placas caídas no meio do capim. Dizia muitas vezes.
_ É verdade.
Em alguns deles ainda podia ver os restos de placas de sinalização roídas pela ferrugem, por queimadas sucessivas, e pelas chuvas. Aliás, queimadas eram um problema para mim durante os meses de agosto e setembro, que antecediam o período chuvoso e a nova brota da vegetação. Na maioria dos locais as folhas e hastes da vegetação dessecavam muito e mediante qualquer fagulha a catástrofe acontecia. Passei por esse problema num dia quente de agosto, quando presenciei a correria de uma manada de bois e vacas por um terreno rochoso. Pude ver faiscas sendo produzidas pelo atrito das pedras que rolavam quando eram pisadas ou arremessadas pelo trote dos animais.
_ Apavorante. Nunca tinha visto algo semelhante. Se estivesse fora do veículo certamente seria pisoteado por esses animais em fuga.
Era compreensível que ocorressem incêndios nessa época do ano. Dessa vez tive sorte, pois havia pouco material combustível fragmentado. Outra causa de incêndios nesse período, sem dúvida eram as quedas de raios, que aconteciam com mais frequência nas primeiras chuvas, momento em que a vegetação ainda se encontrava muito desidratada pela ausência de chuvas.
Somente cheguei às imediações da cidade no ano seguinte, depois de passar uma estação chuvosa em acampamento na beira da estrada. Senti um certo alívio e uma palpitação quando vi pela primeira vez do alto de uma montanha os primeiros sinais do que restou daquela cidade. Por mais distante que estivesse das respostas, isso me dava certa ansiosidade e vontade de entrar nela e começar minha exploração.
Precisava encontrar um bom local para montar acampamento, mas sempre que possível deveria ficar dentro do trailer quando parasse ao fim de cada dia de exploração. Ele era mais seguro do que a maioria das construções do lugar.
_ Ainda bem que agora tenho um local mais humano para repousar, mas é claro que estou preparado para outras situações. Espero que sejam para melhor.
_ É verdade. Essa cidade é muito grande. Se for muito longe do acampamento, posso me perder, ou não conseguir voltar no mesmo dia. Também creio que haverá lugar não alcançável pelo veículo. Tenho um número muito grande de lugares para pesquisar.
Esse era o meu próximo desafio, montar acampamento. Depois sair à procura de prédios do governo, de jornais, de televisão, fábricas e meios de sobrevivência. Nestes locais onde as notícias são processadas, deve haver alguma coisa registrada, mesmo que não tenha tido tempo para veicular. Fiquei pensando nisso quase uma noite inteira. Talvez a ansiedade me fizesse rolar na cama até a madrugada, meditando e pensando.
_ Na verdade, o que vou encontrar ali? Pessoas, arquivos com respostas, ou um local para passar o resto dos meus dias...
_ Não sei. Realmente não sei.
_ Obstáculos certamente vou encontrar. É o que sempre encontro por onde ando.
_ Não seja tão pessimista. Agora que chegou até aqui tem que seguir avante.
A cidade talvez possuísse mais perigos e transtornos do que o campo. Nas estradas não haviam prédios caindo e caídos, locais onde o perigo se escondia. Se encontrasse alguma pessoa, seria ela amistosa ou teria se transformado em uma fera voltando ao seu estado instintivo?
_ Uma nova raça.
_ Também, convivendo somente com feras o tempo todo qualquer ser humano se torna uma delas.
_ Terá acontecido também comigo?
_ Não há nenhum cânone para comparar.
_ É o que vou descobrir. Custe o que custar.
Capítulo 25
Os anos passaram rapidamente enquanto eu explorava os vários pontos interessantes dessa cidade fantasma. Eram inúmeros os parques industriais das mais diversas atividades; universidades, prédios públicos, grandes empresas de comunicação, consulados e tantos lugares onde eu julgava encontrar respostas ou pessoas. Com mapas e antigas e imagens de satélites eu ia checando e explorando cada local que julgava ser um potencial fornecedor de informações, e agora procurando também por outros meios de subsistência, pois os existentes exauriam a cada dia que passava, estando sem a devida manutenção.
Muitas dificuldades surgiram quando consultava a imagem de satélite, pois foram produzidas antes da catástrofe que dizimou o ser humano da terra. Hoje a vegetação cresceu e expandiu, tomou conta de todos os lugares. Até mesmo dos menos prováveis. Quando comparava o local com elas percebia a presença da vegetação e ausência de muitos prédios e parques. Encontrar pontos e coordenadas? Nem pensar.
Primeiramente me preocupei em mapear novamente os pontos de interesse, mesmo meio às cegas, suas imediações e seus detalhes atuais, para posteriormente voltar com mais tempo. Possivelmente montar acampamento neles próprios ou nas cercanias onde passaria tantos dias quantos fossem necessários. Cheguei a ficar mais um ano no mesmo acampamento pesquisando as proximidades. Mas como a área territorial era muito grande, tinha que transferir a residência quando o novo parque de busca começava a distanciar.
Nunca havia visitado um parque industrial tão exuberante e tão tétrico ao mesmo tempo. Exuberante dada sua diversidade, complexidade, tamanho e, capacidade tecnológica que agora estava se degradando dia após dia. Poderia encontrar praticamente tudo que quisesse. Na maioria das vezes produtos emprestáveis, pois eram de curta e média duração. Também encontrava produtos, equipamentos e utilitários em bom estado de conservação. Os que estavam bem acondicionados com certeza duravam mais tempo. Máquinas e sistemas de produção que eu não conhecia nem pela literatura. Mas não funcionavam, pois não tinha energia elétrica e nem técnicos para operá-los. Talvez o sistema operacional dos robôs operários estivesse apagado, quem Sabe. Também pudera, não tinha matéria prima para processar, nem vendedores, e muito menos compradores. Galpões e mais galpões a perder de vista, onde eram processados, produzidos e armazenados os mais diversos produtos e sistemas. Linhas de montagem totalmente automatizadas. Máquinas que pararam de funcionar antes de terminar um produto ou peça que estava sendo usinada, braços robóticos travados no meio do curso, muitos deles ainda conduzindo partes de um sistema a ser montado. Painéis dos computadores parados no preto. Nenhum led piscando para indicar funcionamento. Nenhuma luz no alto das estruturas para iluminar o local. Somente teias de aranha e degetos de aves e ratos. Mau cheiro insuportável na maioria dos lugares.
Lojas de atacadistas e importadores com infindáveis listas de produtos, todos embalados e empilhados em paletes e containers. Entre uma fileira e outra de pilhas sem fim de produtos, nunca faltava a movimentação de aranhas, aves, morcegos, ratos, baratas e cupins. Cobras e até animais maiores, que de uma maneira ou de outra conseguiam adentrar e fazer ali seu esconderijo. Na minha mente, fantasmas eram os que mais se movimentavam, sempre atrás de mim.
Alguns desses sítios industriais tinham as marcas dos problemas ambientais que deixaram como herança. Eram tão acentuados que seus pátios e proximidades viraram desertos e nenhuma vegetação conseguiu romper suas barreiras mesmo depois de tantos anos. Alguns depósitos de produtos químicos rompidos exalavam um mau cheiro tão acentuado que há quilômetros de distância nenhum animal conseguia se aproximar. Vegetação nenhuma ousava germinar. Algumas que ameaçavam colocar a vida para fora da terra eram queimadas ainda nas primeiras folhas. A toxidade de outros ainda faziam vítimas, pois encontrei animais mortos recentemente nas proximidades de alguns deles. Só não me tornei vítima desses locais, porque havia visto outros pátios semelhantes e tomei algumas precauções usando máscaras improvisadas. Também fiz o que era mais correto. Procurei me afastar o máximo possível e me orientar conforme as correntes eólicas. Em alguns deles ainda consegui ler na parte superior dos letreiros nas paredes. Ecologicamente correto. Em outras, estamos zelando pela preservação do meio ambiente.
_ Tão corretos que se dizimaram. Murmurei.
Nunca consegui entender as mentes de tais empresários que agiam dessa maneira, e governantes que ignoravam as suas atitudes.
_ Não sabia que esse local era tão grande e tão perigoso assim.
_ Não era sem motivos que os ambientalistas clamavam tanto diante do problema.
_ Agora posso entender porque vários deles desapareceram misteriosamente depois de denunciarem algum tipo de irregularidade em grandes empresas.
_ Também, os meios de comunicação não denunciavam. Os muros de dinheiro encobriam os epicentros dos problemas.
_ É. Quem clamava, o fazia inutilmente, pois se aqui ficou desse jeito, quem dirá em países que tinham seus PIBs como exclusiva prioridade.
Alguns rios da região que outrora eram poluídos, até que apresentavam água limpa e transparente, mas não me arrisquei a sequer colocar os pés nelas, pois eram alimentados por uma bacia onde ficavam várias das empresas mais poluidoras que vira.
_ Quem sabe o extermínio da população tem a ver com essas fábricas, ou outras semelhantes?
_ Ou com seus fornecedores.
_ Quem sabe.
Me perdi dentro de uma das maiores indústrias que visitei. Em meio aos perigos de desabamentos, de tropeçar em alguma substância tóxica ou mesmo cortante, até mesmo víboras peçonhentas, novas moradoras do local. Algumas dessas fábricas eram tão monumentais que feras se abrigavam entre as máquinas e departamentos. Escritórios geralmente eram encontrados totalmente remexidos e danificados pelas traças e apodrecidos em consequência dos vazamentos surgidos e por dejetos que sempre aceleravam o processo. Carcaças humanas sempre presentes denunciavam o fator surpresa no momento do fenômeno ocorrido.
Por mais que eu tentava entender algumas das máquinas e sistemas, não tinha noção e nem para que serviam a maioria delas.
_ Creio que vou ficar por aqui muitos dias, até que esgote as possibilidades.
_ Ou esgote minha saúde e minha vida.
Dizia dentro de cada empresa promissora quando chegava. Sempre tinha a esperança de encontrar uma fonte de energia ou um sistema passível de operação. Por isso, na maioria das vezes deixava a égua e o potrinho, que aliás já era adulto, trancados em um enorme galpão com possibilidades de alimentação e água por vários dias seguidos. Enquanto isso, eu me instalava dentro ou nas proximidades de uma fábrica dessas. Depois de analisar bem as condições das estruturas das construções, eu montava minha barraca e organizava alguma mesa de trabalho para examinar documentos e objetos de interesse. Montava a cozinha e outros ambientes de descanso, lazer e de trabalho.
O potrinho, que agora era um animal adulto, talvez pelo fato de ficar sozinho com sua mãe por muitos dias seguidos, quando eu chegava perto me estranhava. Há alguns dias vinha tentando domá-lo, para cavalgá-lo.
_ Esse animal é mesmo esperto, mas muito arisco. Tenho que conseguir montá-lo. Com certeza vou precisar dele um dia desses.
Sua mãe, a égua Maracujá, estava envelhecendo e ainda não havia conseguido outro animal para substituí-la. Minha possibilidade por enquanto era apenas o potrinho.
_Esses computadores deveriam ter pertencido a uma empresa prestadora de serviços de processamento e de informações. Talvez seu maior cliente fosse mesmo o governo. É possível que neles contenham informações importantes para minhas questões. O problema é como fazer com que eles funcionem. Se é que funcionam. Gastam muita energia e isso eu não tenho. Se juntar todas as minhas possibilidades, ainda não será suficiente para isso. Vou marcar isso no meu diário para que um dia caso encontre meios, eu volte aqui para tentar.
Parti para uma universidade, mas todos os sistemas de informações eram grandes e da mesma forma gastavam muita energia. Além do mais estavam trançados de teias de aranha, poeira e dejetos de ratos e aves. Tampas dos gabinetes caídos e alguns cheios de ninhos de ratos e de pequenas aves.
_Não acredito que não existam informações nos computadores de pequeno porte. O problema é fazer com que funcionem.
Por mais que procurava e testava, quando encontrava pequenos notebooks eles não funcionavam. Tentava fazer a troca das baterias internas, mas as que encontrava sempre estavam com os lacres de vedação rompidos. Mesmo os que se encontravam ainda dentro de embalagens não mais conseguia ressuscitá-los. Um ou dois que apresentaram eficiência não possuíam arquivos com informações e não havia como copiar das bases. As unidades de mídia que tinha comigo não apresentava possibilidades de iniciar seus arquivos.
_ Mesmo assim continuarei até que encontre o que procuro. A causa e a data dessa catástrofe e se possível os seus autores.
_ Também, encontrar para que? De que adianta ter essas informações se agora tudo está consumado?
_ A essa altura, as informações que procuro somente me trarão mais agonia. É melhor deixar as coisas como estão.
_ Mas isso significa acomodar.
_ E daí? Agora, tanto faz.
Por todos os lugares que andei e o que encontrei me levavam sempre a crer que algum tipo de arma letal foi acionada, atingindo apenas as pessoas no mundo inteiro. Mas que arma seria capaz de exterminar a população do mundo inteiro, eram mais de sete bilhões de pessoas, e deixar as construções, máquinas e todos esses objetos?
_ E os animais?
_ É, e os animais?
_ E tudo aconteceu em um espaço de tempo tão curto que não houve tempo para ninguém se prevenir e ao que parece, nem mesmo de registar.
_ Mas como? Isso não cabe na minha mente racional e lógica.
_ As minhas únicas opções, são: crer ou não crer. E de qualquer forma, as coisas são como estão. Nem mais nem menos.
_ Loucura.
_ Louco ficarei eu se continuar com esta fixação.
Louco ou não, eu tinha que ter alguma atividade além de trabalhar pela minha manutenção. Caso contrário chegaria mais rápido a loucura plena.
Os anos foram passando enquanto eu continuava minhas buscas. Instalava, sempre que possível, sistemas de rádios em grandes antenas, com a intenção de buscar sinais de vida enviadas por ondas eletromagnéticas distantes. Ondas de rádio. Também enviava sinais por meio de transmissores. Durante todos esses anos nenhum sinal que pudesse indicar a existência de vida humana. Nenhuma resposta. No veículo, enquanto viajava, tinha sempre um rádio ligado esperando o momento de ouvir uma voz humana. Até agora nada. Um dia tive a impressão de ouvir algo no rádio, mas foram sons muito tênues, como um sonho e, investigando acabei por descobrir que não passavam de “vozes do além”, como diziam os pesquisadores da parapsicologia dos meus tempos de estudante. Segundo eles, muitas vezes as bobinas dos receptores acabavam por captar e os amplificadores do aparelho por trazê-los para os ouvidos humanos. O meu ouvido. Sinais como esses, no passado, fizeram muita gente acreditar ter ouvido fantasmas. Na verdade, segundo eles, essas vozes eram de pessoas reais que ficaram no espaço por anos e anos e num dado momento suas características coincidiam com os filtros do aparelho receptor de alguém e eram decodificadas. Como eu estava muito sensível a qualquer variação de sonoridade, pude ouvir pelo menos duas ou três vezes. Aquilo me assustou muito e se acontecer de novo vou me assustar novamente.
_ Não acredito que já se passaram onze anos desde que cheguei nesta região. Já percorri por tantos lugares que não consigo me lembrar de todos. Pode ser até que eu tenha errado na montagem de minha agenda. Pasmei diante de minhas anotações numa manhã enquanto as examinava por acaso.
_ Também depois de tantos anos... corri para um espelho para ver como estava meu rosto e o encontrei novamente com a barba muito grande, impedindo de visualizar minhas rugas, sinais dos tempos. Da idade. _ Sempre esqueço de me barbear. Mas isso faz alguma diferença? De qualquer maneira, gosto de cuidar da aparência.
_ E do asseio corporal.
Por mais que eu esquecesse de que ainda tinha um ego, a barba grande sempre me incomodava, mesmo porque estava sempre sujeita a infestação de piolhos, caspa e seborreia. Era muito difícil manter a barba e os cabelos grandes e limpos, mesmo porque não dispunha de produtos de limpeza tão bons quanto os de outrora. Então sempre que me lembrava, raspava da barba aos cabelos da cabeça. A princípio tinha uma pequena máquina que cortava bem baixinho; funcionava com a energia da bateria do veículo. Depois de alguns anos tive que reinventar a navalha.
_ Não é tão difícil me raspar todo, mas é que às vezes eu esqueço de fazê-lo.
Gostava de sentir que estava limpo. Tomava banho todos os dias, assim como comia todos os dias. Mas na situação em que me encontrava a vaidade ia acabando e os bons hábitos de higiene também.
_ Onde será que deixei minhas ferramentas?
_ Não é possível. Quem as pegou?
_ Está falando com quem? Retruquei indignado comigo mesmo.
_ Droga. Já ás perdi de novo. Deve ter ficado no último acampamento.
Isso sempre ocorria.
No acampamento base, eu deixava muitas coisas para diminuir o peso do veículo e assim me locomover com mais facilidade. Também, muitas vezes saía de motocicleta deixando inclusive o veículo com minhas coisas mais úteis do dia a dia. Me esquecia por quanto tempo ficava sem retornar ao acampamento. Muitos dias seguidos, era comum.
Nesses anos todos, nessa nova moradia, quero dizer, nessa nova maneira de viver, presenciei muitas mudanças no cenário. Prédios desabavam quase todos os dias. Pontes ruíam espumando e represando a água de algum rio. Uma delas simplesmente tombou para o lado de baixo represando a água e provocando inundação até muito longe de suas margens. Nesse represamento as partes baixas da cidade ficaram inundadas agravando ainda mais a situação de muitas construções. Animais ficaram ilhados, outras pontes à montante foram cobertas. Até que a própria energia da água represada foi escavando novo leito lateral para escoar e dar vazão ao mar de água que se formou. Vi o curso desse rio ser desviado pelas forças da natureza e as consequências da interferência desordenada do homem, ainda trazendo suas consequências tantos anos depois.
_ Se essa parte da cidade estivesse habitada, certamente seria uma catástrofe em termos de vidas humanas. Mesmo assim creio que muitos animais pereceram.
Trabalhei muitos dias seguidos no sentido de encontrar e fazer funcionar um grupo gerador. Procurei por muitos lugares e sempre os encontrava danificados e sem condições de serem reformados. Enquanto sondava a parte externa, ainda pude encontrar uma tampa de boca de lobo, de ferro fundido onde li o nome da empresa de telefonia e o ano de sua fabricação. 1991. Ainda usavam esse tipo de utilitário apesar de tantas opções.
Um dia adentrei num dos pavimentos do subsolo de um grande prédio comercial. Era na verdade, também, a entrada para uma subestação de metrô. Levava uma bateria presa no corpo para alimentar um silibim. Na parte de cima se elevava esse enorme conglomerado de prédios. Necessariamente tinham que ter uma considerável fonte de energia alternativa. Com minha fonte de energia, luz e uma boa dose de medo, o que eu tinha de sobra, fui descendo escadas e mais escadas, sempre no meio de muita sujeira, teias de aranha, ratos e baratas.
Salões, lojas, garagens, depósitos e corredores a perder de vista. Vagões envelhecidos e poças de água. Por todos os lados, ossos e mais ossos humanos. Mau cheiro e muitos morcegos, ratos e baratas. Não sabia ao certo se na continuação eram galerias pluviais, das redes de energia, água e telefonia, ou linhas de metrôs. Não tinha luz suficiente para permitir ver além de uns poucos metros. O restante era apenas escuridão e assombro.
_ Parece que esse local não tem fim.
Eram tantos pavimentos para dentro do solo que fiquei abismado. Gastei várias horas, pois em cada pavimento tinha que parar e vasculhar cuidadosamente. Até as lajes do piso muitas vezes estavam danificadas. A certa altura achei que seria loucura continuar, pois as trincas e os desgastes sugeriam que tudo poderia desmoronar sobre mim a qualquer momento.
_ Vou voltar. Não posso mais continuar. Estou muito longe da saída.
_ Creio que quando encontrar alguma coisa importante não mais valerá a pena. Não terá mais utilidade para mim.
Confesso que tive vontade de adentrar pelos túneis, mas minhas fontes de luz e de coragem não eram suficientes. Desisti quando me lembrei do ocorrido no interior de uma montanha há alguns anos. Ainda bem que não tenho luz suficiente, pois na verdade não tinha coragem suficiente.
_ Tenho que encontrar um bom grupo gerador em um local mais acessível. Além do mais, preciso transportá-lo para um local melhor.
_ Deve haver algum. Todos os que encontrei até agora estão travados pela ferrugem.
Usar um equipamento desse fora do meu local de trabalho, significaria ter que construir uma rede de distribuição de energia elétrica. Isso me parecia difícil demais, ou mesmo impossível. Usar a rede existente mais impossível ainda, pois se constituía de um emaranhado de fios sustentados por postes. Muitos deles quebrados e caídos. Os fios, rompidos e estendidos no chão. Todos cheios de cipós e trepadeiras. Os transformadores com certeza estavam inoperantes, depois de todo esse tempo sem manutenção. Com certeza estavam sem óleo isolante e as placas enferrujadas e coladas. Para remover um equipamento desses seria preciso um caminhão e um braço mecânico. Retirar, transportar, colocar e posicionar o mesmo de novo. Uma boa base para suportá-lo e não permitir que oscilasse com a vibração. Além de tudo, precisava estar apto a funcionar e para isso tinha que ter combustível suficiente.
_ Devo desistir? Foi a pergunta que me importunou por vários dias enquanto vagava pela cidade.
_ Mas não posso desistir agora. Continuar também com esse objetivo já não faz tanto sentido.
Comecei a andar por uma estrada mal delineada nas faldas de uma montanha íngreme. De repente, a estrada que já era deficiente se acabou e eu segurava com as mãos nos barrancos, enquanto me movimentava lentamente com um pé, depois com o outro tomando muito cuidado para não escorregar de vez e cair no precipício. Não tinha como subir, nem como descer. O solo em que me apoiava era muito instável e escorregadio, e a qualquer movimento em falso a queda era certa. Quando olhava para baixo ficava tonto ao ver a imensidão das águas de um rio caudaloso e barrento que corria veloz pelas encostas. Fiquei impassível diante da dificuldade, e acordei sobressaltado no meio da noite escura. Estava, na verdade, dentro da barraca instalada no interior de um enorme galpão que ameaçava desabar por conta de uma forte chuva que precipitava.
_ Droga, o que faço agora?
A única coisa viável a fazer naquele momento era esperar o amanhecer, e o final do temporal para sair e procurar um novo local para acampar.
Capítulo 26
Outros tantos anos se passaram sem que eu encontrasse solução ou respostas. Não podia dedicar todo o meu tempo procurando e tentando fazer funcionar um grupo gerador, ou encontrar qualquer outro meio para produzir energia elétrica, pois tinha que cuidar de uma horta onde cultivava frutíferas, grãos e hortaliças. Estava ficando cansado de procurar por respostas que certamente não iria encontrar. Os meios de comunicação disponíveis não funcionavam, por mais que tentasse nos últimos anos. Não conseguia ouvir nenhuma voz humana, e por fim até as vozes do além sumiram. Até os receptores de rádio deixaram de funcionar. Nem mesmo estática.
_ Está na hora de desistir dessa procura.
_ É verdade. Temos que tirar esse item das prioridades.
As sementes que eu trouxe da caverna, continuei plantando e colhendo. Colhendo e gerando outras sementes ao longo de meus anos.
Sempre que encontrava alguma planta solitária por onde andava, procurava por suas sementes ou estacas e trazia para o meu pomar. Cheguei a fazer algumas alporquias em um belo pé de figo e outras frutíferas, gastando para isso vários meses indo ao local para mantê-las úmidas até que enraizasse satisfatoriamente.
_Ainda bem que as primeiras sementes não eram transgênicas, modificadas para não germinar.
Nos últimos anos de pesquisa estava na moda a produção desse tipo de semente, justamente para forçar os produtores a comprá-las dos seus respectivos criadores e produtores.
Essa talvez tenha sido uma das últimas notícias que ouvi antes de entrar na cápsula. Talvez fosse o ano de 2013, quem sabe. O congresso e o senado brasileiro estavam propensos a criar dispositivos legais permitindo as modificações dessas sementes, de tal maneira que os grãos colhidos para alimento não germinassem. Assim os grandes produtores de sementes montariam seus cartéis não permitindo que os agricultores usassem suas próprias sementes. Somente as deles. Eram absurdos que a gente estava de certa forma acostumados a conviver, protestar e depois engolir sem água. Eu, por exemplo, como estava envolvido em um projeto financiado pelo governo, e por grandes empresas, jamais poderia protestar em certas ocasiões e motivações. Se o fizesse teria que ser de forma velada para não perder os patrocínios.
_ Manifestação de forma velada, ao meu ver, não é manifestação. Mas fazer o que?
_ E adiantava protestar se depois a massa de eleitores votava nos mesmos nomes?
Isso os levava a entender que estava tudo bem, que podiam aprovar o que bem entendessem.
Realmente a maior parte da população ainda não era politizada. Não entendiam esta ou aquela polêmica. Também os meios de comunicação era pago para veicular a vontade do dinheiro. Talvez por falta de informações precisas, toda essa catástrofe se abateu de forma tão cabal sobre a raça humana.
_ Preciso pensar numa maneira de continuar. Minha vida parece estar fadada a uma rotina, a qual não sei onde vai dar.
_ Viver ao acaso... Não é próprio da minha personalidade e nem da minha formação.
_ Fazer o que?
Já estava disposto a levar a vida, mantendo as coisas da maneira como estavam. Afinal tinha o que precisava. Comida gerada através de plantio e colheita. Frutas do pomar que cultivava e árvores frutíferas que encontrava por onde andava. Proteínas de animais em abundância. Meu consumo não era tão grande. Eu, meus cães e os animais de montaria. Os primeiros haviam morrido, mas em seus lugares nasceram filhotes que geraram outros filhotes, dos quais eu preservava a linhagem. Eram muito úteis para minha segurança e para me ajudar a encontrar animais comestíveis e mais acessíveis. Creio que ainda mais para me fazerem companhia. Eu os ensinava com todo cuidado e carinho, pois eram meus amigos mais chegados. O potrinho da égua Maracujá virou um belo cavalo que convivia com outros dois que nasceram da mesma égua. Comiam o que o campo produzia. Eu cuidava para que árvores muito frondosas não crescessem numa área onde conservava gramíneas para sua pastagem. O lugar onde permaneci por muitos anos seguidos era bastante úmido e conservava a grama verde o ano todo. Lá também se alimentavam as duas vacas leiteiras que consegui. Tecidos para roupas, e calçados para os pés, começavam a ficar difíceis de encontrar, e na maioria das vezes estavam apodrecidos, mas aprendi a produzi-los com as peles dos animais que abatia. Eu vivia de fato em regime de autossuficiência.
Não me lembro de ser acometido de nenhuma doença grave em todos esses anos. Realmente não sabia o porquê disso. Meus dentes estavam em razoáveis condições, apesar da deficiência no cuidado. Mas o importante é que eu estava vivo.
_ Não sei o que houve, mas de qualquer forma isso me parece bom. Estou vivo e bem de saúde.
_ Talvez o processo da cápsula tenha aumentado substancialmente minha expectativa de vida.
_ Possivelmente os pesquisadores introduziram alguma droga para esse fim. Já que prolongaram meu tempo dentro da cápsula sem minha autorização, sabe-se lá o que mais fizerem.
Pode ser até que as inovações que foram introduzidas posteriormente tenham sido no sentido de reforçar as defesas do meu organismo para me proporcionar uma sobrevida. Tenha combatido com sucesso os radicais livres. Bem que isso poderia ter acontecido com outras pessoas, inclusive mulheres, para que assim uma nova raça pudesse surgir na terra.
_ Especulações. Apenas mais especulações!
_ Agora sou mais livre do que nunca para especular e até fazer certas coisas que as leis não permitiam. Mas, fazer o que?
Para combater algum resfriado, gripe ou virose, aprendi a fazer chás recomendados por meu laptop, enquanto ele funcionava. Esse, aliás, tinha sido meu informante incansável por vários anos seguidos. Até que um dia ele travou de vez e não abriu mais nenhum programa.
_Quantos anos fazem mesmo que esse computador não funciona?
_ Sei lá. E isso importa agora?
_ Creio que não.
Tinha guardado alguns para que se um falhasse, outros o suprissem. Além disso, tinha sempre um HD externo com as cópias extras dos arquivos mais importantes. Mas já não serviam para nada mesmo pois, não tinham mais energia. Nos tempos em que ainda abriam, sempre aparecia uma mensagem no rodapé: Seu OneDrive está inativo. Eu não sabia do que se tratava, então, não dava importância.
Me conformei e apenas continuei lutando pela sobrevivência. Com o que possuía, como podia.
Sentado em uma tora de madeira, que era agora, a minha mais confortável poltrona, às vezes meditava e conversava comigo e com meus cães que deitavam sempre por perto, atentos a qualquer movimento meu ou de invasores. Aliás, a casa em que morava foi feita por mim usando adobes de barro cru e cobertura de folhas de palmeira. Apenas um compartimento era suficiente para me abrigar, repousar e cozinhar. Não precisava de sala para receber visitas, nem de quarto privativo para dormir. Banho? Eu ia sempre a uma fonte nas proximidades. Ficava praticamente no meio do nada. Apenas cortava as árvores maiores para que o capim que servia de alimento para os animais não ficasse sufocado pela sombra. Também abria uma clareira no meio da floresta infindável que começava e terminava onde eu estava.
Quase tudo que usava, era produzido por minhas próprias mãos, usando ferramentas simples. Facão, machado, serrote e outras poucas.
_Quantos anos tenho mesmo?
Um dia acordei com essa pergunta me perseguindo por onde quer que ia. Estava o dia todo tão envolto nela que não notei a aproximação de uma cobra enorme. Uma sucuri gigante. Estava pescando no rio próximo ao meu acampamento que agora era uma moradia quase que definitiva, quando algo me chamou a atenção a uns poucos metros. Por sorte, quando ela se mexeu preparando para dar o bote, a vegetação fez algum ruído. Assustado, larguei tudo e corri para o lado oposto. Ela não chegou a me perseguir. Voltei para casa correndo e esgueirando por entre as árvores, arbustos e cipós, através de uma trilha na terra vermelha e tortuosa que se criou entre a casa e o ribeirão, de tanto eu recorrer a ele seja para pescar, lavar alguma coisa, ou me banhar. O restante do dia passei sentado próximo ao fogão de lenha, dentro de casa com o coração batendo acelerado.
_ Como isso pôde acontecer? E meus cachorros, onde estavam nessa hora?
_ Fatalidade? Um aviso para eu tomar mais cuidado.
Precisei fazer um chá calmante para conseguir dormir naquela noite. A todo momento via a enorme sucuri se enrolando em meu corpo e me apertando cada vez mais até o meu fôlego faltar. Por mais que procurasse pensar em outras coisas eu não conseguia. Pensei em voltar lá e matá-la com uma flechada certeira, mas me faltaram forças. Se levasse os cães eles poderiam ser engolidos inteiros por ela. Era realmente grande e terrível.
_ Não dá mais. Preciso tomar o máximo de cuidado da próxima vez que voltar a um local desses.
Comecei nesse mesmo dia os preparativos para a construção de uma casa na copa de uma árvore bem robusta e frondosa. Planejei por dias como faria para construir.
_ Tenho que cortar, transportar e levar madeira pesada para o alto da árvore.
_ Tenho que conseguir arame e pregos para prender todas as peças. Creio que ainda encontro essas coisas. Arame galvanizado dura muito muito tempo.
_ Tenho ainda que cortar uma grande quantidade de folhas de palmeiras.
Para elevar tudo para o alto da árvore, usei algumas roldanas e assim montei a estrutura básica usando os galhos mais fortes onde apoiei o mezanino e o restante da construção. Vigas bem reforçadas, aliás, o forro todo foi feito com madeira escolhida, bem reta e da mesma espessura. Ergui esteios para ampliar a área superior. O travamento, paredes, tudo mais de madeira natural de boa qualidade. Não podia pesar muito, nem ser frágil. A cobertura de folhas de palmeira bem trançadas. Procurei deixá-la bem fechada para que ao menos pudesse dormir em segurança. Até mesmo de guaribas e alguns chimpanzés que vez ou outra apareciam, nas copas das árvores.
_ Escada para subir e descer com rapidez. Assim mantenho minha casa no solo e a da copa da árvore.
_ Em cima, posso dormir com mais segurança.
Nas noites de insônia, sentava em uma cadeira na parte externa da casa da árvore, e enquanto contemplava o luar que penetrava pelas folhagens eu cantarolava algumas canções na tentativa de relaxar e poder dormir. A música era sempre um bom acalento nas horas de stresse. Aprendi a cantarolar junto com o aparelho e agora na falta dele não sei mais o que sai pela minha boca. Talvez a canção do lá ra lá, la, la, la.
_ Não sei até quando vai durar essa agonia e se consigo manter a calma por mais tempo.
_ Você não está sozinho!
_ O que? Quem falou comigo?
Procurei por entre as árvores mas não vi ninguém. Era apenas o meu subconsciente me pregando mais uma peça. Fiquei pensativo mas já estava de certa forma acostumado com essas vozes.
_Ouvi muita gente afirmar que a “esperança é a última que morre”. Espero que ela não morra antes de mim. Devo lutar enquanto tiver forças. Pelo que parece, ainda terei forças por muito tempo, mesmo não sabendo de onde ela vem.
_ Creio que já tenho uma boa coleção de perguntas para as quais não encontrei as respostas. Enquanto eu viver, se não encontrar pelo menos parte delas, certamente encontrarei mais perguntas.
_ Isso é um consolo. É sinal de que ainda estou vivo e procurando por algo. Mesmo que isto não seja mais prioridade. Gostaria que a covardia que sempre me manteve com vida estivesse comigo até onde a vida me levasse.
_ Mas onde mesmo ela me levará. A que lugar? Qual direção devo seguir?
_ É. Mesmo não sendo prioridade, continuarei procurando. Não consigo esquecer esse meu objetivo.
Sempre que mudava minha moradia, tinha que literalmente construir outra casa, pois não encontrava mais nenhuma que estivesse em condições de segurança. Quase todas tinham virado escombros. Um amontoado de sobras de materiais. Vigas de cimento inteiramente deterioradas com as pontas da ferragem que apareciam, enegrecidas e quando tocadas, esfarelavam. Era ferrugem apenas. Nada mais. Então, procurava ficar o máximo de tempo possível no mesmo lugar e somente me mudava quando os recursos não eram mais suficientes. Para mim e para os animais. Agora sem um veículo mais rápido, nem vestígios de estradas para percorrer, quando me locomovia era apenas nos lombos dos animais ou à pé. Também, o que tinha para levar era tão pouco que um animal seria suficiente. O que tinha em abundância eram apenas as perguntas sem respostas, e os recursos naturais que encontrava aonde ia.
De qualquer forma, as distâncias que conseguia romper eram pequenas e nunca deixava de ver, quando passava por um local com maior altitude, como uma colina, os remanescentes das torres de concreto que ainda mantinham-se de pé. Ainda eram muitas, mesmo em estado deplorável. Acontece aquela cidade era tão monumental que mesmo desabando um prédio a cada dia, ainda ficavam centenas deles de pé.
Eu procurava ficar sempre em um local que me permitia ver esse aglomerado de ruínas tentando sobreviver no meio da floresta. Creio que isto me ajudava a orientar-me no meio de tanta mata verde.
_ Isto não é mais uma cidade. Aliás, há muitos e muitos anos deixou de ser. Devem se chamar de ruínas. Apenas ruínas. Ruína número um, ruína número dois e assim por diante. Quem sabe cidade fantasma, cidade escombro, cidade esquecida. Gente para morar nelas não existe. Mesmo que procure pelo mundo inteiro não vou encontrar mais ninguém.
Mesmo não conseguindo nada, ainda continuava ouvindo essa voz: Vá procurar. Vá procurar. Vá. Nunca desista dos seus sonhos. Dormindo ou acordado estava sempre ouvindo.
_ Isso já é loucura. Não dá mais para procurar, a não ser por meios de subsistência.
Depois de muitos anos e quilômetros rodados, e também há muitos anos atrás, meu veículo parou de funcionar. Assim, não tinha mais baterias, não tinha mais computador, não tinha mais arma de fogo, e não tinha mais barbeador. Não tinha MP3 nem combustível. Minhas lanternas passaram a ser tochas de fogo acesas em pavios, feixes de capim amarrados a uma haste de madeira. Estava retornando à idade da pedra. Sobrevivia apenas com ferramentas de corte e máquinas rústicas, a maioria que eu mesmo conseguia produzir. Trazia de memória alguns esquemas de máquinas simples que se tornaram eficientes para mim. Agora eram suficientes.
_ Vamos em frente, Dourado. Esse era o nome de um dos meus cavalos. Já contava com vários animais de carga e de montaria e cada vez que resolvia me mudar de localidade, levava o que precisava nos lombos deles. Meus cinco cães magricelas, fiéis, me acompanhavam avisando dos perigos em lugar do sistema de alarme. Este, quando eu usava, se resumia a uma linha que circulava o acampamento e terminava amarrada a um polaque que batia abafado enquanto eu dormia fora de um abrigo mais seguro. Às vezes, raramente, encontrava em uma localidade uma casa em condições de me abrigar. A limpava, consertava e ali me fixava por um período indeterminado. Quando não encontrava, eu mesmo a construía com as próprias mãos e as poucas ferramentas que tinha. Até que meu inconsciente me mandava. Vá para outro lugar. Vá para outro lugar. Vá para outro lugar.
Dessa forma, percorri ainda muitos outros lugares. Agora, montado nos meus animais ou mesmo andando à pé enquanto eles levavam a carga. Não havia mais estradas, mais pontes, quase não havia mais construções de prédios, casas, indústrias. Abria minhas trilhas por entre a vegetação na base da foice, machado, facão e força bruta. Por isso não ia muito longe. A mata era sempre muito densa e possuía muitos assessórios que dificultavam o meu avanço através dela.
A esta altura eu já havia perdido a conta dos meus anos de vida, pois meus meios de registro foram se acabando aos poucos. Quando o último computador deixou de funcionar dentro de pouco tempo perdi o controle dos dias. Não tinha agenda e muito menos caneta Bic.
_ Sei que fazem muitos anos que vago de um lado para o outro. Não sei que ano e que dia é hoje, e não sei onde estou. Sei que se passaram muitos períodos intercalados de chuva e seca. Apenas isso. Que o sol durante o dia ilumina o meu caminho, a lua e as estrelas durante a noite me trazem nostalgia. Somente isto.
_ Terei por acaso mais de cento e cinquenta anos? _ Creio, pois raramente encontro vestígios de civilização. O tempo se encarregou de destruir tudo. Ou quase tudo. De homo sapiens apenas eu estou sobrevivendo. Os animais selvagens e irracionais que sobreviveram são cada vez mais abundantes diminuindo a cada dia minhas chances de vida.
_ Ainda tenho a inteligência para domar alguns deles ou pelo menos de não deixar que me matem. Pelo menos por enquanto. Mas chego a conclusão de que inteligente mesmo são eles. Pois sobreviveram enquanto nós...
_ Mas até quando?
_ Só Deus sabe.
Um dia de sol escaldante e céu limpo eu ouvi uma sequência de estrondos muito altos, mas distantes. Pareciam estar muito além do infinito. Um mais longe e logo em seguida, outro mais perto. Outro e mais outro, cada um mais alto do que o penúltimo. Eu estava no alto de uma montanha olhando a linha do horizonte, onde pouquíssimos sinais de uma civilização antiga ainda podiam ser vistos. Ainda podia ver apenas algumas pontas de aranha céus por cima da mata verde. Quando voltei minha atenção para o local de onde veio o último estrondo, vi uma coluna de nuvem negra se elevando sobre as árvores e depois sobre os restos dos edifícios ainda de pé. Assustado, procurei me esconder na fenda de uma rocha, mais ainda percebi um enorme cogumelo de fumaça e poeira se formando e cobrindo tudo nas suas proximidades. Um outro se formou sob o primeiro e ambos ganharam dimensões assustadoras muito rápido. Os animais de carga assustados se desprenderam das cordas que os amarravam e saíram em disparada. Os cachorros, de ouvidos muito sensíveis não tiveram reação a não ser se esconder por trás de mim, choramingando, querendo me dizer alguma coisa. As aves revoaram aos bandos na direção oposta. Como já havia explorado aquela cidade e não encontrado nenhum ser humano vivo, tinha certeza de que era a explosão espontânea de algum artefato militar de guerra. Algo que eu não conhecia. Ouvira apenas comentários e cenas de filmes na TV. Um halo de luz avermelhada e depois amarelo claro, muito intenso se formou logo em seguida e rapidamente caminhou em todas as direções. Em segundos senti uma onda de calor muito forte sobre o meu corpo.
Por cerca de cinco minutos eu olhei em volta procurando entender o que estava acontecendo. Olhei para o lado do mar e não o encontrei, olhei para o que havia sobrado da cidade e não a encontrei, nem prédios nem as árvores; meus cachorros não estavam ao meu lado. Olhei para o meu corpo, procurei senti-lo, mas não o encontrei.
Somente fumaça e cinzas.
Ora, os céus que agora existem e a terra, pela mesma palavra, têm sido entesourados para fogo, estando reservados para o Dia do Juízo e destruição dos homens ímpios. Há, todavia, uma coisa, amados, que não deveis esquecer: que, para o Senhor, um dia é como mil anos, e mil anos, como um dia. Não retarda o Senhor a sua promessa, como alguns a julgam demorada; pelo contrário, ele é longânimo para convosco, não querendo que nenhum pereça, senão que todos cheguem ao arrependimento. Virá, entretanto, como ladrão, o Dia do Senhor, no qual os céus passarão com estrepitoso estrondo, e os elementos se desfarão abrasados; também a terra e as obras que nela existem serão atingidas. Visto que todas essas coisas hão de ser assim desfeitas, deveis ser tais como os que vivem em santo procedimento e piedade, esperando e apressando a vinda do Dia de Deus, por causa do qual os céus, incendiados, serão desfeitos, e os elementos abrasados se derreterão. Nós, porém, segundo a sua promessa, esperamos novos céus e nova terra, nos quais habita justiça.
Porque os meus pensamentos não são vossos pensamentos, nem os vossos caminhos os meus caminhos, diz o Senhor dos Exércitos.
2 Pedro 3.7-13; Isaías 55.8
Albani